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O pensamento de Demócrito no contexto dos pré socráticos

O LEGADO DA CULTURA GREGA

1.1. O despertar pela filosofia

1.1.2. O pensamento de Demócrito no contexto dos pré socráticos

A afirmação da escola atomista (inicialmente com Léucipo e posteriormente com Demócrito) teve como um de seus fundamentos a reformulação da noção de espaço, derivada da escola pitagórica.33

A concepção cosmológica do pitagorismo dependia, para sua coerência, da noção de número, entendido este como sucessão de unidades descontínuas.

32 MARX, Carlos. Diferencia entre la filosofia democriteana y epicúrea de la naturaleza. In: Escritos de Juventud. México:

Fondo de Cultura, 1987. P. 18.

33 Para o contexto de surgimento do atomismo e a exposição dos aspectos principais da sua crítica ao pitagorismo, nos

O pitagorismo, entretanto, traz no cerne de sua formulação uma aporia que deixava em crise a coerência do próprio sistema: a idéia dos intervalos que separariam as unidades.

Tais intervalos só poderiam ter, no mínimo, o tamanho de uma unidade e, dessa forma, o número de unidades cresceria ilimitadamente (porque ilimitado os números), com o que cada coisa tenderia a tornar-se infinita.

A superação dessa aporia levaria – como de fato levou – a reformulação da noção de espaço, o que se deve à escola democriteana.

Partindo da concepção eleática34 de que a existência do movimento

pressupõe a existência do não-ser, Demócrito afirma, pela primeira vez, a realidade do vazio.

Ou, dito de outro modo: o movimento existe porque eu penso e o pensamento tem realidade, mas, se há movimento, este pressupõe um espaço vazio, o que nos permite dizer que o não-ser é dotado de tanta realidade quanto o próprio ser.35

E é no vazio que se movimentam os átomos. O universo, portanto, seria um todo formado por dois princípios: átomos e vazio.36

Mas, antes de tratar do próprio movimento é de se tratar da infinita, ou não, partibilidade dos átomos. E aqui fica claro um pressuposto que é próprio do atomismo: na concepção original havia um limite nessa divisão e é tal concepção que se chama de atomismo.

Contemporaneamente sabemos que não é assim, visto que já na física a idéia original de átomo teve de ser revista e o pressuposto teórico de um “mínimo

34 O eleatismo (ou ‘escola eleática’ – em homenagem a Eléia, sul da Itália) tem suas principais expressões em Parmênides,

Zenão e Melisso e inaugura, em filosofia, a problemática do ser ao afirmá-lo como ‘o que é’. Ver: RUSSELL, Bertrand.

História do pensamento ocidental: a aventura das idéias – dos pré-socráticos à Wittgenstein. Rio de janeiro: Ediouro, 2002. P. 34-39.

35 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da filosofia na época da tragédia grega. . In: Os pré-socráticos. São Paulo: Nova

Cultural, 1996. P. 303-308. Ele também lembra que, de todos os sistemas antigos, o de Demócrito é o mais lógico: pressupõe a mais rigorosa necessidade, que encontrar-se-ia presente em toda parte e não admitindo nem interrupção brusca, nem intervenção estranha no curso natural das coisas.

abstrato” indivisível foi ocultando-se cada vez mais nas entranhas da própria natureza.37

Demócrito admitia dois tipos de movimentos do átomo – esta será uma das diferenças entre sua física e a de Epicuro, injustamente acusado de ser um mero plagiador – a queda (ou declinação) em linha reta e a repulsão dos diversos átomos entre si.

Por fim, Demócrito defendia um conhecimento da physis- conceito que, ao contrário do que parece sugerir, é bem mais complexo, podendo ser visto em, pelo menos, três acepções fundamentais: o de um princípio autogerador, ora como algo que abrange o psíquico, ou ainda como totalidade de tudo o que é.

Trata-se, portanto, de ter claro o significado originário da palavra e a ele não misturarmos as noções correntes de física38.

Assim, ele distinguia o conhecimento sensível - que trataria da percepção pelo sujeito da realidade objetiva e que ele chamava de conhecimento “bastardo”, do conhecimento legítimo – que seria o que garantia a percepção exata e racional das coisas39.

Com isso, se colocava objetivamente em oposição ao relativismo dos sofistas, o que se expressaria, por exemplo, na discutida – e nem sempre bem compreendida - afirmação de Protágoras, pela qual “o homem é a medida de todas as coisas”, e que se prestou a se rotular os sofistas como relativistas, obscurecendo o humanismo radical que coloca o homem como medida de tudo. Esse humanismo acabou abafado pelo preconceito que se criou contra essa corrente que, ao invés de sábios, como a etimologia da palavra está a indicar, virou sinônimo de charlatães.

