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1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

1.2 A Teoria da Relação com o Saber

1.2.1 O conceito de relação com o saber

Os estudos elaborados por Bernard Charlot e pela equipe ESCOL acerca da relação com o saber têm trazido valiosas contribuições para reflexões acerca das questões que envolvem a sala de aula e a escola, e por isso as ideias veiculadas pelo autor têm encontrado grande ressonância no meio educacional brasileiro (LOMONACO, 2008).

Nascido em1944 em Paris, Bernard Charlot é graduado em Filosofia e doutor pela Universidade Paris 10. Sua experiência como docente é muito significativa: foi professor da Universidade de Túnis, na Tunísia, e de volta à França, da École Normale (Instituto de Formação de Professores), em Le Mans, e da Universidade Paris 8. Nessa instituição, onde atuou como professor em Ciências da Educação por 16 anos, idealizou e fundou ESCOL (Educação, Socialização e Comunidades Locais), equipe de pesquisa de projeção internacional, voltada à investigação das relações com os saberes e de outros temas relevantes da educação, como violência na escola, territorialização das políticas educacionais e globalização. Desde 2006, é professor visitante na Universidade Federal de Sergipe, na qual atua como membro dos cursos de Pós-Graduação em Educação e em Ensino de Ciências e Matemática, é líder do Grupo de pesquisa CNPq “Arte, Diversidade e Contemporaneidade” (ARDICO) e membro do Grupo de pesquisa CNPq “Educação e Contemporaneidade” (EDUCON). É também professor titular emérito da Universidade de Paris 8 e professor afiliado da Universidade de Porto, em Portugal. No Brasil, é autor de uma série de livros, entre os quais: A mistificação pedagógica: realidades sociais e processos ideológicos na teoria da educação. (Zahar Editores, 1979); Da relação com o saber: elementos para uma teoria. (Artmed, 2000); Os jovens e o saber: perspectivas mundiais. (Artmed, 2001); Relação com o saber, formação dos professores e globalização: questões para a educação hoje. (Artmed, 2005); Jovens de Sergipe: como são eles, como vivem, o que pensam. (Governo de Sergipe, 2006); e Da relação com o saber às práticas educativas (Cortez, 2013). Publicou também numerosos artigos traduzidos em diversos países.

De acordo com o autor, a questão da “relação com o saber” não é nova:

[...] Poder-se-ia mesmo sustentar que ela atravessa a história da filosofia clássica, pelo menos até Hegel. Foi apresentada por Sócrates quando este disse “Conhece-te a ti mesmo”; é a questão do debate entre Platão e os sofistas; está no âmago da “dúvida metódica” de Descartes e do cogito que vem em seguida; está muito presente na Fenomenologia do Espírito, de Hegel [...]. (CHARLOT, 2005: 35 – grifo do autor)

Charlot (2010) aponta que foi Lacan quem primeiro utilizou a expressão “relação com o saber”. Da mesma forma, o autor (2005: 36) esclarece que a mesma pode ser encontrada em textos da psicanálise dos anos sessenta e setenta; em seguida, nos anos setenta, foi utilizada em pesquisas da sociologia da educação e a partir de 1977 em textos da área da didática. Porém, foi Bernard Charlot que, na década de 1980, introduziu a expressão e o conceito na área da Educação, desenvolvendo a noção como organizadora de uma problemática. Nos anos noventa, os elementos que compõem a teoria foram definidos.

Charlot esclarece que as definições de relação com o saber foram formuladas – e algumas ainda estão sendo – ao longo dos últimos anos. Em 1982, o autor definia o conceito da seguinte maneira:

Chamo relação com o saber o conjunto de imagens, de expectativas e de juízos que concernem ao mesmo tempo ao sentido e à função social do saber e da escola, à disciplina ensinada, à situação de aprendizado e a nós mesmos. (CHARLOT, 2000: 80)

