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QUINTO CAPÍTULO

5.6 A Respeito da Atuação

Uma avalanche de questões brota quando se começa a escavar esse material. De que modo o que fazem esses seres andróginos e homogeneizados – bailarinos de Borelli – pode ser visto como atuação? É possível perceber o trabalho deles como construção de personagens ou seres ficcionais? Qual é a importância do coro nos trabalhos de Borelli?

Em Carta ao Pai (2006) existem somente duas personagens, o filho e o pai. Em um documento autobiográfico de cinquenta páginas, aos trinta e seis anos de idade, Kafka descreve uma espécie de viagem introspectiva, uma carta que nunca chegaria a ser enviada, cujo desejo de vingança se confundia com aquele de reconciliação. Uma carta que não é enviada é uma carta sem direito de resposta. Se Kafka não se propõe, de fato, a estabelecer um diálogo com seu pai, sujeito em carne e osso, o que pode se estabelecer nessa escrita é uma espécie de monólogo com seu pai interior. Pai e filho, em uma mesma pessoa, pai e filho, em um mesmo corpo, às vezes mais pai do que filho; noutras, o inverso. Às vezes metade pai e metade filho.

Figura 49: Carta ao Pai. 2006. Foto: Gal Oppido. Fonte: Cia Carne Agonizante, 2015.

Na primeira versão do espetáculo de Borelli – analisada para esta tese por meio de registro em vídeo, acervo cedido pela companhia – a cenografia de Carta ao Pai é composta por diversos mancebos80, que, no caso, embora representem apenas cabides para as roupas de cena, adquirem

inúmeras conotações ao longo do espetáculo. Esses mancebos que sustentam espelhos recortados estão dispostos em um semicírculo, delimitando o palco como pórticos que protegem ou bloqueiam um espaço.

Ao entrar em cena, um a um, cada bailarino se despe de sua roupa pessoal e veste, em cena, o figurino do espetáculo. Todos os figurinos são constituídos por trajes pretos, tanto para os homens quanto para as mulheres. Novamente, os bailarinos transformam-se em seres andróginos e padronizados.

Instaura-se, inicialmente, uma espécie de jogo de poder. É claro o papel de quem domina e de quem é dominado a partir das dinâmicas corporais que se estabelecem em duos, mas esse quadro logo se confunde, tornando-se mais complexo. A sobreposição de corpos que se misturam densamente, mas sem peso, em duos ou duelos, dificulta a predominância de um sobre outro, poderes são alternados, amalgamados.

80 Segundo o Dicionário Online, 2015, o verbete mancebo significa: “moço, rapaz, jovem; aquele que vive emancebado, artista ou oficial assalariado, cabide de roupa”.

A dramaturgia desse espaço que é coabitado pelos bailarinos e pelos mancebos constrói uma atmosfera interna, da casa e da mente. Os bailarinos ocupam esse espaço, fazendo e desfazendo solos, duos, trios, e momentos corais. Um chapéu muda de cabeças, circulando por todos os bailarinos; às vezes esse chapéu é oferecido a outro; outras vezes, é tomado. Ele atravessa a cena, vestindo a carapuça em todos e ao mesmo tempo em nenhum, assumindo e negando suas culpas, suas responsabilidades.

Culpa e responsabilidade aliás parecem ser temas recorrentes, tanto em Kafka quanto em Borelli Dedos que apontam, indicam e acusam aparecendo com frequência, num gestual minucioso. Túneis corporais, por onde, um a um, os bailarinos esgueiram-se para passar, alternados com momentos mais fluidos e coreográficos, nos quais a obra parece poder respirar.

Figura 50: Carta ao Pai, 2006. Foto: Gal Oppido. Fonte: Cia Carne Agonizante, 2015.

Em um determinado momento, bailarinos cantam alguma canção que parece ser uma música infantil em língua francesa81, mas ao invés de remeter a uma cantiga de ninar, prepara-os para um tipo

de cerimônia ou ritual, que, de certo modo, acontece quando todos se deitam ao chão e desenvolvem, em coro, uma coreografia, cujos movimentos sincronizados reforçam a ideia de um corpo coletivo, em que todos os personagens, pai e filho, são partes de um único ser. Se, dentre as funções do coro no Teatro Grego, pode-se reconhecer a emergência de uma personagem coletiva, que tinha como missão

81 Material trazido por Vanessa Macedo, bailarina e coreógrafa, atualmente diretora da Cia Fragmento de Dança, fez parte

cantar as partes significativas do drama, além de ser composto pelos narradores da história, que revelavam as façanhas dos personagens em canções e danças trazendo seus sentimentos à tona (CARLSON, 1997), nas obras de Borelli, como nas releituras de Carta ao Pai e de A Metamorfose, o coro emerge em uma “coralidade difratada” (TRIAU, 2003). Ou seja, uma coralidade que propõe um esfacelamento do coro:

[...] renunciar o herói e a centralização do protagonista para se encarnar numa coralidade que faria porta-voz não de um discurso massivo, mas de uma memória difratada, da circulação de vozes solitárias que se entrecruzam. (TRIAU, 2003, p. 3).

O público é colocado, assim, diante do que chamo de “pequenos oásis coreográficos”, trechos de coreografia em grupo que dançam em uníssono, que suavizam a aridez dos solos e duos, aliviando, temporariamente, os momentos de angústia e solidão. De fato, como aponta a bailarina Renata Aspesi82

(2013), Borelli não costuma atribuir personagens a seus bailarinos, embora existam momentos que correspondam a determinados personagens, eles não são fixos, se alternam e se dissolvem entre o elenco.

Não há psicologização dos seres ficcionais em seu processo criativo. Segundo Aspesi (2013)83

existe um padrão de construção no trabalho de Borelli, que tem início nas dinâmicas de improvisação paralelamente à leitura dos textos. A codificação dos movimentos vem depois e, embora a leitura não seja abandonada, cabe a cada intérprete a manutenção e o aprofundamento individual de sua pesquisa teórica. Ainda é importante enfatizar que não são atribuídos personagens com correspondência direta ao texto em questão.

Toda a energia intelectual de Kafka é transformada em Borelli em uma energia corporal que ocupa todos os espaços, dentro e fora de seus bailarinos. Alencar comenta que Borelli não é um estudioso, mas um coreógrafo intuitivo: “[...] ele não faz uma ponte intelectual, transfere direto para o corpo” (ALENCAR, 2013, s/p). Assim como para Artaud, em Borelli o texto não é matriz única do espetáculo, ele é lido e discutido em um primeiro momento (ALENCAR, 2013), mas não se trata de uma adaptação da literatura para a dança, nem de uma transposição de obras literárias para o movimento.

82 Renata Aspesi, bailarina com formação clássica, atuou em companhias na Alemanha e Bélgica, além do Balé da Cidade

de São Paulo. Foi membro da Borelli Cia de dança de 2000 a 2005. 83 Em entrevista concedida à autora, em São Paulo, à 29/11/2013.

Desse modo, independentemente de existir uma correspondência direta com os personagens dos romances de Kafka, utilizados como matrizes para cada espetáculo, o elenco das obras de Borelli atua, individualmente ou em coros, carregado de teatralidade, incorporando literalmente o texto de origem, que, nesse recorte, provém do material oferecido pelo autor tcheco, assim como dos materiais pessoais de cada bailarino e daqueles propostos pelo próprio coreógrafo.