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Marx, escola histórica e a afirmação do direito positivo.

O AMBIENTE DO SÉCULO XIX.

2.4. Marx, escola histórica e a afirmação do direito positivo.

Como já se teve oportunidade de discutir, o início do século XIX foi marcado por uma enorme transformação nas ciências em geral e nas ciências humanas, em particular.

128ENGELS, Friedrich. Anti-Dühring. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. P. 75, 95-96.

Para tanto é preciso não olvidar a ocorrência de duas mudanças de porte cujas conseqüências convergiram para o surgimento do marxismo enquanto síntese abrangente das ciências sociais e que se fizeram sentir até na vida do cidadão comum.

A primeira delas – e que dava continuidade ao caráter inovador das concepções racionalistas - estabelecia equivalentes das leis físicas para as populações humanas. A construção de uma sistemática teoria dedutiva da economia política foi o seu primeiro feito e seguiu-se da busca de aplicação de equivalente de leis físicas à vida social.

Esta primeira mudança era um desdobramento da ousada inovação dos racionalistas clássicos que foi a de tentar demonstrar que leis logicamente compulsórias, ou seja, leis naturais, necessárias, causais, seriam aplicáveis à consciência e ao livre arbítrio humanos.

Com tal tipo de rigorismo do racionalismo se chocou o romantismo que, dessa forma tendia a uma oposição radical, visto que é compreensível que seres humanos se ressintam com a afirmação de que suas ações possam ser guiadas por qualquer coisa que não única e tão somente o livre-arbítrio de cada um.

A segunda mudança – esta intimamente ligada ao próprio romantismo – foi o reconhecimento da evolução histórica, ou em outros termos, a descoberta da história como processo de evolução dotado de lógica interna e não mais como mera sucessão de fatos.

A inserção do histórico nas ciências sociais teve um efeito quase que imediato no direito, onde Savigny, por volta de 1815, funda a escola histórica de jurisprudência.130

O historicismo também deitou raízes na teologia histórica e na própria exegese dos textos religiosos, o que depois teria influência decisiva na hermenêutica jurídica.131

130HOBSBAWM, Eric J. A era das revoluções: Europa 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. P. 307-310. 131CORETTI, Emerich. Questões fundamentais da hermenêutica. São Paulo: EPU / USP, 1973. P. 8.

Note-se, aqui, que as principais correntes de pensamento têm, quase sempre, seus correspondentes no campo da ciência, o que nos ajuda a fundamentar mais ainda o paralelo entre ciências, artes e atitudes políticas e sociais.

Como o auge da polêmica entre os historicistas e defensores do direito natural tenha se dado em plena efervescência da cultura romântica, além do que a tese dos historicistas de “retorno às raízes” era comum a aqueles, vários estudiosos acabaram por identificar a escola histórica como uma vertente do próprio movimento geral.

E isso explica como uma corrente tida como meramente literária, o romantismo, adquira uma expressão nas ciências sociais, via escola histórica, embora tal enquadramento seja alvo de polêmicas na historia das idéias, havendo quem reflita numa outra direção ao considerar uma tentação convidativa enquadrar uma vertente jurídica tão expressiva quanto a escola histórica, e seu principal mentor, quer no romantismo quer no classicismo, pois se para uns ele foi um romântico genuíno, para outros ele foi visto como o principal ramo romanístico da escola histórica vinculada ao classicismo alemão.

Em síntese: para uma tentativa de enquadramento teórico da escola histórica e de Savigny tais remissões seriam relativas visto não ter sentido explicá-lo apenas como produto de influências culturais. Tal escola deve antes ser entendida em si mesma e enquanto centro de gravitação de movimentos gerais da cultura de então.132

Para que o positivismo em direito se afirmasse foi necessariamente como condição preliminar que se promovesse um “ajuste de contas” com o jusnaturalismo, até então predominante, com toda sua herança oriunda do racionalismo e de seu desdobramento do final do século XVIII, o iluminismo.