Para estudiosos do período, ele foi o primeiro grego a concretizar a essência do que veio a, posteriormente, se chamar de ‘espírito cientifico’: explicou, de modo

37 CASTRO JUNIOR, Torquato da Silva. A pragmática das nulidades e a teoria do ato jurídico inexistente (reflexões sobre

metáforas e paradoxos da dogmática privatista romanista). São Paulo: PUC, 2003 (tese de doutorado). P. 143.

38 BORNHEIM, Gerd (org.). Os filósofos pré-socráticos. São Paulo: Cultrix, 2003. Estudo introdutório. P. 11-14 e JAEGER,

Werner. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 2003. P. 196.

39 Por isso afirma: ‘por convenção (nomos) existe o doce, o quente, o frio; na realidade, somente átomos e vazio’. Ver:

concatenado e plenamente coerente uma ampla gama de fenômenos, sem lhes acrescentar, nas ocasiões de dificuldade, um deus ex machina.40

Ele resumiu, em sua formulação, já citada, e segundo a qual no mundo tudo são átomos e vazio todo um imenso período anterior de especulação dos gregos acerca da natureza.

1.1.3. Dialética e determinismo

A dialética faz parte de uma certa herança intelectual que os gregos legaram a humanidade, que remonta desde a afirmação heracliteana que

“ninguém se banha no mesmo rio duas vezes”41, o que remete-nos a idéia de

movimento permanente de tudo.

Demócrito é herdeiro dessa tradição que vem de Heráclito, a qual afirma que a única coisa absoluta é o movimento.

Embora seja um conceito problemático, valemo-nos, para os fins aqui propostos, da idéia hegeliana de dialética – que foi recepcionada, no essencial, pelo autor objeto de nosso estudo.

Segundo Hegel, ela é, ao mesmo tempo: a) dialética externa, enquanto raciocínio que não se dissolve em si mesmo; b) dialética imanente do objeto; c) dialética enquanto objetividade proposta por Heráclito, ou seja, vista como princípio, é o progredir enquanto necessidade e o absoluto enquanto unidade dos contrários. Por isto, para Hegel, é de Heráclito que se deve datar o começo da filosofia.42

Certamente podemos dizer que é através de análises apressadas dessas concepções das origens da dialética que se atribui, ao nosso ver incorretamente, ao marxismo uma atitude ontológica e intolerante. Se isto pode ser afirmado tendo

40 NIETZSCHE, Friedrich. “O nascimento da filosofia na época da tragédia Grega”. In: Os pré-socráticos: fragmentos,

doxografia e comentários. São Paulo: Nova Cultural, 1986. P. 311.

41 BORNHEIM, Gerd (org.). Os filósofos pré-socráticos. São Paulo: Cultrix, 2003. P. 36. A passagem encontra-se no

fragmento 12.

42 HEGEL, Georg W. F. Preleções sobre a história da filosofia. In: Os pré-socráticos. São Paulo: Nova Cultural, 1996. P. 102 e

em vista determinadas leituras que dele se faz, seguramente é incorreto em relação ao próprio Marx, como temos reafirmado até aqui.

A oposição que uma leitura prima facie poderia fazer seria: como conciliar uma visão de eterno movimento, de que tudo muda, com a idéia de determinação, que pode conter um conteúdo de “fixidez”?

É importante lembrar que a determinação de que aqui se trata é a necessidade, a causalidade, o que não nega – ao contrário – uma concepção dialética da realidade.

Claro que modernamente sabe-se que a necessidade não pode nem ser reduzida à mera relação de causa e efeito – como uma interpretação meramente reflexionista admitiria – nem pode deixar de levar em conta que a causalidade não pode ser transposta mecanicamente da natureza para a sociedade.

Pois embora possa se falar de realidade do objeto, isto é de sua existência independente do sujeito não se pode reduzir tal consideração a um mero clichê, visto que se aparência e essência coincidissem sempre a ciência – a filosofia também, eu acrescentaria (E.F.) – tornar-se-ia supérflua em suas tentativas de entender e explicar o mundo.43

Como lembra Marx – do qual (como, aliás, de todos os filósofos dignos deste nome) não se devem fazer leituras superficiais e / ou apressadas - a verdade científica é sempre paradoxal quando olhada pelo senso comum, que só apreende a aparência das coisas.44

O próprio Marx, na tese de dissertação – como veremos em sede própria – contrariamente ao que uma leitura apressada dele esperaria, mostra clara simpatia por Epicuro (que defende o acaso) e se opõe ao determinista Demócrito.

É de sua concepção de mundo, de necessidade, de sua visão da natureza, enfim, de physis pensada em termos da tradição grega, que se passa a tratar a idéia de determinação, em Demócrito.

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