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PARTE I – OS VALORES DA ARTE

CAPÍTULO 8 – SERÁ APENAS UMA RETÓRICA NEOLIBERAL?

8.1 A economia criativa como discurso político

Em 1994, a noção de que é possível gerar recursos sociais ou financeiros a partir das atividades criativas alcançou uma nova dimensão política. Nesse ano, em um ato talvez mais retórico do que efetivo, o primeiro-ministro da Austrália, Paul Keating, cunhou o termo Creative Nation. O relatório oficial enfatizava claramente a proposta de tratar a cultura pelo viés econômico:

Esta política cultural também é uma política econômica. A cultura cria riqueza. Definida em seu sentido mais amplo, nossas indústrias culturais geram 13 bilhões de dólares por ano. A cultura emprega. Cerca de 336.000 australianos são empregados em indústrias relacionadas à cultura. A cultura agrega valor, ela traz uma contribuição essencial à inovação, ao marketing e ao design. É um distintivo da nossa indústria. O nível de nossa criatividade substancialmente determina nossa habilidade de adaptação aos imperativos da nova economia. (GOVERNO DA AUSTRÁLIA, 1994, tradução nossa)34

Três anos depois, o primeiro-ministro do Reino Unido, Tony Blair, criou o Department for Culture, Media and Sport (DCMS).35 Uma de suas primeiras ações foi estabelecer o Creative Industries Task Force, responsável por apresentar o Creative Industries Mapping Document, em 1998. O documento foi a primeira tentativa sistemática de mapear, definir e avaliar as indústrias criativas no país (BOP CONSULTING, 2010). A partir desse esforço, a definição adotada para o setor foi o seguinte:

[...] aquelas atividades que têm sua origem na criatividade individual, habilidade ou talento e que têm o potencial para a criação de riqueza e empregos por meio da geração e exploração da propriedade intelectual. (ibidem, p.16, tradução nossa)36

Segundo o relatório do governo britânico, as indústrias criativas englobam as artes visuais (pintura, escultura, desenho), as artes de espetáculos (teatro, dança,

34 This cultural policy is also an economic policy. Culture creates wealth. Broadly defined, our cultural

industries generate 13 billion dollars a year. Culture employs. Around 336,000 Australians are employed in culture-related industries. Culture adds value; it makes an essential contribution to innovation, marketing and design. It is a badge of our industry. The level of our creativity substantially determines our ability to adapt to new economic imperatives.

35 Hoje, chama-se Department for Culture, Olympics, Media and Sport (DCOMS).

36 […] those activities which have their origin in individual creativity, skill and talent and which have a

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circo) e a música, além de atividades como propaganda, arquitetura, antiguidades, artesanato, design, filme e cinema, softwares, publicações de livros, rádio e televisão. Mas tanto a definição quanto a lista de setores geraram polêmica pela arbitrariedade e pelo próprio conceito de criatividade adotado: afinal, o mercado de obras de arte antigas envolve criação? A indústria de software realmente inova ou, na maior parte das vezes, limita-se a vender programas de computadores desenvolvidos por grandes corporações e a oferecer assistência técnica aos usuários? (ibidem)

Apesar das críticas, o governo do Reino Unido persistiu em sua retórica, mas, em 2006, mudou a ênfase das indústrias criativas, como um campo isolado, para a "economia criativa", em uma tentativa de capturar "a ampla contribuição do setor para a economia e a sociedade". De fato, em um período de crescimento econômico, os setores criativos geraram empregos e renda no país, e o financiamento público às artes também aumentou aproximadamente 35% no período de 1997 a 2011, como mostra a tabela 1.

Tabela 1: Subsídio do governo para a Arts Council England. Ano Financiamento (milhões de libras)

1997-1998 186,6 1998-1999 189,95 1999-2000 228,25 2000-2001 237,155 2001-2002 251,455 2002-2003 289,405 2003-2004 324,955 2004-2005 368,859 2005-2006 408,678 2006-2007 426,531 2007-2008 423,601 2008-2009 437,631 2009-2010 452,964 2010-2011 438,523

Fonte: adaptado de HESMONDHALGH et al., 2015

No novo conceito de "economia criativa", havia várias dimensões, entre elas: agregar valor a outras indústrias, fazer parte da economia do conhecimento,

121 contribuir para a regeneração de cidades e permitir que as pessoas compartilhassem experiências (ibidem). A mudança era significativa: em vez da produção de patentes por organizações estabelecidas, o novo termo ressaltava a ocupação profissional. Desse ponto de vista, a economia criativa se tornava o resultado da atividade de milhões de indivíduos, que atuam dentro ou fora das indústrias (OAKLEY; O'CONNOR, 2015): em uma gravadora de música, em uma emissora de rádio ou televisão, mas também em um pequeno teatro sem fins lucrativos, em um coral de estudantes, em uma feira de artesanatos, em um ateliê de artes visuais.

Essa tendência espalhava-se para o mundo e, com isso, mais uma transformação importante se insinuava: a "economia criativa" deixava de ser um tema de países desenvolvidos para transformar-se em uma estratégia relativamente "barata", uma vez que não exige grandes investimentos em matéria-prima e maquinário, para melhorar também as condições econômicas e sociais de países emergentes. Conforme relatório publicado pela UNCTAD (2010, p.253, tradução nossa):

Gradualmente, essas tendências estão sendo refletidas na experiência de países em desenvolvimento. Algumas partes do mundo em desenvolvimento, notavelmente a Ásia, estão experimentando forte crescimento em suas indústrias criativas. No entanto, em outras regiões em desenvolvimento, a situação apresenta mais nuances. Este relatório mostra o rápido crescimento nas exportações de bens e serviços criativos, como indicadores da força das indústrias criativas na sociedade contemporânea. No período de 2002 a 2008, as exportações mundiais de bens e serviços criativos cresceram em níveis sem precedentes, em 11 e 17 por cento, respectivamente. As taxas de crescimento nos países em desenvolvimento, como um todo, excedem as dos países desenvolvidos, graças à excepcional performance da China. O comércio de bens criativos entre os países do Sul foi responsável por 15 por cento das exportações mundiais em 2008, um sinal da crescente penetração dos países em desenvolvimento nos mercados globais. Esses resultados promovem uma forte indicação do potencial que ainda espera os países em desenvolvimento, o de tirar vantagem de suas economias criativas para ganhos em seus desenvolvimentos.37

Um dos países com potencial para este discurso era o Brasil.

37 Gradually these trends are being reflected in the experience of developing countries. Some parts of

the developing world, notably Asia, are enjoying strong growth in their creative industries. However, in other developing regions the situation is more nuanced. This report shows the rapid growth in the exports of creative goods and services as indicators of the strength of the creative industries in contemporary society. In the period 2002-2008, world exports of creative goods and services grew at unprecedented levels by 11 and 17 per cent, respectively. Growth rates in developing countries as a whole exceeded those in developed countries, thanks to the exceptional performance of China. South- South trade of creative goods accounted for 15 per cent of world exports in 2008, a sign of the growing penetration of developing countries in global markets. These results provide a strong hint of the potential that still awaits developing countries to take better advantage of their creative economy for development gains.

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