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1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

1.2 A Teoria da Relação com o Saber

1.2.6 As dimensões da relação com o saber

1.2.6.1 A dimensão epistêmica

A relação epistêmica com o saber parte do princípio de que aprender não significa a mesma coisa para todos os indivíduos; ante as figuras do aprender, os sujeitos não aprendem da mesma maneira, ou seja, o aprendizado não passa pelos mesmos processos. Analisar a relação epistêmica que um aluno estabelece com o saber, significa compreender a natureza da atividade que se denomina “aprender” para esse sujeito (Aprender é exercer que tipo de atividade? É fazer o quê? É construir que tipo de competências?). Não questionamos aqui o aspecto cognitivo (Como aprendemos?) e sim o que é aprender e o que é saber; interessa-nos a natureza do ato de aprender e do saber.

17 Charlot (2000: 59) esclarece que a noção de aprender é mais ampla do que a de saber, pois existem muitas

maneiras de aprender que não consistem em apropriar-se de um saber, entendido como conteúdo intelectual (este seria apenas uma das formas do aprender). A “relação com o saber” é, portanto, uma forma específica da “relação com o aprender”, ou seja, é um tipo de relação que se estabelece com o mundo, ao lado de muitas outras possíveis. Apesar da distinção entre os termos, ressaltamos que, assim como Charlot faz em seus textos, neste trabalho utilizaremos a expressão “relação com o saber” em um sentido amplo, quando não houver risco de ambiguidade, pelo fato desse termo já se encontrar consolidado no vocabulário das ciências humanas.

18 Por “objeto-saber”, Charlot (2000: 75) compreende um objeto no qual um saber está incorporado (por exemplo, um livro). Por “saber-objeto”, o autor entende o próprio saber, enquanto “objetivado”, isto é, quando se apresenta como um objeto intelectual.

Charlot (2000: 68-71) apresenta três formas de relação epistêmica com o saber:

i. Objetivação-denominação: processo que constitui um saber-objeto e um sujeito consciente de ter se apropriado desse saber. Nele, aprender é uma atividade de apropriação de um saber que não se possui, passando-se, assim, da não-posse à posse de saberes que se encontram incorporados em objetos empíricos (os livros, por exemplo), abrigado em locais (a escola), possuído por pessoas (professores). Aprender, portanto, “é colocar coisas na cabeça”, tomar posse de saberes-objeto, de conteúdos

intelectuais que podem ser designados (pelos alunos) de maneira precisa (“eu aprendi o

teorema de Pitágoras”), ou imprecisa (“na escola, se aprende um montão de coisas”).

ii. Imbricação do Eu na situação: aprender é dominar uma atividade (nadar, cozinhar) ou capacitar-se a utilizar um objeto corretamente (máquinas, instrumentos). O processo de aprender é passar do não-domínio ao domínio de uma atividade:

Esse processo não engendra um produto que poderia tornar-se autônomo sob a forma de um saber-objeto que pudesse ser nomeado sem referência a uma atividade. Aprender a nadar é aprender a própria atividade, de maneira que o produto do aprendizado, nesse caso, não pode ser separado da atividade. (CHARLOT, 2000: 69)

Nessa relação epistêmica, o Eu é imerso numa dada situação, não é um Eu reflexivo.

iii. Distanciação-regulação: aprender é apropriar-se de um dispositivo relacional, ou seja, aprender, de forma intersubjetiva, determinadas atitudes e relações (ser responsável, mentir, ajudar os outros). Trata-se aqui do domínio de uma relação com o outro (aprender a ser solidário, por exemplo) e consigo mesmo (aprender a persistir). Aprender é tornar-se capaz de regular essa relação e encontrar a distância conveniente entre si e os outros, entre si e si mesmo. Aqui, o sujeito epistêmico é sujeito afetivo e relacional.

Em cada um desses processos epistêmicos, em cada uma das figuras do aprender, há, segundo Charlot (2000), uma atividade, mesmo que de natureza diferente, e em cada uma delas existe um sujeito. O que mais importa observar, no entanto, não é apenas o modo como os sujeitos aprendem esta ou aquela figura – pois sabemos que os indivíduos aprendem de modos diferentes – mas as relações de saber que estabelecem com o mundo a partir delas, que são

passíveis de construção e de mediação. Charlot (2000: 18) estende essa reflexão ao contexto escolar:

[...] A questão da relação com o saber é também aquela das formas de existência do saber nas instituições e dos efeitos que essas formas implicam. Isso quer dizer, sobretudo, que a escola não é apenas um lugar que recebe alunos dotados destas ou daquelas relações com o(s) saber(es), mas é, também um lugar que induz a relações com o(s) saber(es).