Porém, Charlot atenta para o fato de que tal definição oculta a ideia essencial de relação e falta-lhe também o esclarecimento de que a relação com o saber vai além dos saberes escolares. De acordo com definições atuais propostas pelo autor, pode-se dizer que a relação

com o saber se configura como:

 a relação – com o mundo, consigo mesmo e com o outro – de um sujeito confrontado com a necessidade de aprender;

 o conjunto das relações que um sujeito mantém com tudo o que estiver relacionado com o aprender e o saber;

o conjunto das relações que um sujeito mantém com um objeto, um “conteúdo de pensamento”, uma atividade, uma relação interpessoal, um lugar, uma pessoa, uma situação, uma ocasião, uma obrigação, etc., ligados de uma certa maneira com o

aprender e o saber; e, por isso mesmo, é também relação com a linguagem, relação com o tempo, relação com a ação no mundo e sobre o mundo, relação com os outros e relação consigo mesmo enquanto mais ou menos capaz de aprender tal coisa, em tal situação. (CHARLOT, 2000: 81)

A proposição fundamental da relação com o saber é a de que ela consiste de um conjunto simultâneo de relações de um sujeito com o mundo, consigo mesmo e com os outros. Analisemos, pois, essas três dimensões constitutivas do conceito de relação com o saber.

De acordo com Charlot (2000), toda relação com o saber é relação com o mundo como

conjunto de significados, como espaço de atividades e se inscreve no tempo. O mundo se

apresenta ao homem apenas por meio do que ele percebe, imagina, pensa, deseja, sente, isto é, o mundo se mostra a ele como conjunto de significados, que são também partilhados com outros homens. O homem, no entanto, só tem acesso a esse mundo por ter acesso ao universo dos significados, ao “simbólico”; e é nesse universo simbólico que as relações entre o sujeito e os outros, e entre o sujeito e ele mesmo são estabelecidas. Portanto, a relação com o saber, que é uma forma de relação com o mundo, é também uma relação com sistemas simbólicos, especialmente com a linguagem.

Quando se apropria do mundo, o sujeito o molda, o transforma, por meio de sua atividade. Desse modo, o mundo não lhe aparece apenas como um conjunto de significados, mas também como um horizonte de atividades; por isso afirma-se que a relação com o saber implica uma atividade do sujeito.

A relação com o saber é também relação com o tempo, na medida em que a apropriação do mundo, a autoconstrução do sujeito e o estabelecimento de relações com os outros são processos ininterruptos e que demandam tempo. Esse tempo – que é o tempo da história do sujeito e da espécie humana – é ritmado por momentos significativos, por rupturas, e se desenvolve em três dimensões (presente, passado e futuro) que se interpenetram e se sobrepõem.

Em resumo, analisar a relação com o saber é:

[...] estudar o sujeito confrontado à obrigação de aprender, em um mundo que ele partilha com outros: a relação com o saber é a relação com o mundo, relação consigo mesmo, relação com os outros. Analisar a relação com o saber é analisar uma relação simbólica, ativa e temporal. Essa análise

concerne à relação com o saber que um sujeito singular inscreve num espaço social. (CHARLOT, 2000: 79 – grifos do autor)

A definição de relação com o saber implica também o conceito de desejo. De acordo com Charlot (2000: 81), todo sujeito é desejante e o objeto do desejo é o outro, o mundo, o próprio indivíduo, sendo o desejo de saber (ou de aprender) uma de suas formas, que se manifesta quando o sujeito experimenta o prazer de aprender e saber.

Charlot (2001) analisa o fato de que certos alunos têm desejo de aprender, enquanto outros não manifestam tal desejo, parecendo pouco motivados para a tarefa. Normalmente recorre-se a características que são atribuídas ao próprio indivíduo: “ele é preguiçoso”, “ele não está interessado/motivado”, entre outros. Tal diferença de comportamento diante do saber tratar-se-ia, na verdade, da relação entre o indivíduo e aquilo que se tenta ensinar-lhe. Desta forma, “não estar motivado” é estar em certa relação com a aprendizagem proposta, ou seja, com o saber. Para o autor,

[...] só há saber em uma certa relação com o saber, só há aprender em uma certa relação com o aprender. Isso significa que não se pode definir o saber, o aprender, sem definir, ao mesmo tempo, uma certa relação com o saber, com o aprender (e também com um tipo de saber ou de aprender). Significa ainda que não se pode ter acesso a um saber ou, mais genericamente, aprender, se, ao mesmo tempo, não entrar nas relações que supõem (e desenvolvem) este saber, este aprender. (CHARLOT, 2001: 17)

