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TERCEIRO CAPÍTULO Vaslav Nijinsky: Pré-Pós-Moderno

3.3 Dramaturgia Simbolista ou Evocativa

No que diz respeito às parcerias artísticas promovidas por Diaghlev, não apenas com as artes plásticas, elas influenciaram significativamente a linguagem de todos os coreógrafos que trabalharam com os Ballet Russes. As colaborações estabelecidas com músicos, filósofos e poetas modernos foram de fundamental importância para a instauração de uma verdadeira revolução na dança clássica e, ao mesmo tempo, criaram condições para a emergência da dança moderna e da exploração de aspectos associados ao movimento Simbolista.

O momento era o do Simbolismo, da evocação, da sensação, da sinestesia. As metáforas eram privilegiadas e a busca pela impressão superava a busca pela expressão (HUESCA, 2012). As criações de Nijinsky não podem ser dissociadas desses aspectos.

Iniciado na literatura francesa do final do século XIX, o Simbolismo rapidamente avançou para se tornar um movimento internacional e multidisciplinar. As pesquisas sobre o inconsciente, explorando novas vozes, as forças mais misteriosas e ricas de sentido, influenciavam uma nova estética, que podia ser percebida não somente na poesia e na literatura, mas em variadas formas de arte: a dança, foi uma delas.

O filósofo, Frédéric Paullhan (1856-1931) define de tal forma o contexto artístico da época:

[...] a arte não exprime, ela evoca. É portanto justo falar de impressão, mais do que de expressão […] nosso espirito conduzido pela via das sensações, e seu prolongamento, que se exalta ou se fortifica, se diminui ou se amplia, se dilata ou se concentra […] (POULHAN, FRÉDÉRIC apud HUESCA, 2012 p. 26 , tradução minha)44.

Imbuído por tal espirito, Nijinsky criou sua primeira obra, considerada por muitos como a pedra angular da dança moderna. No que diz respeito à “leitura coreográfica” do poema de Mallarmé, termo emprestado de Michel Bernard (2001, p. 126), Nijinsky não buscou uma transposição semântica

44 No original: « L’art n’exprime pas elle evoque. C’est porquoi il est plus juste de parler de impression, plutôt due

d’expression […] notre spirit entrainer par la vie des sensations, e sont prologament, s’exalte ou se fortifie, s’affine ou s’élargit, se dilate ou se concentre[…] ».

tradicional. De fato, ele mesmo afirmou não compreender o francês tão bem para ler textos literários (DUMAIS-LVOWSKI, 2009, p. 56).

Considerando-se que todo texto é composto por camadas, que pode suscitar leituras muito variadas em cada leitor, e seguindo a lógica de Bernard, que elaborou uma eficiente sistematização de processos de criação coreográfica em seu livro De la Creation Choreographique, a leitura de Nijinsky, tanto aquela realizada a partir do poema de Mallarmé, quanto da música de Debussy, assim como a das imagens pictóricas trazidas da Grécia Arcaica, poderiam ser reconhecidas como classifica Bernard por “abordagem semântica”, uma situação que acontece, quando:

[...] um texto é apreendido, seja pelas sensações, seja pelo significado que ele veicula. Esse pode denotar a originalidade de uma situação psicológica ou social, de uma história ou de um caminho individual ou coletivo, de uma relação intersubjetiva dramática ou cômica, de um ou mais personagens, de um pensamento – subjacente ou desenvolvido -, de uma narração, etc. (BERNARD, 2001, p.126-127, tradução minha).45

Há, portanto, na leitura semântica, ao permitir a captura de emanações, pulsões e forças sensíveis, o reconhecimento de uma camada invisível presente no Fauno de Nijinsky.

Somada à leitura semântica, e tendo ainda Bernard como referência, é possível reconhecer outros dois níveis de leitura na construção dramatúrgica do Fauno. Bernard as nomeia de “leitura estética” e “leitura poética ou ficcional” (BERNARD, 2001, p. 128).

