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PARTE I – OS VALORES DA ARTE

CAPÍTULO 3 – ARTE, GOVERNO E LIBERDADE

3.1 Em busca da essência e da liberdade

Mas eu não quero ser senão eterno. Que os séculos apodreçam e não reste mais do que uma essência ou nem isso. E que eu desapareça mas fique este chão varrido onde pousou uma sombra e que não fique o chão nem fique a sombra mas que a precisão urgente de ser eterno boie como uma esponja no caos e entre oceanos de nada gere um ritmo.

(Carlos Drummond de Andrade)

As ideias lançadas por Kant ressoaram por muitos anos. Algumas vezes, foram usadas como fontes de inspiração, outras vezes, criticadas. Schopenhauer (2003; WAGNER, 2010), por exemplo, acreditava que a "essência das coisas" não poderia ser conhecida pela ideia proveniente de suas relações, pois estas revelariam somente o "fenômeno". Porém, ao contrário do que pensava Kant, alcançar a "essência" não era uma tarefa impossível. A chave desse acesso estaria na "autoconsciência", local em que a natureza se manifesta como "vontade". O compositor romântico Richard Wagner (2010) foi influenciado por noções como essas ao fundamentar suas teorias estéticas. Em um texto dedicado ao centenário de Beethoven, ele afirmou que a música é a única linguagem capaz de proporcionar a unidade entre os homens e o mundo exterior, pois ela revela "o mais profundo de nós mesmos":

O objeto do som que escutamos coincide de modo imediato com o sujeito do som que proferimos: compreendemos sem a mediação do conceito o que nos diz o grito de socorro, de lamento ou de alegria e a ele retribuímos imediatamente. Se o grito, a queixa ou o som de prazer que emitimos é a exteriorização mais imediata do afeto da vontade, assim compreendemos o som análogo que chega premente a nosso ouvido como a incontestável exteriorização do mesmo afeto; e aquela ilusão, como a da aparência da luz, de que a essência fundamental do mundo fora de nós não é inteiramente idêntica à nossa, não é possível aqui, de modo que aquele abismo visível a nosso olhar desaparece de imediato. (WAGNER, 2010)

Enunciados semelhantes atravessaram gerações de artistas e afetaram não só a música, mas também outros gêneros, levando, em última análise, à abstração. Já no século XX, Kandinsky (2014) buscava em suas obras a expressão de "verdades internas". Segundo ele, na Idade Moderna, os homens sentiam falta de

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"ideais", uma vez que eram sufocados por anos de "materialismo": retornar à estética "primitiva" seria, portanto, um modo de despertar emoções "sutis” e "não nomeadas". Sua busca se acentuou quando Schoenberg respondeu a uma carta sua, concordando com "a eliminação da vontade consciente na arte" (SCHOENBERG; KANDINSKY, 1987). Inspirado pela música, Kandinsky tentava pintar assim como um músico compõe, usando elementos específicos de sua linguagem, que não representassem necessariamente a natureza. Em alguns de seus momentos mais brilhantes, talvez ele tentasse captar, em formas e cores, os próprios sons:

A pintura hoje preocupa-se quase exclusivamente com a reprodução de formas naturais e de fenômenos. Sua tarefa é agora a de testar sua força e seus métodos, conhecer a si mesma como a música o fez por um longo tempo, e então usar seus poderes para um fim verdadeiramente artístico. (KANDINSKY, 2014)

Outro filósofo a contribuir com as teorias estéticas foi Friedrich Schiller (2011). Tendo vivido na segunda metade do século XVIII, talvez ele não pudesse imaginar que o caminho que estava sendo traçado levaria a obras abstratas, dissonâncias e novas harmonias. De todo modo, ideias como as suas também influenciaram os circuitos artísticos que viriam a se concretizar. Na transição da Idade Clássica para a Moderna, Schiller propunha que razão e sentimento fossem reintegrados, o que ocorreria justamente na contemplação das Belas Artes. Em uma obra genuína, a "liberdade" e a "necessidade", o "dever" e a "inclinação", o "espiritual" e o "sensório" constituiriam uma união harmônica, chamada de "jogo". Assim como propunha Kant, o exercício estético não deveria levar a nenhum objetivo instrumental, pelo contrário, apenas quando as pessoas alcançassem o desinteresse e a apreciação incondicional, elas se tornariam realmente livres e humanas:

