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A crítica de Marx: O texto de 1843 e o rompimento com a herança de Hegel

A CRÍTICA À FILOSOFIA DO DIREITO DE HEGEL E O PROBLEMA DA SOCIEDADE CIVIL

4.5. A crítica de Marx: O texto de 1843 e o rompimento com a herança de Hegel

O texto de 1843 demarca o afastamento de Marx da tradição filosófica então predominante, o idealismo. Esse movimento de cisão conclui-se em 1845, como já visto, quando na Ideologia Alemã, no dizer dos próprios Marx e Engels, “promove-se um ajuste de contas com a consciência filosófica anterior”.234

A crítica empreendida por Marx à Filosofia do Direito de Hegel, como já afirmamos anteriormente, só aborda a 3a secção, intitulada “O Estado”, que vai do parágrafo 261 até o parágrafo 313, ou seja, o direito político interno, ali intitulado, “Constituição interna para si”.

Embora tenha se tornado conhecido como Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, o texto escrito por Marx em 1843 – encontrado tempos depois da sua morte - e só publicado em 1927, refere-se a uma crítica da filosofia do direito público de Hegel.235

O problema a que se propunha Marx era, depois da constatação hegeliana segundo a qual “a filosofia sempre chega depois”, tirar as derivações necessárias de tal conclusão.

Num primeiro momento o fez através da tese de doutorado que, como vimos, resgatava uma problemática típica do mestre; e, num segundo momento, indo às conseqüências de tal afirmação.

E, para Marx, a condição para a superação da filosofia seria a sua realização.236

Como se daria tal realização?

A maneira, embora não explícita, com a qual Marx procura tratar a relação, brilhantemente formulada por Hegel, entre filosofia e história é a seguinte: já que

234 MARX, Karl. Para a crítica da economia política – Prefácio. In: Manuscritos econômicos-filosóficos e outros escritos. São

Paulo; Abril Cultural, 1978. P. 131.

235 ATIENZA, Manuel. Marx y los derechos humanos. Madrid: Editorial Mezquita, 1983. P.40. A tradução, em língua

espanhola, mais referenciada é a de 1946, feita por Carlos Liacho e que contém um estudo introdutório de Mayer e Laudshut, além de uma carta de Marx ao pai. Nessa edição, se optou pela tradução Crítica da filosofia do Estado de Hegel.

Uma das explicações possíveis é que a crítica de Marx à filosofia do direito de Hegel tenha se limitado a parte onde Hegel analisa o direito público (parágrafos 261 até 313), exceto os parágrafos 257 até o 260, cuja folha nunca foi localizada.

a filosofia “sempre chega depois”, tratar-se-ia então de realizá-la através de... sua

superação!237 A XI tese sobre Feuerbach já estava aqui, em seus fundamentos,

formulada.

Ou seja, quer através da história, averiguando a verdade do que nos circunda, quer desnudando a auto-alienação em suas formas terrenas, através da própria filosofia que, dessa forma, se converte de crítica do céu em crítica da terra; de crítica da religião em crítica do direito; de crítica da teologia, em crítica da política238, a filosofia se realizaria. E se superaria.

Enfim, Marx faz da sua crítica à filosofia de Hegel um instrumento de intervenção no cotidiano e não de contemplação.

O resultado disso é que, cada vez mais, deixa de ser hegeliano. E ele reconhece tal atitude ao, ainda na mesma introdução, complementar: a crítica não é uma paixão do cérebro, mas a consciência da paixão; não é um bisturi, mas uma arma; seu objeto não é refutar, mas destruir o adversário; não é um fim em si, mas um meio; seu sentimento essencial é a indignação e sua tarefa, a denúncia239.

Se por um lado, podemos dizer que vemos aqui, e de novo, os elementos essenciais da XI glosa contra Feuerbach; por outro lado, devemos perceber que afirmações como as supracitadas, que devem ser entendidas no contexto de um debate por afirmação de idéias, foram na maior parte das vezes utilizadas para fundamentar uma possível atitude intolerante e avessa ao debate, em Marx e no marxismo.

Uma das contraposições de Marx em relação a Hegel, na medida em que avançava na sua atitude crítica para com o Estado, se condensava cada vez mais

exatamente na negação do Estado como locus de realização do indivíduo,

enquanto que em Hegel o Estado era a realização máxima da idéia.

