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PARTE I – OS VALORES DA ARTE

CAPÍTULO 3 – ARTE, GOVERNO E LIBERDADE

3.5 A economia política da arte

O inglês John Ruskin (2004), embora ainda estivesse preso a uma visão familiar da economia e a uma ideia paternalista do Estado, foi um dos primeiros a escrever, de forma sistemática, sobre as relações entre arte, política e economia. Ele foi um crítico que viveu na Inglaterra durante a segunda metade do século XIX, e ficou conhecido por apoiar a carreira do pintor William Turner. Ao curso de sua vida, mudou o centro de seu interesse para as questões sociais, pesquisando as relações de trabalho de artistas e de arquitetos e o papel do Estado no fomento às artes.

Em uma série de palestras proferidas na década de 1850, o autor falou sobre economia política, definida por ele como o "sábio gerenciamento do trabalho", em três sentidos: "a aplicação racional do trabalho", "a preservação cuidadosa de seus frutos" e "a distribuição oportuna" desses frutos. Em seguida, ele se propôs a aplicar essa fórmula ao circuito artístico, levantando mais uma questão: se, de acordo com o preceito romântico, os artistas são aqueles que apresentam uma "genialidade especial" para o "negócio" que praticam, nesse caso, como seria possível "gerar o

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trabalhador"? Essa pergunta desdobrava-se ainda em quatro aspectos: "como obter o homem genial?"; "como empregar o homem genial?"; "como acumular e preservar a maior quantidade possível de seu trabalho?"; e, por último, "como distribuir o seu trabalho de maneira vantajosa para a nação?". Nesse esquema, os artistas eram considerados como uma espécie de "domínio público" e os gênios constituíam um "recurso da nação", assim como o ouro. (RUSKIN, 2004, p. 28;39)

Contudo, Ruskin também via os excessos nas artes como "perversão e luxúria" e era contrário aos gostos "frívolos e efêmeros" do público. Para ele, assim como para Kant, a estética era relacionada à moral e, por isso, a ênfase de sua análise recaía sobre a necessidade de controle do Estado para proteger a produção e o consumo das obras da vulnerabilidade do livre comércio, que poderia corromper os artistas e os cidadãos (THROSBY, 2011, p.285; CODELL, 2010).

Para atingir seus objetivos, Ruskin pensou em uma estratégia engenhosa: não abastecer o mercado com "arte barata", mas fazer com que as obras fossem tão caras que as pessoas tivessem poucos objetos para olhar. Os problemas de distribuição dos bens culturais seriam, no entanto, corrigidos, dando à população mais pobre o acesso gratuito ou barato aos trabalhos artísticos. Ou seja, o autor já notava que, para muitos consumidores, o preço de um produto é sinônimo de qualidade, e que muitos bens culturais são comprados com o objetivo de ostentação ou, nas palavras de Bourdieu (1986), de "distinção simbólica" (THROSBY, 2011, p.286)

Com essa visão, a proposta de Ruskin ia um passo além do simples jogo de mercado e envolvia também o governo: para equilibrar a demanda e a produção, as "melhores obras de arte" deveriam ser mantidas nas galerias públicas, com acesso a toda a população, enquanto a arte contemporânea deveria ser comprada pelas pessoas comuns para que "adornassem as paredes de sua casa". Nesse último caso, os preços deveriam ser mais baixos para que todos pudessem ter acesso. Além disso, os investidores privados deveriam gastar mais dinheiro com uma obra cara do que com várias obras baratas, dar preferência aos originais e não às copias e comprar mais trabalhos dos artistas vivos do que dos mortos, como forma de incentivar a produção (THROSBY, 2011, p.287).

A análise de Ruskin é significativa por reunir, mesmo que de forma incipiente, os problemas do governo, a questão moral e a visão romântica que predominava em seu tempo. Suas palestras também remetiam ao livre comércio de obras de arte, o

67 que instigava um caloroso debate na Inglaterra Vitoriana. Alguns jornais condenavam o Estado por não adquirir peças que "honrassem a nação". Mas, apesar das críticas aos que trabalhavam "por dinheiro", na década de 1880, houve um grande aumento no número de artistas, incentivados pelo sucesso de pintores que "recebiam mais por uma pintura" do que "um ministro ganhava em um ano" (CODELL, 2010, p.27). Além disso, discursos populares criticavam a Academia Real por agir contra o "livre mercado". E, em 1863, uma comissão chegou a investigá-la pelas práticas "restritas" de seus membros.

A propósito, no mesmo ano, os artistas passaram a fazer parte do censo, embora a remuneração fosse vista, não como pagamento ao "trabalho", mas como "recompensa" por uma "contribuição geral à sociedade" (SHINER, 2001, p.201). E a arte tornava-se um elemento importante também no mercado internacional: o valor da exportação de bens relacionados à produção artística ultrapassou seis milhões de libras em 1871. O sucesso na área era semelhante àquele em qualquer empreendimento capitalista e dependia da especulação, do risco e do investimento (CODELL, 2010). Eram esses "excessos" que Ruskin não cessava de criticar, no entanto, havia uma dimensão que sua obra talvez não pudesse atingir ainda.

O sistema público nem sempre era capaz de abranger a pluralidade de linguagens que emergiam e a quantidade de profissionais que se lançavam todos os anos em atividades como pintura, escultura, música, dança e teatro. O problema da autonomia da arte e as questões da liberdade persistiam (assim como as inúmeras tentativas de governo das condutas dos próprios artistas e do público), mas seus domínios expandiam-se para a fotografia, o design e a publicidade. Para dar sentido a essa multiplicidade, a comunicação se tornaria um mecanismo importante: ela ajudaria a compor os imaginários e as identificações em torno das diversas correntes estéticas, dos artistas e de suas obras.

Com sua "economia política", Ruskin já previa que a arte poderia unir-se novamente ao trabalho produtivo. Muito além do que ele pôde imaginar, o resultado não seria somente a educação estética e a preservação das obras do gênio. O elemento imaterial, o dom, que até então havia pautado as discussões sobre os circuitos artísticos, assim como a conduta "desinteressada" do público, tão importante para os processos de subjetivação, realmente seriam fatores essenciais para a consolidação do mercado de artes. Poucos anos mais tarde, a liberdade seria, ainda, associada a certo ato de resistência ou de transgressão aos valores

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estabelecidos. Contudo, o processo de mudança, que englobava todos esses fatores, era muito mais amplo: no interior do jogo de livre comércio, de autonomia e de governo das condutas, era uma economia dos signos e dos afetos que estava sendo gerada.

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