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PARTE I – OS VALORES DA ARTE

CAPÍTULO 4 – DO MERCADO DE ARTES À ECONOMIA IMATERIAL

4.2 Arte e economia imaterial no século XX

No início do século XX, Magritte, que trabalhou também como publicitário, usava em suas obras referências do cinema, dos cartazes, das revistas e das ficções sensacionalistas da época. Andy Warhol, por sua vez, parodiava a publicidade com imagens uniformes e repetitivas de marcas comerciais. Com isso, ele não só questionava a ideia de que a arte tem que ser original, como também eliminava das obras sua presença, seu estilo – e esta se tornou sua própria marca. Esses exemplos acompanhavam a ascendência da cultura de consumo, e também uma mudança no eixo da economia, da Europa para os Estados Unidos (GOMPERTZ, 2012).

Esta era uma mudança importante. Afinal, o "novo mundo" representava um ambiente de liberdade e de renovação dos valores morais a que tanto se aspirava na Europa. Por isso, desde o início das vanguardas, vários artistas europeus foram buscar novas oportunidades neste país. As diferenças não estavam somente nas relações sociais, elas se estendiam até as questões políticas e econômicas. Foucault (2013, p.301) ressalta, por exemplo, que o liberalismo norte-americano não foi uma decisão posterior à criação do Estado, algo que de fato o limitava, como havia ocorrido nos países da Europa. Pelo contrário, nos Estados Unidos, o liberalismo era, ele próprio, o princípio fundador do Estado. Também por isso, esse formato de governo envolvia "todo um modo de ser e de pensar", "uma espécie de

73 reivindicação global, multiforme, ambígua, com ancoragem à direita e à esquerda", um "foco utópico sempre reativado", nas palavras do filósofo.

A iniciativa individual destacava-se nesse ambiente, e o problema das liberdades ganhava outra relevância. A noção da sociedade como uma rede de interesses era ainda mais clara e, desse ponto de vista, o trabalho era reinserido na economia, mas com uma diferença. Se, desde a obra de Smith, essa atividade era algo que roubava o tempo dos empregados, transformando sua força física em uma fonte de valor; agora, ela passava a ser um investimento, um capital. Essas questões que remetem sempre ao problema do "trabalho imaterial", como visto no primeiro capítulo, serão aprofundadas mais adiante. Por ora, é suficiente dizer que o perfil empreendedor ganhava bastante visibilidade nas primeiras décadas do século XX, também no campo cultural, o que só viria a se intensificar.

De fato, nos anos 1950, surgia em Nova York a estrutura do mercado de artes que permanece até hoje. A promoção das vanguardas ficava a cargo das galerias privadas e da imprensa, e os principais colecionadores da época eram pessoas que construíam seus negócios após a guerra em setores quase sempre ligados à publicidade, aos meios de transporte e às comunicações. Uma das figuras emblemáticas do período foi o galerista Leo Castelli. Entre os artistas que ele promoveu, estavam Rauschenberg, Jaspers Johns, Stella e Warhol. Seu êxito, segundo Cauquelin (2010), estava na exploração de alguns princípios que seriam vigentes nas décadas seguintes: (1) a "informação" que ele obtinha na América e na Europa, visitando os artistas, documentando as obras, lendo catálogos e textos publicados em jornais; (2) o "consenso" entre críticos de arte, curadores de grandes museus e a imprensa; (3) o "loop", ou seja, o aumento de sua credibilidade a partir do êxito em uma exposição e, assim, sucessivamente; e, por fim, (4) a "internacionalização".