237 “Não podereis superar a filosofia, sem realizá-la”. MARX, KARL. Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. In: A

questão judaica. São Paulo: Ed. Moraes, 1991. P. 115. Nos pontos em que se abordar Marx, voltarei a questão, porquê há de se aprofundar de que superação se trata.

238 MARX, Karl. Introdução à Crítica da filosofia do Direito de Hegel. In: A questão judaica. São Paulo: Moraes, 1991. P. 106-

107 e 115

Na Questão judaica, na qual trava uma polêmica com Bruno Bauer, Marx estabelecia – ao examinar a relação entre direitos humanos, visto como direitos individuais do homem egoísta e voltado para si, e direitos políticos, visto como direitos do cidadão – um dos aspectos centrais da polêmica sobre a natureza da emancipação que se obtém nos limites da esfera burguesa. Nesta, confunde-se uma emancipação falsa e limitada, com a emancipação humana.

E completa: o limite de tal emancipação se torna evidente no fato de que o Estado pode se livrar de seus limites sem que o indivíduo dele se liberte. Ou seja, a emancipação que se expressa na sociedade civil, enquanto esfera que determina o Estado, não implica em emancipação humana.240

Na Itália – onde houve uma tradição de valorização dos textos da juventude

de Marx – a chamada Escola de Della Volpe241 entende que com a Crítica à

Filosofia do Direito de Hegel’, bem como com o texto da Introdução à Crítica da filosofia do direito de Hegel, inicia-se o marxismo propriamente dito, enquanto corpo específico de idéias, pois aí é que ocorre, ainda segundo tal escola, o rompimento de Marx com os referenciais hegelianos242.

Tal formulação não veio a se contrapor com a dicotomia althusseriana entre o “jovem” e o “velho” Marx e dela apenas se diferencia quanto a forma de periodização e pelo fato de não desvalorizar um Marx humanista.

Lembremo-nos, mesmo já tendo abordado tal questão no primeiro capítulo desta dissertação, que como conseqüência de sua tese da cesura epistemológica – de matriz bachelardiana e pela qual o jovem Marx era tão só um humanista admirador de Feuerbach, e, portanto, que a crítica que empreendera a Hegel se circunscrevia a tais condicionamentos - Althusser entendia que o Marx maduro só surge com a Ideologia Alemã e só com esta obra é que rompe com os resquícios

240 MARX, Karl. A questão Judaica. São Paulo: Ed. Moraes, 1991. P. 23 e 37. Ver também: ATIENZA,Manuel. Marx e los

derechos humanos. Madrid: Mezquita,1983. P. 46 e 57.

241 Ver sobre a influência de Galvano Della Volpe sobre uma geração de intelectuais italianos de esquerda, entre eles,

Luciano Coletti e Umberto Cerroni: ANDERSON, Perry. Considerações sobre o marxismo ocidental. Porto: Afrontamento, s/data. P. 39-41.

242 ATIENZA, Manuel. Marx y los derechos humanos. Madrid: Editorial Mezquita, 1983, P. 40, situa Umberto Cerroni – que

humanistas, antropológicos e historicistas anteriores, o que permitiria ao futuro autor de O capital fundar um novo continente científico.

O princípio fundamental de que parte Marx para a crítica a Hegel já se encontrava implícita na tese doutoral, ou seja, todos os filósofos têm feito dos predicados, sujeitos, especialmente na forma de reflexão e relação entre pensamento e ser.243

E tal concepção, diferença fulcral entre mestre e discípulo se evidencia já na crítica de Marx ao parágrafo 262 da Filosofia do Direito de Hegel.

Na análise deste parágrafo, Marx condensa seu desacordo conceitual com Hegel: para este a idéia real, em ato ou espírito (na sua linguagem enviesada) é o Estado, o qual se divide em duas esferas ideais (para, segundo Hegel, sair de sua idealidade e tornar-se “espírito real” ou, ao nosso modo, idéia concretizada): ou seja, reparte por duas esferas – família e sociedade civil – o material constituinte de sua realidade.

Portanto, família e sociedade civil constituiriam o aspecto finito do Estado.244 Marx centra sua crítica acentuando o erro em afirmar-se que o Estado ‘determina’, ou seja, define a sociedade civil. Para Marx, ele é determinado, pois a família e a sociedade civil são os pressupostos do Estado e o determinam, caindo (a concepção oposta) num misticismo perante o Estado visto que não explica como, e através de que relações, ele surge, ou seja, em tal formulação condensa- se todo o mistério, todo esoterismo da filosofia hegeliana em geral e como ele se reflete na filosofia do direito, em particular.245

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