Dessa forma, uma questão aparentemente banal, como “o que torna uma aula interessante?”, evidenciaria uma questão teórica essencial e complicada: a do encontro do desejo com o saber. De acordo com o autor, só faz sentido um ato, um acontecimento, uma situação que se inscrevam no nó de desejos que é o sujeito:

É porque o sujeito é desejo que sua relação com o saber coloca em jogo a questão do valor do que ele aprende. Desse ponto de vista, dizer que um objeto, ou uma atividade, um lugar, uma situação, etc., ligados ao saber têm um sentido [...] é dizer, também, que ele pode provocar um desejo, mobilizar, pôr em movimento um sujeito que lhe confere um valor. O desejo é a mola da mobilização e, portanto, da atividade; não o desejo nu, mas, sim, o desejo de um sujeito “engajado” no mundo, em relação com os outros e com ele mesmo. (CHARLOT, 2000: 82)

Assim, Charlot (2005: 37) aborda o tema do saber como objeto de desejo e questiona

esta ou aquela disciplina, por meio de uma atividade intelectual. O autor esclarece que o desejo

visa ao prazer, ao gozo, e não a um objeto determinado. Porém, apesar do fato de que o desejo não leva ao gozo senão por meio de um objeto, é o gozo que é visado, e não o objeto que permite que ele se realize. A questão é compreender, portanto, como se passa do desejo de saber (como

busca de gozo) à vontade de saber, ao desejo de aprender, e, além disso, ao desejo de aprender e saber isso ou aquilo (CHARLOT, 2005: 37). O autor levanta, então, questionamentos que

podemos compor da seguinte forma: O que, no ato de aprender, no saber visado por esse ato, provoca desejo, produz desejo, faz sentido? Por que, às vezes, o desejo de saber não se manifesta? Por que o sujeito não encontra nesse saber nenhum prazer, nenhum sentido? E mesmo: por que, às vezes, o sujeito manifesta o desejo de não aprender, de não saber?

A fim de compreendermos a experiência escolar e analisarmos a relação com o saber, é importante entendermos que a experiência escolar é, indissociavelmente, relação consigo, relação com os outros e relação com o mundo. Tal entendimento é essencial para podermos investigar o que ocorre em uma sala de aula, e pode nos ajudar a responder questionamentos tais como: o que é uma aula interessante? Na ótica de Charlot, o descritor “interessante” poderia se referir à aula na qual há o estabelecimento de uma relação com o mundo, uma relação consigo mesmo e uma relação com o outro; uma aula “interessante” seria aquela em que ocorre o encontro do desejo com o saber.

Charlot (2001) afirma que o ensino público brasileiro ainda não garante aos seus alunos as condições necessárias e suficientes para o desenvolvimento de uma relação pessoal significativa com o(s) saber(es), tão relevante para o êxito da aprendizagem, quer seja pela baixa qualidade do ensino ofertado, pela inadequação da escola aos alunos das camadas populares, pelo desconhecimento desse público, ou pelas condições de trabalho incompatíveis com a formação continuada e com o aprimoramento profissional dos docentes. Diante desse cenário, a socialização do jovem no contexto escolar e as relações entre professor e aluno têm sido muito difíceis, com sérios problemas de indisciplina e com grande falta de interesse por parte dos alunos. O autor sugere que tal situação ocorre como se o jovem, ao rejeitar a escola

e o professor, não conseguisse estabelecer uma relação pessoal e significativa com o saber, sobretudo com o saber escolar e/ou intelectual (CHARLOT, 2001: 33-34).

A fim de obtermos uma compreensão ampla e contextualizada da Teoria da Relação com o Saber, faz-se necessário o entendimento do percurso traçado por Charlot no desenvolvimento desse fundamento. Segundo o próprio autor (2000: 81), é essencial a inserção

do conceito de relação com o saber em uma rede de conceitos. Dessa forma, apresentaremos e

discutiremos alguns temas e noções primordiais que compõem a teoria, a começar pela questão do fracasso escolar.