A escola histórica promoveu tal ajuste e preparou o terreno adequado para a afirmação do positivismo jurídico. Ela criticava o forte apego a razão, típico do

132WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. Lisboa: fundação Calouste Gulbenkian, 1980. P.409-410. Numa

outra direção e considerando a escola histórica não como reação ao espírito do século XVIII e sim seu produto mais acabado, ver: MARX, Karl. The philosophical manifesto of the historical school of law. In:

período e a isto opunha a apreensão dos instintos, o resgate da tradição, vendo a história muito mais como caudatária do passado do que antevisão do futuro, ou seja, a matéria do direito atual estava predeterminada pelo passado.133

Apesar de sua crítica ao exagerado racionalismo do período, a escola histórica ajudou a criar as condições de emergência do positivismo – que, em contraposição a esse certo irracionalismo, se afirmou dentro de um ambiente de racionalidade estrita – na medida em que promoveu a crítica ao direito natural, distinguindo-o, como teoria filosófica do direito em si mesmo, do elemento filosófico ou sistemático da filosofia do direito, que pode ser estudada com o direito natural ou sem ele.134

Classicismo e romantismo, como já visto, também tinham expressão no campo das ciências: a adequação do classicismo - que representava o universo newtoniano, racionalista e cartesiano, do iluminismo – com o ambiente liberal e em oposição ao romantismo, que por sua vez se identificava com uma filosofia natural ainda que simplificadora, em certos termos, retém alguns aspectos da verdade.

E talvez mesmo como simplificação explique o fenômeno da aceitação do historicismo na Alemanha - reunindo personalidades tão opostas - pelo fato de que o liberalismo clássico era ali inexpressivo e a filosofia natural com seu caráter empírico-intuitivo em sua vertente romântica, buscando expressar o “espírito da vida”, mais popular.

A filosofia natural – expressão genérica da escola histórica – foi subestimada porque entrava em conflito com o que se considerava ciência. Era especulativa e intuitiva, chocando-se contra o materialismo predominante na época e as vezes contra o próprio racionalismo135.

133WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1980. P. 444.

134 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. P. 9-10. Ele levanta esse

mesmo problema – em outros termos – quando, discorrendo ainda sobre Savigny e escola histórica, se interroga ao examinar o texto do curso de inverno 1802-1803 se ali havia um resíduo jusnaturalista, depois superado, ou se Savigny teria permanecido fiel às posições de combate ao jusnaturalismo tardio. Marx, como vimos no capítulo anterior, dá um acento jusnaturalista à escola histórica. Ver: MARX, Karl. The philosophical manifesto of the historical school of law. In:

www.marxists.org/archive/marx/works/1842/08/09.htm. Em 24/04/2003. P.1-2.

135HOBSBAWM, Eric J. A era das revoluções: Europa 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, exemplifica tal conflito

Mas, como já vimos, não se pode deixar de levar em conta o débito que a filosofia marxista – apesar das polêmicas com a escola histórica – sempre reconheceu ter com a filosofia natural. Aliás, o próprio Hobsbawm lembra que em algumas das obras fundamentais da filosofia marxista é feita uma qualificada defesa da filosofia natural.136

Por ter sido fruto duma época onde a razão foi erigida em parâmetro para tudo

e a exaltação nas potencialidades da ciência ganhou status de dogma, o

surgimento do marxismo em tal contexto – e por ele se assumir como filosofia e ciência da história – fez com que a ele fosse aposto o selo de um determinismo estreito, essencialista e escatológico: teoria que estaria dispensada de qualquer demonstração na medida em que o fim já estava pré-figurado desde o início.

Dessa forma amputava-se de tal sistema de pensamento o que ele – e qualquer outro que mereça tal nome - teria de mais caro: a capacidade de auto- reflexão e de transformação, atitude que só se compatibiliza com uma ética que negue uma ontologia rígida.

Esse período, marcado por grandes mudanças no mundo, foi também o do auge da filosofia clássica alemã – corpo de pensamento formado entre 1760 e 1830 e cuja confluência - quer por identificação quer por oposição - não foi alheia a Savigny (que viveu de 1779 até 1861) e foi contemporâneo de Kant (1724/1804), Hegel (1770/1831), Hugo (1764/1844) e do próprio Marx (1818/1881).

de Newton pela simples razão de que não se sentia feliz com uma teoria que deixava de explicar as cores pela interação de luz e escuridão’.(P.318).

136 ENGELS, FRIEDRICH. Anti-Dühring. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. P.41-64. Nesta parte referente a filosofia da

natureza, Engels estende tal defesa às contribuições de Kant, ao qual Dühring tentava criticar. Dizia Engels, com refinada ironia: “talvez pessoas de menor alcance encontrassem motivos para reflexão no fato de ‘um Kant’ [as aspas são de Engels] achar nisso [na primeira antinomia da razão pura – nota nossa] uma dificuldade insolúvel, nunca, porém, o nosso audacioso fabricante ‘de resultados e de teorias essencialmente originais’ [as aspas são de Engels e a expressão refere-se a Dühring]: o que lhe pode servir na antinomia de Kant ele o copia sem pestanejar, pondo o resto de lado”.

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