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Desinteresse e universalidade na estética kantiana

PARTE I – OS VALORES DA ARTE

CAPÍTULO 2 – A DIMENSÃO IMATERIAL DA ARTE EM MEIO AO REGIME INDUSTRIAL

2.5 Desinteresse e universalidade na estética kantiana

De acordo com Kant (2012), os seres humanos não têm acesso aos objetos do mundo, mas apenas aos fenômenos, aquilo que os afeta. Esses fenômenos, por sua vez, são submetidos a conceitos a priori – independentes da experiência. Mas não há objetos que sejam submetidos à faculdade14 de sentir, há apenas um acordo, livre e indeterminado, chamado pelo filósofo de "senso comum": cores e sons, por exemplo, não se referem a conceitos, mas "extravasam o entendimento". (DELEUZE, 2000, p.61).

Além disso, não há na Natureza uma finalidade para se produzir algo Belo. Há apenas um poder sem objetivo, "apropriado por acaso ao exercício harmonioso de nossas faculdades" (KANT, 2012; DELEUZE, 2000, p.60). De fato, alguns objetos parecem ter sido feitos sem nenhuma utilidade, apenas para estimular a harmonia. Flores, paisagens e pássaros coloridos simplesmente oferecem uma ocasião para que sejam contemplados, sem nenhum desejo ou interesse. É por isso que, quando se julga se algo é belo, não se usa o conhecimento, mas o sentimento de prazer ou desprazer. Este é, portanto, um julgamento estético, não lógico, e a complacência (no sentido de aprazer, agradar) deve ser desinteressada (KANT, 2012).

Esse raciocínio leva a crer que a contemplação é subjetiva, uma vez que não há conceitos preestabelecidos que auxiliem no julgamento. E, de fato, Kant (ibidem) acreditava que a beleza não é uma característica do objeto. Mas há um paradoxo

14 Há dois sentidos da palavra "faculdade": "as relações de uma representação em geral" e "uma fonte específica de representações". No primeiro sentido, Kant distingue a "faculdade de conhecer" (a representação em relação ao objeto "do ponto de vista do acordo ou da conformidade"); a "faculdade de desejar" (quando a relação entre a representação e o objeto é de causalidade); e a "faculdade de sentir" (em que a representação se relaciona com o sujeito). No segundo sentido, há uma faculdade "passiva", a "faculdade de recepção", e três faculdades "ativas": a "imaginação", o "entendimento" e a "razão" (DELEUZE, 2000, p.11-15)

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nessa proposição: se o julgamento não deve ser baseado em um desejo ou em uma inclinação do sujeito, ele não tem nenhuma condição privada como fundamento. Portanto, concluía o autor, a complacência diante de algo belo é válida para todas as pessoas, comunicável universalmente.

Ao fazer do desinteresse a chave da universalidade estética, o filósofo não somente a distinguia do "prazer ordinário" ou da "utilidade", mas traçava um caminho para a "moral", que, em sua filosofia, era relacionada à "liberdade" (SHINER, 2001). Para Kant (1784), "liberdade" era o ato de "fazer um uso público da razão", ou seja, pensar "livremente" e difundir o conhecimento ou o "esclarecimento" de forma a acabar com o "misticismo" e a "superstição" que, segundo ele, dominavam sua época e eram praticados por pessoas que "obedeciam cegamente", sem raciocinar por si mesmas. Um exemplo positivo para o autor seria o "padre" (visto aqui como uma figura pública), que "desfruta de uma liberdade ilimitada de servir-se de sua própria razão e de falar em seu próprio nome".

No entanto, "razão" também é um conceito específico na obra kantiana: algo que apresenta um interesse pelo conhecimento "universal". Da mesma forma, o "desejo" só alcança seu sentido mais elevado quando busca não a "representação de um objeto" particular, mas sua "pura forma". Se, na contemplação do belo, os conceitos do entendimento são "alargados ao infinito" e a imaginação livra-se deles, é o "senso comum estético" que torna possível o exercício da razão e da moral (DELEUZE, 2000, p.14; 56). Segundo exemplo de Deleuze (2010, p.90):

Nos sons, cores e livres matérias, a Razão descobre outras tantas apresentações de suas ideias. [...] O lírio branco não é mais simplesmente reportado aos conceitos de cor e de flor, mas desperta a Ideia de pura inocência, cujo objeto, jamais dado, é um análogo reflexivo do branco na flor-de-lis.

