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QUARTO CAPÍTULO Trisha Brown: Ilhas De Sentido

4.2 Ready Mades Coreográficos

59 Trisha Brown atribui a Anna Halprin a elaboração da noção de tarefas ou instruções (tasks), procedimento amplamente

adotado pelos artistas que frequentavam os laboratórios de criação no Judson Memorial Church. Segundo Brown, tais tarefas “[...] estavam um nível acima de recorrer aos movimentos cotidianos para composição, por vezes sujeitas a tiques e maneirismos” (BROWN apud HUYNH, 2014, p.19-20).

Susan Sontag se refere aos bailarinos e coreógrafos desse período, brevemente descrito acima como neo-duchampnianos (SONTAG, 1987, p.58), ou seja, herdeiros artísticos do escultor francês Marcel Duchamp (1887-1968), membro do movimento dadaísta europeu. Em um manifesto publicado em 1916, os artistas dadaístas60 propunham uma nova visão do ato criador, cujas palavras de ordem

eram, justamente, desordem, desorganização, destruição e dessacralização (ROUX, 2007). Duchamp, um dos principais expoentes de tal movimento, foi o autor da noção de ready made, termo emprestado da indústria da vestimenta, que implica a transposição de objetos práticos do cotidiano, sem nenhuma alteração material, em objetos de arte, cujo exemplo mais reconhecido é a obra Fonte (1917), que consiste em um urinol de louça branca, assinado pelo artista, transformado em obra de arte.61

De fato, Sontag (1987) aponta para uma anacronia interessante. Em tais criações, os artistas da dança valiam-se de diversos ready mades corporais, provenientes do cotidiano, do cidadão comum. Caminhar, correr, escalar, rolar… ações ordinárias do ser humano passaram a ser atividades emblemáticas do repertório coreográfico pós-moderno, acontecendo cenicamente de forma ainda não previamente explorada, o que, nesta tese, denomina-se “ready mades coreográficos”.

Outro ponto importante a se ressaltar é o fato da ausência de uma lógica interpretativa, ou seja, a ausência de uma necessidade do artista em criar um material para que o público possa interpretar. De fato, não somente a dança, mas grande parte das manifestações artísticas predominantes, da época, buscaram um distanciamento da interpretação, explorando principalmente formas parodiais, abstratas, decorativas e, até mesmo, a não-arte (SONTAG, 1987).

Inúmeras referências e influências podem ser reconhecidas no âmbito da dança pós-moderna. Dentre eles, pode-se citar os movimentos artísticos acontecidos no suíço Cabaret Voltaire, um dos principais redutos onde se encontravam e se apresentavam os artistas membros do Dadaísmo em Zurique, na segunda década dos anos 1920, que, por sua vez, influenciaram artistas europeus e americanos. Já nos Estados Unidos, o artista plástico Jackson Pollock (1912-1956) imprimia sua marca, influenciando igualmente artistas dos dois continentes por meio do trabalho que desenvolvia, conhecido como Action Painting.

Movimento definido pelo crítico Harold Rosenberg (1952) como uma arte na qual a tela passou a se transformar em uma espécie de arena, em que o pintor atuava e sua pintura se tornava um acontecimento. Tal vertente artística associava-se ao Expressionismo Abstrato, cujas influências em

60 Dada ou Dadaísmo foi um movimento artístico europeu avant-garde no século XX. Começou em Zurique na Suiça em

1916.

coreógrafos atuantes nos Estados Unidos, como Simoni Forti, Yvonne Rainner e a própria Trisha Brown podem ser visivelmente percebidas. Para Forti (1935), por exemplo, a descoberta do Action Painting coincide com o período que frequentava os workshops de Halprin, na Califórnia, onde realmente começou a experimentar a improvisação e onde percebeu, de forma reveladora, como os movimentos primários resultantes das criações com a pintura permitiam uma experiência corporal particular (ROUX, 2007).

Entremeadas por outras tantas referências, é possível apontar, ainda, como um dos ramos da genealogia desse movimento (a dança pós-moderna), os trabalhos, experimentos e pesquisas realizados na Black Mountain College, catalisados a levados à Nova Iorque, principalmente, pelas mãos da dupla Cage/Cunningham, já em meados dos anos sessenta.

