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TERCEIRO CAPÍTULO Vaslav Nijinsky: Pré-Pós-Moderno

3.2 Pré-Pós-Moderno

Nijinsky foi, antes de mais nada, um bailarino. Formado na tradicional Escola Imperial de Ballet de São Petersburgo, a escola russa de maior prestigio de sua época, ele aprendeu com grandes mestres os clássicos do repertório russo que se tornaria universal. Dono de uma estatura baixa e corpulenta para os padrões dos bailarinos de sua época, o jovem artista se transformava em cena, tendo sido notadamente reconhecido pela sua elegância, grande expressividade e virtuosismo. Nijinsky tornou-se,

41 L’après midi d’un faune foi o único trabalho de Nijinsky notado pelo próprio coreógrafo. Tal notação, hoje decodificada e amplamente documentada, endossa a escolha por tal obra, uma vez que, além de oferecer uma versão mais próxima do original, disponibiliza maior quantidade de materiais para referência e interlocução com outras pesquisas.

ao lado de Tamara Karsavina (1885-1978) e Anna Pavlova (1881-1931), uma das maiores estrelas do Ballet Russo, tão logo ingressou na companhia Les Ballets Russes de Serge Diaghlev (1872- 1829)42,

no ano de 1909.

Figura 24: O jovem bailarino Vaslav Nijinsky. Foto: fotógrafo desconhecido. Fonte: Teoria de la

Danza, 2015.

Se em um primeiro momento Nijinsky foi um dos bailarinos solistas dos já inovadores balés de Michel Fokine, para quem o coreógrafo criou personagens emblemáticas, como o escravo de Sheherazade (1910), Petrushka (1911), O Pássaro de Fogo (1910) e O Espectro da Rosa (1911), rapidamente passou de protagonista a criador de suas próprias obras, com o apoio e aval do grande empresário Serge Diaghlev.

42 Serge Diaghlev foi um grande empresário das artes, fundador da companhia Les Ballets Russes, com origem Russa, mas sediada em Paris. Diaghlev revolucionou o formato das companhias de dança e trouxe à cena ilustres bailarinos e coreógrafos no século XX.

Figura 25: Nijinsky em O Espectro da Rosa, ano desconhecido. Fotógrafo desconhecido. Fonte:

Teoria de la Danza, 2015.

Responsável pela criação de um repertório coreográfico – composto por apenas quatro obras – L’après-midi d’un faune (1912), Le Sacre du Printemps (1913), Jeux (1913) e Till Eulenspiegel (1917), Nijinsky não precisou de muito tempo para obter uma grande repercussão de público e de crítica. Na verdade, tal repercussão foi imediata, desde seu primeiro balé L’après midi d’un faune, obra que atingiu como uma bomba a cena cultural parisiense. Com esse espetáculo Nijinsky deixaria a sua marca, de maneira irrevogável, na história da dança.

Segundo sua irmã e colaboradora, a bailarina e coreógrafa Bronislava Nijinska (1891-1972), já em seu primeiro balé ele demonstrava ter objetivos claros e precisos:

Eu vou tomar distância da Grécia Clássica, utilizada a todo momento por Fokine. Olharei mais para a Grécia arcaica, muito menos conhecida e até o presente momento pouco encenada. Essa será a minha única fonte de inspiração. Eu quero traduzi-la da minha maneira. Todo sentimentalismo da forma ou do movimento será excluído (NIJINSKY apud NIJINSKA, 1981, p. 279).

O primitivismo, a busca pela ancestralidade e pelos rituais pagãos era uma tendência já em voga no universo artístico do fim do século XIX. Não somente em Fokine, mas a própria Isadora Duncan já havia olhado para a Grécia – ainda que a Grécia Clássica – em busca de referências para sua dança. Conforme Huesca observa, “[...] o primitivo, ao pé da letra, se opõe a tudo que é evoluído, o termo remete também a noções de origens, a princípios de irredutibilidade” (HUESCA, 2012, p. 40). Nessa busca pelo original, ao contrário de se instaurarem como meros copistas de modelos históricos, tais artistas traçavam um novo caminho, que dinamizava a dança e afastava a coreografia definitivamente das representações até então vistas nos balés de repertório clássico. Desse modo, o rompimento com a tradição da época, assim como as reformas na dança acadêmica podiam ser percebidas não somente nas obras de Isadora Duncan e Loie Fuller, mas também nas obras de Fokine, assim como em seus escritos, já previamente apontados. Mas Nijinsky foi muito além das tendências da época.