Como vimos, ao nascer, o sujeito ingressa em um mundo formado por pessoas, objetos, relações, dentre inúmeros outros elementos, que exigem que ele adquira conhecimento, para que possa dele se apropriar. Para tal apropriação, é preciso que o sujeito aprenda sobre o mundo. Isso ocorre por meio de livros, objetos, instituições, pessoas, que são representações do saber ou detentores do saber. Estes “lugares do saber” compõem o mundo, pois tudo que há para ser aprendido pelo sujeito está nele inserido. Portanto, de acordo com Charlot, toda relação com o saber é também relação com o mundo, e a fim de esclarecer essa proposição, ele desenvolve a seguinte reflexão:

O sujeito [...] não pode apropriar-se de tudo o que a espécie humana produziu ao longo da história. Ele nasce em um momento da história humana, em uma sociedade e em uma cultura, em um certo lugar nesta sociedade. O que lhe é potencialmente oferecido é uma forma do mundo, que evidentemente pode ser ampliada, mas não corresponderá jamais ao Mundo em sua totalidade. Além disso, o mundo em que o sujeito vive e aprende é aquele no qual ele tem uma atividade, no qual se produzem acontecimentos ligados à sua história pessoal. Por outro lado, o sujeito não interioriza passivamente o mundo que lhe é oferecido, ele o constrói (ele o organiza, categoriza, põe em ordem, interpreta). A relação com o mundo constitui-se nessa co-construção (seletiva) do sujeito e de seu mundo. (CHARLOT, 2001: 27-28)

Dessa forma, existem, para o sujeito, objetos, situações, pessoas, formas de atividade, formas relacionais, que, para ele, são mais importantes e/ou interessantes do que outras, isto é,

correspondem melhor àquilo que ele é, àquilo que ele é e pode ser – e que, portanto, valem mais a pena ser aprendidos (CHARLOT, 2001: 28). É essa relação (seletiva e hierarquizada)

de sentido e de valor atribuída pelo sujeito aos objetos, situações, pessoas, entre outros, que constitui a relação do sujeito com o mundo. Assim, o sentido e o valor de um saber (de um aprender), e também a mobilização do sujeito neste aprender são indissociáveis de sua relação com o mundo.

Charlot (2000: 67) acrescenta que a relação com o saber é, além da relação com o mundo, em um sentido geral, relação com os mundos particulares (meios, espaços...) nos quais a criança vive e aprende. Do ponto de vista do aprendizado, esses mundos particulares possuem estatutos diferentes: alguns são somente locais onde se vive (um condomínio, por exemplo); outros, são locais onde se pratica determinada atividade que não a de educar (um local de trabalho); outros, por sua vez, são locais que têm como finalidade educar, instruir, formar (uma escola). Apesar de diferentes locais poderem assumir várias funções (a função da escola, por exemplo, é instruir, mas ela também participa da educação geral do sujeito), há locais que são mais adequados para efetivar uma ou outra figura do aprender. Nesses locais diversos, crianças aprendem ao estabelecerem relações com diferentes pessoas. Porém, por mais que a relação de aprendizagem tenha por foco uma figura do aprender específica, ela não é reduzida a uma única tarefa, pois outras relações são estabelecidas. Deste modo, embora a tarefa do professor seja educar e instruir, ele é também representante de uma instituição, de uma disciplina, é um indivíduo singular; por isso, são estabelecidas diferentes relações – pelo aluno e/ou pelo professor – apesar de ser, em princípio, uma relação definida como “relação de saber".

O autor também sustenta que uma situação de aprendizagem não é marcada somente pelo local e pelas pessoas, mas também por determinado momento da história pessoal, a qual, por sua vez, está inserida em um momento da história da humanidade e da sociedade e do espaço onde se vive e se aprende com outras pessoas. Nesse sentido, a relação pedagógica também pode ser caracterizada como um momento, constituído por percepções, representações, projetos, entre outros. Portanto, qualquer que seja a figura do aprender, o que está em jogo nesse espaço-tempo partilhado com outros não são apenas relações epistêmicas, mas relações com os outros e relações consigo mesmo: quem sou eu, para os outros e para mim mesmo, eu

que sou capaz de aprender isso, ou que não o consigo? (CHARLOT, 2000: 68). Analisar esse

aspecto da relação com o saber é entendê-la como relação identitária, o que faremos a seguir.