Assim, ao se observar os eventos artísticos e multidisciplinares que aconteceram no intervalo que ocorreu entre as décadas de vinte e quarenta, assim como entre os anos sessenta e setenta do século XX, também na Europa, e mais acentuadamente nos Estados Unidos, é possível perceber que a dança atravessava e era atravessada por uma vibrante onda de subversão, algo que pode ser definido como uma verdadeira ampliação desse campo artístico, em analogia à noção de campo expandido da escultura, conforme define Krauss (1979). Portanto, ao expandir suas fronteiras, a dança passou a iluminar (ou obscurecer) um universo de possibilidades de leituras, de (não) interpretações, demandando que as reflexões e conceitos sobre esse novo fazer artístico sofressem uma urgente reavaliação.

Ao escrever sobre a expansão da escultura, Krauss (1979) propõe um olhar que não foca mais no pedestal, no objeto inanimado em mármore ou bronze, mas em um universo de possibilidades escultóricas, cujo conceito se torna tão infinitamente maleável, ao ponto de abrigar obras surpreendentes. Trabalhos que podem evaporar no espaço, deteriorar-se, apodrecer, ocupar espaços públicos e/ou privados, igualmente inesperados, “[...] numa demonstração extraordinária de elasticidade, evidenciando como o significado de um termo cultural pode ser ampliado a ponto de incluir quase tudo” (KRAUSS, 1979, p.1, tradução da autora).62

De fato, tal ampliação cultural alastrou-se por vários campos artísticos, como aponta Fischer- Lichte, quando se refere a obras do teatro contemporâneo, nas quais também emergiram poéticas com propostas de leituras além da interpretação e que buscavam descobrir “[...] o significado antropológico

62 No original: “[..] in an extraordinary demonstration of rlasticity, a display of the way a cultural term can be extended to include just about anything”.

do performativo, o sentido do sensorial, ao invés dos possíveis significados de textos individuais” (FISCHER-LICHTE, 2012, p. 7).

Em sintonia com a noção proposta nesta tese de ready made corporais, o uso de ready made verbais em Robert Wilson, por exemplo, como explica Fischer-Lichte, se dá por meio da utilização de elementos pré-fabricados, por frases da fala cotidiana, como: “cê vai bem?”, “me deixe em paz!”, “não me diga!” etc. Tais frases formam o material escrito a posteriori – ao contrário de um texto escrito a priori que, ao desconstruir a linguagem, impossibilita a interpretação literal do texto, deixando apenas como possíveis pistas para leituras, seus procedimentos subjacentes, tais como as especificidades do figurino, cenário, iluminação e som, dentre outras particularidades de cada cena (FISCHER-LICHTE, 2012, p. 7).

Em Brown, as interpretações (im)possíveis para suas obras coreográficas alojam-se no universo sensorial do espectador e é também por meio de seus procedimentos subjacentes que o público pode buscar ler as suas obras. O espírito de rebelião da época, somado à liberdade lúdica criativa das gerações mais jovens, promoveram uma amplitude artística até então desconhecida, comparada talvez somente aos experimentos dadaístas das vanguardas históricas, fazendo com que a plateia fosse obrigada e se colocar em uma outra postura, que não somente aquela de espectador passivo, sentado confortavelmente em sua poltrona. Aliás, conforto não era mais uma prerrogativa do artista pós- moderno, muitas obras desse período causavam justamente um grande desconforto, não somente para quem as fazia, como também para quem as assistia.

O exemplo original de onde se empresta a noção de ready made proveniente das artes visuais merece ser novamente evocado. Um urinol colocado em um museu pode ser entendido como obra de arte, assim como um homem suspenso por uma corda de alpinismo, descendo horizontalmente, caminhando na lateral de um prédio, ou a simples acumulação de gestos e movimentos podem ser vistos então como autênticas obras coreográficas, levando os limites do corpo e da imaginação ao extremo.

Nesse sentido, é possível perceber como os trabalhos de Trisha Brown, principalmente em sua fase inicial, conhecida como seus Early Works, enquadram-se dentro desse escopo artístico não interpretativo, não hermenêutico, que prevê uma experiência sensorial – diferente da busca consciente, literal e explicativa, algo como uma “hipertrofia intelectual” como define Sontag (1987, p.7) – e que remetem à noção de Cultura de Presença – mais do que à de Cultura de Sentido – nos termos definidos por Gumbrecht (2010) como será desenvolvido no próximo tópico.