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Confronto e convergência teórica entre Hegel e Mar

A CRÍTICA À FILOSOFIA DO DIREITO DE HEGEL E O PROBLEMA DA SOCIEDADE CIVIL

4.7. Confronto e convergência teórica entre Hegel e Mar

A afirmação segundo a qual - apesar do topos argumentativo de Marx,

acerca da operação de inversão na dialética hegeliana – há muitas convergências entre o pensamento de Marx e Hegel, além do fato evidente da matriz do pensamento deste se encontrar naquele – remonta a tradição filosófica do século XX, antes e depois do conhecimento dos chamados manuscritos de Paris.

Os exemplos são vários, mas detenhamo-nos no que interessa para as finalidades desta dissertação:

253 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A ideologia Alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2002. P. 29. 254 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A sagrada família. Lisboa: Presença, 1974. P. 174-175.

255 Marx e Engels tinham grande referência, nos gregos, especialmente em Aristóteles (e, no caso do ‘jovem’ Marx, também

em Epicuro). A este, Marx chama, dentre todos os gregos de o ‘primeiro filósofo das luzes’ e Engels chama àquele de ‘o mais universal de todos os filósofos gregos e um dialético inato’. Ver: MARX, Karl. Diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro. São Paulo: Global, s/data.P. 60 e ENGELS, Friedrich. Do socialismo utópico ao socialismo científico. São Paulo: Edições Sociais, 1977. P.37.

Marx se valeu do conceito de sociedade civil em vários de seus escritos, principalmente ao afirmar que na comunidade política, o homem é um ser coletivo, já na sociedade civil, atua como particular e os outros para ele são apenas meios256;

Na sociedade civil cada indivíduo constitui uma totalidade de necessidades e só existe para ele na medida em que se tornam meios, uns para os outros257;

Esfera das necessidades e das relações materiais de vida e que Hegel resumiu sob o nome de “sociedade civil”258;

A sociedade civil é o autêntico palco de toda história e compreende o conjunto de relações materiais do indivíduo dentro de um estágio determinado de desenvolvimento das forças produtivas259.

Note-se que podemos, grosso modo, falar de dois períodos quanto ao uso do conceito:

a) Até a Ideologia Alemã o conceito de sociedade civil é muito

influenciado por Hegel: esfera dos indivíduos enquanto particularidades e em oposição a generalidade do Estado,

b) Depois de 1845/1846 o vê enquanto esfera das necessidades ou

das condições matérias de vida, tal como coloca na Contribuição à Crítica da economia política, de 1859.

Mas, igualmente ao mestre, parte da separação entre Estado e sociedade civil, dele diferenciando-se tão só quanto a precedência de um ou de outra. O ponto comum em toda essas formulações é que tal esfera seria uma forma de transição de relações feudais, centrada no mundo familiar, para relações jurídicas burguesas, socialmente mais desenvolvidas e fundadas na atividade econômica em ampla escala.

A sociedade civil, surgida da fragmentação da sociedade medieval substitui as sociedades particulares e seus laços corporativos pela ampla e aberta

256 MARX, Karl. A questão Judaica. São Paulo: Moraes, 1991. P. 26.

257 MARX, Karl. Manuscritos económico-filosóficos. (3º manuscrito). São Paulo: Martín Claret, 2002. P. 160.

258 MARX, Karl. Prefacio para a Crítica da Economia Política. In: Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos.

São Paulo: Abril Cultural, 1978. P. 129.

competição, de forma que o único elo entre os indivíduos passa a ser as regras sociais e aí se destaca o direito como a principal dentre elas.

O Estado, que surge – na visão de Marx - como decorrência de tais conflitos na sociedade civil, leva a um limite tão intenso tal oposição, que ele além de negar à administração, aos tribunais e à atividade legislativa qualquer caráter mediador nos conflitos entre um e outro, rejeita qualquer aspecto de neutralidade ao Estado e passa a formular sua supressão, bem como a eliminação da propriedade privada e da própria sociedade civil enquanto arena de confronto de interesses egoísticos.260

Já em Hegel, por sua vez, a sociedade civil ou sociedade burguesa corresponde a aqueles indivíduos que deixam de serem subordinados à esfera familiar e adentram no mundo dos interesses econômicos.

A formação de tal esfera resulta de uma necessidade social visto a importância de se constituir um espaço despolitizado e focado nos interesses materiais.