A “leitura estética” pode ser vista como

[...] uma leitura que se relaciona antes de tudo ao "prazer do texto", à jubilação provocada pela qualidade literária do agenciamento da escritura ou de sua orquestração linguística, em suma, a sua dimensão formal as vezes plástica e

45 No original: « le text n’est appréhendé que par le sens et/ou les significations qu’il véhicule. Ceux-ce peuvent dénote

l’originalité d’une situation psychologique ou sociale, d’une histoire ou d’une destine individuelle ou collective, d’une relation intersubjective dramatique ou comique, d’un ou plusieurs personnages, d’un pensée – sous-jacente ou développée -, d’une narration, etc. »

musical ou, se preferirmos, figurativo e prazeroso, como preconizou Roland Barthes (BERNARD, 2001, p.127, tradução da autora).46

Essa leitura revela, assim, uma segunda camada presente no Fauno. Pode-se reconhecer aqui um processo de tradução ou transposição intersemiótica à medida que as qualidades que emergem das matrizes utilizadas, nesse caso, o poema de Mallarmé e a música de Debussy, são transpostas por Nijinsky em termos formais para a coreografia do Fauno. Desse modo, se a leitura semântica nos permite reconhecer a camada expressiva invisível do Fauno, a leitura estética revela a camada associada ao desenho, à composição formal dessa obra. Além disso, a leitura estética está intrinsecamente ligada ao terceiro modo de leitura elaborado por Bernard, ou seja, a “leitura poética ou ficcional”.

Nesse caso, o texto serve essencialmente como um catalizador de imagens… o olhar do coreógrafo percorre o texto sem se focalizar nem sobre o significado, nem sobre seu caráter formal e estético, mas sobre sua força imagética. (BERNARD, 2001, p. 128, grifos do autor, tradução da autora).47

A leitura poética ou ficcional abre espaço, assim, para a emergência de um imaginário específico, à medida em que o Fauno é permeado por um tensionamento entre o figurativo e o não-mimético. Vários adjetivos poderiam ser utilizados, nesse caso, para caracterizá-lo: onírico, etéreo, alusivo, etc.

Outro aspecto a ser considerado nas obras de Nijinsky, não somente em Fauno, é a busca pelo desaparecimento do sujeito. A emergência do signo se materializa, nesses casos, como deslocamentos da subjetividade que deixa de estar em primeiro plano para assim fazer com que o ato criativo funcione como catalisador de tensões. É desse processo que o signo aparece em suas obras. Sua escritura deveria estar na frente, sua obra era o foco principal, não seus intérpretes. As personagens nas obras de Nijinsky não tinham nomes próprios, eram seres que representavam tipos. Por exemplo, no Fauno há a grande ninfa, a pequena ninfa, as virgens; na Sagração da Primavera (1913) a escolhida, dentre outros.

Desse modo, embora existam narrativas, no sentido que prevê Sodré48, ainda que não lineares,

tanto no poema de Mallarmé como no poema musical de Debussy e na obra coreográfica de Nijinsky, é

46 No original: « […] cette lecture s’attache avant tout au “plaisir du texte”, à la jubilation provoquée par la qualité

littéraire de l’agencement scripturaire ou de son orchestration linguistique, en some, à sa dimension formelle à la fois plastique et musicale ou, si l’on préfère, figurale et jouissive, comme l’a preconize Roland Barthes ».

47 No original: « Dans cette optique, le texte sert essentielement de catalyseur d’ “images”… L’oeil du choreographe

parcout le texte en ne se focalisant ni sur la siginification, ni sur son character formel et esthétique, mais sur sa force imageante ».

o modo como tais estruturas narrativas se cruzam na construção coreográfica de Nijinsky, por meio de suas escolhas, que fazem de Fauno a expressão de uma dramaturgia que é ao mesmo tempo descritiva e simbolista, quanto evocativa.

Por exemplo, a escolha em não responder aos estímulos musicais da forma mais óbvia e literal, assim como a escolha da linguagem de movimentos, inspirada na Grécia Arcaica – período da Grécia Antiga situado entre 800 a.C. e 500 a.C., posterior à Idade das Trevas e antecessor ao Período Clássico – ainda, a opção pelo elenco enxuto, o cenário limpo e o figurino igualmente simples, em relação às outras obras da mesma companhia, podem ser vistas como significativas nesse caso. Todas essas opções, em sintonia com o projeto simbolista, fazem com que essa dramaturgia construída por Nijinsky produza evocações sensoriais que atravessam o público. As apresentações de Fauno geraram reações passionais, de amor e ódio, não somente em sua estreia em 1912, mas em futuras apresentações que aconteceram tanto na Europa quanto na América do Norte, no início do século XX.

As escolhas de Nijinsky se opuseram à exuberância dos balés clássicos e, embora não tenham feito escola, reverberaram na dança por muitas e muitas gerações.