A propósito, no final dos anos 1980, predominou a ideia de que os Estados Unidos e seu estilo de "modernização" capitalista tornariam o planeta homogêneo. Os anos 2000 revelaram, pelo contrário, a multiplicidade de culturas interdependentes, o choque entre civilizações, o poder compartilhado do inglês com outras línguas (CANCLINI, 2012, p.26). Embora os bens de consumo continuassem a ter importância, o desenvolvimento das tecnologias de produção, transporte e comunicação transfeririam para o plano das imagens grande parte do valor econômico de produtos e serviços. Talvez por isso, o mercado de artes tenha se

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expandido de forma tão intensa. Nunca se comprou tantas obras por valores tão elevados, e a arte passou a ser considerada até mesmo um investimento financeiro seguro. Para Canclini (ibidem, p.18), isso ocorreu porque o modelo neoliberal norte- -americano, que agora se espalhava pelo mundo, acabou subordinando até mesmo a "economia dura", que produz bens tangíveis, a especulações financeiras, já que, em vez de organizar a sociedade com regras científicas, os economistas passaram a nomear desordens com metáforas, como "bolhas", por exemplo. As tendências artísticas também são fugazes, mas, segundo o autor, um grande setor do público já se acostumou a essa característica como "parte do jogo":

Podemos encontrar prazer na inovação, ou aderir a distintas correntes e sentir compatíveis as preferências por Picasso, Bacon ou Bill Viola. Situar- se na última onda, na penúltima ou em algumas anteriores, que às vezes se reciclam, não apresenta tantos riscos de exclusão social ou desmoronamentos pessoais como investir na moeda do próprio país, em dólares ou em ações de uma empresa transnacional. (ibidem, p.19)

Um grande exemplo desse cenário ocorreu em 2008: ao mesmo tempo em que o governo dos Estados Unidos permitia a quebra do banco Lehman Brothers, o que poderia dar início a uma crise global, a casa de leilões Sotheby’s, em Londres, vendia mais de duzentas obras de Damien Hirst (entre elas, animais conservados em salmoura e pinturas coloridas), pelo preço total de R$ 374,8 milhões (CYPRIANO, 2008). Além de parecer não se dar conta da crise financeira, Hirst quebrava uma longa tradição do mercado de arte: em vez de vender suas novas obras por meio de marchands (mercado primário), a compradores que, mais tarde, poderão recorrer a casas de leilões (mercado secundário), o artista partiu diretamente para a segunda etapa. Por atitudes como essa, Gompertz (2012, p.391) classifica os artistas que se estabeleceram principalmente a partir dos anos 1990 de "empreendedores": "eles estavam imbuídos de um espírito empresarial que era parte da arte que produziam e logo passou a ser parte do mundo em que vivemos".

Canclini (2012, p.22;27) também lê a atitude de Hirst como um gesto de autonomia do artista em relação ao mercado, mas ele acredita que esse gesto só possa ser praticado por poucos: "essa pretensão não pode ser estendida às instituições artísticas e aos projetos coletivos que viram cair seus financiamentos". Além disso, quedas e elevações nos preços das artes revelam "intersecções mais complexas entre arte e sociedade, entre criatividade, indústria e finanças, do que as que alimentaram os dilemas entre valor econômico e valor simbólico nas estratégias clássicas".

75 Por outro lado, apesar de muitas obras serem exibidas em galerias, museus e teatros, as artes se misturam aos meios de comunicação, circulam pela internet, assumem papéis sociais. Performances e instalações levam a novas maneiras de registro das obras; coletivos artísticos dissolvem ou ressignificam a função do autor. Ao mesmo tempo, a produção de artistas emergentes vem à tona e o grande público, que por vezes se afasta das linguagens mais experimentais, faz filas em exposições de artistas renascentistas ou românticos e toma contato com as obras pelos meios de comunicação de massa e pela internet.

Percebe-se assim, duas dimensões da produção artística que coexistem na atualidade: o mercado global de obras de alto valor financeiro e o trabalho de artistas e produtores culturais emergentes, em grande parte pouco conhecidos, que diariamente resistem ou se adaptam às forças do mercado, da economia. Por sua vez, o público também oscila entre as especificidades das linguagens experimentais, as redes de artistas contemporâneos e a arte apropriada pelos meios de comunicação de massa, que se integra à publicidade, aos filmes comerciais, às telenovelas.