A economia que, primitivamente, nada mais era do que conjunto de regras para a direção das famílias (e, portanto, dependente da polis) adquire, com a afirmação da sociedade civil, uma dimensão não apenas autônoma, mas, fundamentalmente, preponderante.261

A sociedade civil opõe-se ao Estado – sociedade política por excelência – mas este tem primazia sobre aquela, regulando-a, inclusive, visto que ela é um palco de lutas em prol de necessidades particularistas e, portanto, autodestrutivas.

É o Estado, em Hegel, o meio de fazer prevalecer a universalidade sobre as particularidades, gerando a sociedade civil e esta, a sua vez, rompendo laços familiares e primitivos, tornando o indivíduo um “seu filho”, com a educação incorporando o valor anteriormente atribuído à religião.262

260 ATIENZA, Manuel. Marx y los derechos humanos. Madrid: Mezquita. 1985. P. 42 e ss.

261 BECCHI, Paolo.“Distinciones acerca del concepto hegeliano de sociedad civil”. In: Doxa – Cuadernos de Filosofía del

Derecho. Nº 14. 1993. P. 385 e 393-394.

Por fim, a crítica de Marx à filosofia do Direito de Hegel, especialmente a metáfora da inversão – Hegel toma por sujeito aquilo que é predicado – não deve servir de fundamento a que se subestime as idéias daquele para quem Marx sempre rendeu justas homenagens.

Mas, o reconhecimento à Hegel, nas gerações marxistas pós-Marx, ainda está por acontecer (afinal, como afirmou o próprio Hegel, a filosofia sempre chega depois).

Tal “resistência” a Hegel pode se explicar no fato de que se faz uma adesão apressada à Marx, quando este critica a dialética hegeliana como “metafísica”.

Daí a se inferir, de forma superficial e pueril, pela negação de qualquer mérito a Hegel, vai razoável distância.

Nunca foi gratuita toda a reverência que Marx manteve sempre em relação à Hegel.

Primeiramente pelo que desvelou em filosofia. Mas também pelos problemas que deixou para as gerações seguintes se debruçarem.

E isto não é pouco. O próprio Marx afirmara, categoricamente: formular um problema é resolvê-lo263, pois a humanidade não se coloca questões para os quais

já não tenha criado as condições de solucioná-lo.264

Quais questões perpassam a crítica de Marx à Filosofia do Direito de Hegel? Pelo menos algumas se afiguram importantes:

1) Nos escritos anteriores a crítica não era colocada a oposição entre

sociedade civil e Estado. Para Marx, como vimos linhas atrás, tal contraposição é uma característica do Estado moderno perante o Estado feudal;

2) Um segundo dado era que tal oposição não era, como em Hegel,

ideal, e sim, real. Ou seja, em Marx nega qualquer caráter mediador, entre Estado e sociedade civil, aos órgãos do próprio Estado;

1) Embora parta, como Hegel, da separação entre Estado e sociedade civil, enquanto categoria explicativa do mundo moderno, Marx inverte o raciocínio hegeliano: a sociedade civil não é determinada pelo Estado e sim, determina-o, é elemento atuante (e não atuado) pela idéia real (o Estado).265

Hegel, antes de colocar respostas – e as colocou, em grandes e cruciais temas – formulou questões. Todas, essenciais ao desenvolvimento de toda filosofia posterior, pois dúvidas e problemas são condições essenciais à atividade filosófica.

A atitude de Marx para com Hegel – um comportamento de amplo respeito científico e intelectual – reforça a idéia do que chamamos de padrão ético centrado não apenas na tolerância, visto que não era apenas disso que se tratava, e sim de uma visão do conhecimento como processo de construção e onde ninguém tem a última palavra.

Em relação a Hegel, certamente Marx diria, com Brecht: ele formulou projetos.266

E um deles, a abordagem das questões de teoria de conhecimento, que

Hegel enfrenta, de forma profunda, na introdução da Fenomenologia do

Espírito, Marx retoma, não só nas suas obras até 1845, como também nos textos da maturidade. É o que trataremos no capítulo seguinte.

264 MARX, Karl. Para a crítica da economia política – Prefácio. In: Manuscritos econômicos-filosóficos e outros escritos. São

Paulo: Abril Cultural, 1978. P. 130.

265 ATIENZA, Manuel. Marx y los derechos humanos. Madrid: Mezquita, 1985. P. 41-43.

266 Brecht em um de seus poemas reivindica que, se absolutamente imprescindível colocar algo em seu túmulo, fosse

escrito: ‘ele formulou projetos’. Algo que, além de formular problemas, pode também se dizer de Hegel. In: Peixoto, Fernando. Brecht – vida e obra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974. P. 289.

CAPÍTULO 5

OS PROBLEMAS DA FORMULAÇÃO DE UMA TEORIA DO

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