Em L’après-midi d’un faune (1912), Nijinsky co-assina a autoria da obra com Claude Debussy (1862-1918), compositor da música Prélude à l’après-midi d’un faune, um poema sinfônico, cuja data de composição remete aos anos entre 1892 e 1894. Debussy, por sua vez, compôs tal música inspirado no poema L’après-midi d’un faune, escrito em 1865 por Stéphane Mallarmé (1842-1898) e publicado em 1876, com ilustrações do pintor expressionista francês Edouard Manet (1832-1883). O cenário e o figurino do espetáculo foram assinados por Leon Bakst (1866-1924).

Figura 26: Programa da temporada de 1912 dos Ballet Russes. Foto: Gisela Dória (acervo pessoal).

Fonte: Biblioteca do Palais Garnier, Paris, 2015.

De suas quatro obras, o Fauno foi a única que o coreógrafo registrou. Nijinsky desenvolveu em 1915 seu próprio sistema de notação coreográfica, baseado no método criado em 1892 por Vladmir Stepanov (1866-1896)43, com quem teve contato durante a sua formação na escola Imperial Russa. Não

por acaso, tal obra foi a única que restou quase intacta. Seguindo a tradição de transmissões orais, como é de costume no universo da dança, essa obra atravessou o século XX com inúmeras remontagens feitas por variadas companhias de repertório clássico, mais ou menos fiéis à sua versão original, até finalmente ter seu registro de notação decodificado nos anos oitenta pela dupla Hutchinson-Guest e Jeschke.

43 Vladmir Stepanov foi bailarino do Balé Imperial em São Petersburgo, publicou, em 1892, L’Alphabet des Mouvements du Corps Humain, um livro de notação para dança que codificava os movimentos de dança com as notas musicais.

Segundo Hutchinson-Guest, é possível perceber no sistema original de notações de Nijinsky “[...] habilidades analíticas e conceituais remarcáveis, tanto como teórico da dança quanto como coreógrafo” (2010, p. 11). Nesse material, decifrado também por meio de depoimentos e de fotos existentes, fica evidente a preocupação do artista com o registro de sua obra, a fim de que ela permanecesse mais próxima possível de sua concepção, deixando claras suas escolhas em nível de dramaturgia, estilo de movimento e interpretação musical.

Durante o curto período que Nijinsky permaneceu na companhia Le Ballets Russes de Serge Diaghlev, seja como bailarino ou como coreógrafo, sua contribuição para a dança foi contundente. No entanto, após a ruptura com o empresário russo, sua carreira não teve a continuidade nem os desdobramentos previstos. Após casar-se em 1913 durante uma turnê pela América Latina com a aristocrata e bailarina húngara Romola Nijinsky, originalmente Pulszky (1891-1978), Nijinsky foi desligado da companhia, acusado de traição por Diaghlev, que fora seu amante, além de protetor. Sem o apoio artístico e emocional do empresário e com um comprometimento acelerado de sua estrutura psíquica, Nijinsky interrompe definitivamente sua produção artística. Diagnosticado como psicótico, ele passou os últimos anos de sua vida internado em um hospital psiquiátrico. No entanto, a precoce interrupção de sua carreira não a fez menos importante.

Dentre as implicações que emergem desse percurso de Nijinsky – intrinsecamente associadas com a relação aqui buscada entre sincronia e diacronia – duas merecem destaque a partir não de uma dicotomia, mas de uma dinâmica complementar, uma vez que a dança não é, literalmente, uma arte estática, mas se transforma no percurso do tempo. Se por um lado, em função de seu contexto histórico, ou em função de seu apecto sincrônico, Nijinsky pode ser considerado um bailarino clássico, uma vez que suas obras são inseridas e coexistem em um período que é ainda considerado pertencente ao balé; por outro lado, ele poderia ele ser visto como um antecipador do movimento pós-moderno na história da dança ocidental, o que, por sua vez, diz respeito ao seu aspecto diacrônico, ou seja, suas transformações, que antecipam não apenas cronologicamente, mas sobretudo esteticamente, um movimento ainda por vir.

Considerando-se sua preocupação com o registro, a redução provocativa da forma, o rompimento com a subserviência musical, a evocação das imagens presentes no texto de referência, dentre outras características, pode-se observar que esses elementos só foram explorados efetivamente na dança ocidentaldécadas depois de seu falecimento, como o fez o coreógrafo Merce Cunningham e os artistas que participaram do Judson Dance Group, dentre outros nos anos cinquenta/sessenta.