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1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

1.2 A Teoria da Relação com o Saber

1.2.2 O fracasso escolar

1.2.2.2 O fracasso escolar em termos de relação com o saber

A noção de “fracasso escolar” é comumente utilizada para denominar tanto a situação de reprovação em determinado(a) ano/série escolar, quanto a não-aquisição de certos conhecimentos ou competências; está associada a fenômenos designados por uma ausência (de resultados, de saberes, de competência), uma recusa (de estudar), uma transgressão (das regras). Tais maneiras de se pensar o fracasso escolar conduzem à ideia de que ele significa o “não ter”, o “não ser”. Porém, Charlot (2000) argumenta que não é possível analisar “aquilo que não é”, uma vez que não existe, nessa perspectiva, um “objeto fracasso escolar”, analisável como tal. Na compreensão do autor, para estudar o que se convencionou chamar de “fracasso escolar”, deve-se definir um objeto que possa, então, ser analisado.

Charlot sugere uma nova maneira de explicar o fracasso escolar, que vai além da teoria da reprodução, das correlações sociais, das homologias, da transposição de sistemas, sem por isso, negar a desigualdade social perante a escola. O autor afirma que o fracasso escolar não é

apenas diferença; é também uma experiência que o aluno vive e interpreta (CHARLOT, 2000:

17) e que pode, assim, constituir-se em objeto de pesquisa a ser construído, apreendido em suas relações.

Uma vez que a percepção do fracasso escolar se dá em virtude dos fatores condicionantes do sucesso ou insucesso escolar, este deve ser analisado tendo em vista as inúmeras implicações que pode assumir. Para o autor (CHARLOT, 2000: 16), o que existe são

alunos fracassados, situações de fracasso, histórias escolares que terminam mal e são esses

alunos, essas situações e essas histórias que devem ser analisados, e não um “objeto misterioso” chamado “fracasso escolar”.

Charlot (2005) questiona por que a ideia de que a escola pode modificar o habitus, contribuindo, assim, para mudar os destinos sociais não é considerada pelas sociologias da reprodução. O autor sustenta também que a transmissão cultural e o êxito escolar não são processos automáticos; são produzidos por um conjunto de práticas familiares, isto é, são efeitos de uma atividade dos pais e dos filhos:

[...] uma criança não é apenas “filho de” (ou “filha de”). Ela mesma ocupa uma certa posição na sociedade. Essa posição tem a ver com a dos pais, mas não se reduz a ela e depende também do conjunto das relações que a criança mantém com adultos e outros jovens. A posição da própria criança se constrói ao longo de sua história e é singular. Para compreender-se o sucesso o fracasso escolar dessa criança, essa singularidade deve ser tomada em consideração. (CHARLOT, 2000: 21-22)

Desse modo, para ser bem-sucedido na escola, não basta ser “filho de”; é preciso estudar e trabalhar continuamente, ter uma atividade intelectual. Charlot julga que a questão da atividade intelectual – em particular a questão do acesso intelectual ao saber – não foi abordada pelas sociologias da reprodução, que focaram somente o acesso social ao saber. Nas palavras do autor:

[...] essas teorias [das sociologias da reprodução] reduzem a instituição escolar a um espaço de diferenciação social, esquecendo que ela também é um espaço onde os jovens se formam, onde o saber se transmite. A escola não é pura e simplesmente uma máquina de selecionar, que se pode analisar sem dar importância às atividades que ali se desenvolvem. Ela é uma instituição que preenche funções específicas de formação e que seleciona jovens através dessas atividades específicas. Dessa forma, a análise sociológica da escola deve integrar a questão do saber e de sua transmissão [...]. (CHARLOT, 1996: 49)

Portanto, defende Charlot (2005: 54) que o que produz o sucesso ou fracasso escolar é o fato de o aluno ter ou não uma atividade intelectual, isto é, uma atividade eficaz que lhe

possibilite apropriar-se dos saberes e construir competências cognitivas. O autor questiona,

portanto, a maneira como os fatos observáveis em sala de aula são teorizados em termos de

posições, faltas e deficiências, sem que seja abordada a questão do sentido da escola para as

famílias populares e seus filhos, nem a questão da importância da análise das atividades que se desenvolvem nas instituições escolares, incluindo a atividade docente:

[...] É verdade que certas crianças não conseguem adquirir certos conhecimentos. É verdade que amiúde elas não têm as bases necessárias para apropriar-se deles. É verdade que elas provêm frequentemente de famílias populares. Não são esses fatos que eu questiono, mas a maneira como eles são teorizados em termos de faltas, deficiências e origem, sem que sejam levantadas a questão do sentido da escola para as famílias populares e seus filhos, nem da pertinência das práticas da instituição escolar e dos próprios docentes ante essas crianças. (CHARLOT, 2000: 28 – grifos nossos)

Nessa perspectiva, a atenção é dirigida aos fenômenos empíricos que a noção de fracasso escolar designa, ou seja, as situações nas quais o aluno se encontra num momento de sua história singular, suas atividades e condutas, seus discursos. Admite-se que o aluno em situação de fracasso traz consigo a marca da diferença e da falta, uma vez que, nessa condição, encontra dificuldades em certas situações, em orientações que lhes são dadas, mas

[...] não é por ser pobre que se reprova, mas por não ter adquirido os saberes e construído as competências atinentes a um determinado nível de escolarização. Portanto, a questão é compreender por que alunos, proporcionalmente mais numerosos nos meios populares, não conseguem atingir o nível esperado. (IRELAND, 2007: 39)

Logo, a fim de que o fracasso escolar possa constituir-se em objeto de pesquisa, Charlot (2000; 2001; 2005) propõe analisá-lo em termos de relação com o saber, de uma sociologia do sujeito, como uma experiência que o aluno vive e interpreta. Visto por essa ótica, tal fenômeno implica uma leitura positiva da realidade e requer a análise das condições de apropriação dos saberes; deve-se levar em consideração a singularidade e a história dos indivíduos, sua posição social, sua atividade, suas práticas e a especificidade dessa atividade –

que se desenvolve (ou não) no campo do saber.

Passamos a examinar a seguir, o que Charlot compreende por leitura positiva da realidade social.