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QUINTO CAPÍTULO

5.2 Em Busca de uma Dramaturgia Particular

Ao contrário de alguns coreógrafos da sua geração, Borelli não costuma ter um parceiro dramaturgista, ele se encarrega sozinho da coreografia, da encenação e da direção de sua companhia. Considerando-se ele próprio o dramaturgista de suas obras, o coreógrafo afirma não sentir falta de um interlocutor, de um olhar de fora. Ao contrário, para ele a solidão é uma condição vital durante o seu processo de criação. De fato, Borelli alega não gostar nem mesmo de saber o que os bailarinos pensam, quais são as suas opiniões e sensações a respeito do trabalho (BORELLI, 2012).

No entanto, esse espírito centralizador não implica em uma não participação de seu elenco na criação. “Borelli dá um estímulo, o bailarino reelabora, o coreógrafo põe um ponto final (…) ele não abre mão de sua assinatura” (FERNANDO, 2009, p.54). Embora mantenha esse comportamento aparentemente monopolizador, segundo um de seus colaboradores mais frequentes, o bailarino, Roberto Alencar78, a parceria coreógrafo/bailarino com Borelli se dá de forma altamente colaborativa.

O coreógrafo cria no corpo de seu intérprete, a partir de suas possibilidades, que são testadas e exploradas ao extremo.

No que diz respeito ao diálogo com outros elementos cênicos, tais como a cenografia, o figurino, a trilha sonora e a iluminação, eles são considerados menos importantes, pois, para o coreógrafo, eles vêm depois da montagem coreográfica; o movimento vem sempre em primeiro lugar (ALENCAR, 2013). Embora Borelli já tenha trabalhado em parceria com outros artistas, por exemplo, os iluminadores Iacov Hillel e Domingos Quintiliano, ambos parceiros de Borelli em mais de uma de suas criações, atualmente o coreógrafo tem preferido centralizar todas as funções em si próprio e, mesmo quando criados por cenógrafos colaboradores, os cenários de seus espetáculos normalmente se valem apenas de alguns objetos de cena, invariavelmente localizados na caixa preta; assim como a luz, que tende a ser bastante sombria, sem muitos efeitos e sem cor.

No entanto, ainda que tais elementos sejam visivelmente programados para não atrair atenção, para não distraírem o público daquilo que, para o autor, é certamente o principal, ou seja, a dança, seus

78 Roberto Alencar é ator e bailarino, integrou o elenco da companhia de Borelli de 1999 até 2010, retornando eventualmente para projetos específicos e atuando também como ensaiador e assistente de coreografia em diversos trabalhos.

cenários e iluminação acabam, muitas vezes, produzindo um efeito contrário, chamando atenção justamente por conta de sua austeridade e aridez.

Em relação à trilha sonora, existe uma busca de descolamento, de não dependência; a coreografia não depende da música. De fato, o coreógrafo afirma gostar de alterar as músicas durante os ensaios (BORELLI, 2012), emprestando trilhas de espetáculos anteriores, revezando-as. Assim, longe de possuir uma função ilustrativa ou de acompanhamento para os movimentos – embora permaneça muitas vezes como uma paisagem sonora, automatizada em um fluxo constante e até mesmo monótono – ela se converte em mais uma camada dramatúrgica; mesmo caminhando paralelamente à dança, as trilhas sonoras intensificam o potencial expressivo de seus espetáculos.

Quanto aos figurinos, especialmente nessa trilogia kafkiana, ele é proposto em tons preto e cinza, e as roupas são cotidianas: calças, camisas, casacos e sapatos, geralmente artigos masculinos, utilizados tanto pelos homens quanto pelas mulheres, que compõem seus elencos. De forma semelhante, nas três obras que serão analisadas, essas roupas de cena colaboram para a construção de uma androginia em seus personagens. Se, por um lado, tal escolha pasteuriza e homogeneíza seus bailarinos, por outro, ela promove uma liberdade de interpretações, visto que torna possível a todos atravessarem e exercerem todos os papéis existentes dentro de cada espetáculo, a partir também do que o próprio público percebe em suas leituras individuais.

Desse modo, os vários elementos que compõem cenicamente suas obras, embora sejam escuros e opacos, buscam paradoxalmente uma estética de quase transparência. O movimento ganha dimensão de predominância absoluta, ele atravessa as barreiras de luz, dos figurinos, dos acessórios, sobrepondo-se em um primeiro plano, transformando-se na voz que fala mais alto, mais do que as outras vozes que compõem a polifonia coreográfica de Borelli, produzindo, o que pode ser considerada, uma consistente dramaturgia do movimento.

Antes de prosseguir pelo universo kafkiano de Borelli, aquele dos ambientes sombrios, da movimentação sobreposta, de sons alternados em sinfonias clássicas e barulhos obscuros, cabe colocar outra questão. Poderia toda obra coreográfica, cuja predominância é o movimento, ser definida dentro de um parâmetro único, cujo pressuposto envolveria uma dramaturgia do movimento? Essa discussão é extremamente importante, pois ela implica na reflexão sobre as aproximações entre dança e dramaturgia do movimento. Seria o movimento o elemento catalisador de todos os outros componentes (figurino, cenografia, trilha sonora...), ressignificando-os dinamicamente?

Sem o intuito de uma resposta a todas essas indagações, há que se observar que, assim como é possível perceber uma inumerável quantidade de dramaturgias, como foi visto na lista de tipologias, no segundo capítulo, é possível também vislumbrar uma pluralidade de dramaturgias do movimento, não necessariamente e somente associadas à dança. Nas artes da cena, tem-se como exemplo espetáculos teatrais de qualquer gênero, desde os mais realistas até os mais abstratos, passando-se pelo teatro físico, pela mímica, pelo circo-teatro etc. Essas manifestações envolvem processos em que movimentos são tecidos, articulados, e transformados.

Sendo assim, problematiza-se ao mesmo tempo. a noção de dança e de movimento. De fato, se, por um lado, a dança pode levar a uma percepção mais ampliada de movimento, por outro, seria redutor ver a dramaturgia de movimento meramente como sinônimo de dança.

Desse modo, a reflexão segue em torno da possibilidade de se perceber as variações e as especificidades da(s) dramaturgia(s) de movimento; e de que maneira as coreografias kafkianas de Sandro Borelli poderiam colaborar para esse entendimento.