No Estado estético, todos – mesmo o que é instrumento servil – são cidadãos livres que têm os mesmos direitos que o mais nobre, e o entendimento, que submete violentamente a massa dócil a seus fins, tem aqui que pedir-lhe o assentimento. (ibidem, p.135)

A educação estética não seria, portanto, um simples exercício, mas quase um processo de salvação da humanidade. Com isso, Schiller (2011; SHINER, 2001) elevava as Belas Artes ao mais alto patamar da sociedade que já projetava no século XIX:

Somente o gosto permite harmonia na sociedade, pois institui harmonia no indivíduo. Todas as outras formas de representação dividem o homem, pois se fundam exclusivamente na parte sensível ou na parte espiritual; somente a representação bela faz dele um todo, porque suas duas naturezas têm de estar de acordo. Todas as outras formas de comunicação dividem a

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sociedade, pois se relacionam exclusivamente com a receptividade ou com a habilidade privada de seus membros isolados e, portanto, com o que distingue o homem do homem; somente a bela comunicação unifica a sociedade. (SCHILLER, 2011, p.134)

Schiller (ibidem) estava convencido de que somente uma classe livre das imposições do trabalho – que fragmentava não somente os processos de produção, mas também o ser humano – seria capaz de exercer um julgamento estético e de manter, dessa forma, sua integridade. Com essas ideias, o próprio filósofo teve dificuldades em se sustentar no sistema de mercado, tendo, por isso, aceitado a proteção do Duque de Augustenburg, para quem dedicou as Cartas sobre a Educação Estética do Homem (SHINER, 2001). Paradoxalmente, foram justamente propostas como as suas – ao lado das bases lançadas por Baumgarten, Kant e outros pensadores da época – que permearam o campo artístico desde então.

Para Jacques Rancière (2012), quando Schiller sugeria o "jogo estético", ele suspendia o "enraizamento" social da arte e o substituía por "uma indiferença radical", "uma ausência de preocupação, vontade e finalidade". Quando uma estátua grega, por exemplo, é vista em um museu, ela já não se refere mais a uma fé, tampouco a uma hierarquia social. A eficácia da arte provém dessa desconexão, quando, por exemplo, as obras expostas não manifestam a dominação monárquica ou religiosa, mas participam de um espaço comum.

Por outro lado, foi esse mesmo sistema que levou à imagem do gênio marginalizado e incompreendido, do artista boêmio, que, sendo inapto às regras estabelecidas, ao jogo político ou aos interesses financeiros, abre mão do conforto material para dedicar-se à sua vocação. As histórias de Beethoven, Van Gogh, entre outros, são bem conhecidas, e essa ideia espalhou-se para diversas linguagens. Em uma série de cartas escritas a um jovem aspirante a poeta, chamado Franz Kappuss, Rainer Maria Rilke (2006, p. 24;25), por exemplo, diz:

O senhor olha para fora, e é isso sobretudo que não devia fazer agora. Ninguém pode aconselhá-lo e ajudá-lo, ninguém. Há apenas um meio. Volte-se para si mesmo. Investigue o motivo que o impele a escrever; comprove se ele estende as raízes até o ponto mais profundo de seu coração, confesse a si mesmo se o senhor morreria caso fosse proibido de escrever. Sobretudo isso: pergunte a si mesmo na hora mais silenciosa de sua madrugada: preciso escrever? Desenterre de si mesmo uma resposta profunda. E, se ela for afirmativa, se o senhor for capaz de enfrentar essa pergunta grave com um forte e simples "Preciso", então construa sua vida de acordo com tal necessidade; sua vida tem de se tornar, até na hora mais indiferente e irrelevante, um sinal e um testemunho desse impulso.

Os resultados dos esforços de artistas que levaram seu talento ao limite são inegáveis, basta ver a quantidade e a qualidade das obras que a tradição estética

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legou, principalmente porque ela primou em explorar, por um lado, as questões inerentes às próprias linguagens e, por outro, as emoções e os sentimentos. Mas será que a arte, como produto do gênio e como objeto de desinteresse, realmente se opõe ao trabalho produtivo e cria um espaço comum capaz de reintegrar o ser humano? Será que a liberdade a que tantos artistas e filósofos aspiraram (e a que muitos ainda aspiram) é possível de ser alcançada? Será que ela é válida para todos?