A "ideia do acordo sem alvo entre a natureza e nossas faculdades" define, portanto, "um interesse da razão". Contudo, há um detalhe importante: esse interesse não incide sobre o belo em si, ou haveria uma contradição na obra de Kant. Ele recai, pelo contrário, somente sobre a "aptidão da natureza para produzir coisas belas" (ibidem, p.89). Novamente conforme Deleuze (ibidem, p.89):

O prazer estético é desinteressado, mas nós experimentamos um interesse racional pelo acordo das produções da natureza com nosso prazer desinteressado.

É por isso que, para Kant (2012; DELEUZE, 2000), toda essa harmonia das faculdades só tem sentido quando é a própria Natureza que produz coisas belas. Mas isso traz um problema: de que forma a arte criada pelas pessoas poderia

53 destinar alguém à moralidade? O filósofo resolveu essa questão inserindo na arte um elemento natural também, o Gênio:

Gênio é o talento (dom natural) que dá a regra à arte. Já que o próprio talento enquanto faculdade produtiva inata do artista pertence à natureza, também se poderia expressar assim: Gênio é a inata disposição de ânimo (ingenium) pela qual a natureza dá a regra à arte. (KANT, 2012, p.163)

Kant (ibidem, p.176) concebia o gênio como "um talento para a arte"; "originalidade exemplar do dom natural de um sujeito no uso livre de suas faculdades do conhecimento". Por isso, para ele: "o produto de um gênio é um exemplo não para a imitação, mas para a sucessão por outro gênio, que por este meio é despertado para o sentimento de sua própria originalidade". Com isso, o filósofo queria dizer que não há na arte "regras" que possam ser ensinadas a qualquer pessoa. O treinamento da técnica é importante, assim como o exemplo de artistas anteriores, mas se não houver o gênio, o trabalho não resulta em uma obra- -prima.

Com esse argumento, Kant (2012; apud SHINER, 2001) fazia das obras uma criação espontânea e aprofundava a ruptura já discutida entre a arte e o trabalho produtivo, assim como as polaridades entre artistas e artesãos. Sua lista de Belas Artes incluía poesia, música, pintura, escultura, arquitetura, oratória e jardinagem. Ele também reconhecia que outras categorias poderiam ser tratadas como arte desde que criadas para serem somente apreciadas, sem uma intenção determinante. Outra diferença era percebida quanto à motivação para a atividade: os artistas criam por prazer, enquanto os artesãos, assim como os trabalhadores, recebem um pagamento por cumprir uma encomenda com um propósito específico.

De acordo com Shiner (2001), ao reforçar as polaridades entre a estética e a finalidade prática, entre os artistas e os artesãos, entre as belas artes e o artesanato, Kant (2012) criava uma filosofia capaz de justificar o sistema de artes moderno. Embora ele próprio estivesse mais preocupado com o sublime na Natureza do que nas obras humanas, seu texto inspirou uma visão romântica de diversos autores que conectavam a estética diretamente às Belas Artes – ou à atividade dos gênios.

A obra de Kant, portanto, é exemplar de um período de transição do classicismo para o romantismo: "um exercício desregrado de todas as faculdades, que vai definir a filosofia futura, como para Rimbaud o desregramento de todos os sentidos deveria definir a poesia do futuro" (DELEUZE, 1991, p. 131). Talvez, por

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isso, suas ideias ainda ecoem nos debates sobre a criação e os mecanismos de difusão das artes. Quando se discute a "autonomia" dos artistas em relação aos interesses capitalistas ou ao Estado, mesmo que a teoria dos gênios já tenha sido há muito refutada, é certo ideal romântico que aparece como um pano de fundo. Além disso, apesar do classicismo da forma, é o elemento imaterial da arte que se destaca em suas críticas – a subjetividade dos artistas e a contemplação do público, a moral e a razão. Deixando em segundo plano o trabalho artesanal, fechava-se, dessa maneira, um imaginário que iria persistir por muito tempo. Seguindo por esse caminho, o iluminismo também levaria a uma reflexão sobre sua própria época, sobre o governo e sobre as condutas individuais. Esses fatores se cruzariam em busca da "liberdade" que a arte proporciona e do jogo de interesses entre "sujeitos livres", o que ficaria mais evidente na política e na economia.

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