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1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

1.2 A Teoria da Relação com o Saber

1.2.6 As dimensões da relação com o saber

1.2.6.3 A dimensão social

Respaldados em Charlot, Trópia & Caldeira (2011: 372) afirmam que a relação com o saber é também social, pois exprime as condições sociais do indivíduo e as relações sociais

que estruturam a sociedade na qual esse indivíduo está inserido. Assim, a dimensão social da

relação com o saber contribui para dar uma forma particular às outras (epistêmica e identitária); sua análise não deve ser empreendida, porém, desvinculada da análise das relações epistêmica e identitária, mas por meio delas.

Charlot (2000) aponta que jovens com as mesmas condições de existência e atuantes nas mesmas relações sociais não estabelecem a mesma relação com o saber. Segundo o autor, as relações sociais estruturam a relação com o saber e com a escola, mas não a determinam, ou seja, o fato de um indivíduo estabelecer uma relação com o saber que corresponda a sua identidade social não significa que exista uma relação causal entre elas, pois a relação com o saber também é relação singular do sujeito com o saber. Porém, a preferência do sujeito por uma ou outra figura do aprender pode ter correlação com sua identidade social19. Crianças

oriundas de famílias populares, por exemplo, podem valorizar o aprender que lhes permite “se

virar” em situações cotidianas. Da mesma maneira que a identidade social pode induzir o

sujeito a preferir determinada figura do aprender, seu interesse por esta ou aquela figura contribui para a construção de sua identidade.

Charlot (2000: 72) esclarece que toda relação com o saber é também relação com o outro, que é aquele que ajuda o sujeito a aprender um conteúdo disciplinar (inglês, matemática), a dominar uma atividade (criar um blog na internet, desmontar um motor), a se relacionar com outras pessoas (cumprimentar, agradecer). Porém, esse “outro” não é apenas aquele que está presente fisicamente. Ele é também o fantasma do outro que cada um leva em si. Desse modo, compreender um ponto gramatical da língua inglesa, por exemplo, é apropriar-se de um saber

19 Porém, enfatizamos que essa correspondência é baseada em probabilidades e não no determinismo, ou seja, em

seus estudos, Charlot busca compreender como se constrói uma relação com o saber que, ao mesmo tempo, tenha a marca da origem social, mas que não seja determinada pela mesma.

(relação com o mundo), sentir-se inteligente (relação consigo), mas também compreender algo que nem todos compreendem, é ter acesso a um mundo que é partilhado com somente alguns indivíduos, é participar de uma comunidade das inteligências (relação com o outro). Da mesma maneira, ser capaz de operar uma determinada máquina é ingressar na comunidade (virtual)

daqueles que têm essa mesma capacidade. Conclui-se, com isso, que:

Aprender sempre é entrar em uma relação com o outro, o outro fisicamente presente em meu mundo, mas também esse outro virtual que cada um leva dentro de si como interlocutor. Toda relação com o saber comporta, pois, uma dimensão relacional, que é parte integrante da dimensão identitária20. (CHARLOT, 2000: 72)

O outro pode estar presente no processo de aprender sob três formas: como mediador

do processo (pais, professores, autores dos livros didáticos quando se dirigem ao aluno, e

outros), como o fantasma do outro (que cada um traz em si), ou como humanidade (presente nas obras produzidas pelo homem ao longo da história). Tais formas de manifestação do outro coexistem e apoiam-se, pois uma não existiria sem as outras. (CHARLOT, 2001: 27)

Outro aspecto importante considerado pelo autor a respeito da relação social com o saber é que ela não deve ser colocada em correspondência com uma posição social. Reconhece-se que a posição social é importante na análise da relação com o saber, mas há de se lembrar que a sociedade não se reduz a um conjunto de posições sociais, pois é, antes de tudo, histórica e está em constante evolução. Assim, para compreendermos a relação de um sujeito com o saber, devemos considerar sua posição social e também o contexto sócio-histórico no qual está inserido.

A fim de melhor apreendermos as características essenciais associadas a cada uma das dimensões da relação com o saber, reproduzimos a seguinte tabela, proposta por Pouliot, Bader & Therriault (2010):

20 O autor observa, nesse ponto, que podemos dizer também o inverso: que a dimensão identitária é parte integrante

da dimensão relacional, uma vez que não existe relação consigo mesmo senão como relação com o outro e não há relação com o outro senão como relação consigo mesmo: aprender é uma construção de si que só é possível pela

intervenção do outro – reciprocamente, ensinar (ou formar) é uma ação do outro que só tem êxito se encontrar o sujeito em construção (CHARLOT, 2001: 26-27).

Tabela 1: Dimensões da noção da relação com o saber

Dimensão Definição

Epistêmica

(relação com o mundo e com a aprendizagem)

 Refere-se à apropriação do sujeito de representações do mundo e de saberes transmitidos na escola, geralmente incorporados em objetos empíricos (livros didáticos, currículos, entre outros)

Identitária

(relação consigo mesmo)

 Refere-se à história do sujeito, suas expectativas, representações, práticas, seus objetivos, valores, seu modo de ver a vida, sua relação com outros, sua autoimagem e à imagem que ele gostaria de projetar.

 Diz respeito à relação de sentido que é estabelecida entre o indivíduo e o conhecimento.

Social

(relação com os outros)

 Intimamente relacionada à dimensão identitária, supõe que a aprendizagem ocorre por meio da interação com os outros.

Fonte: POULIOT, BADER & THERRIAULT, 2010: 244 (tradução nossa)

Considerando a discussão apresentada sobre as dimensões da relação com o saber, Charlot (2000: 72-73) propõe refletir sobre as seguintes questões: [...] o que é uma aula

“interessante”? Será uma aula que é interessante “em si” (relação com o mundo)? Uma aula que é interessante para mim? [relação identitária] Uma aula dada por um professor interessante (relação com o outro)? A partir da análise teórica da relação com o saber, o próprio

autor responde à questão: [...] uma aula “interessante” é uma aula na qual se estabeleça, em

uma forma específica, uma relação com o mundo, uma relação consigo mesmo e uma relação com o outro. O autor explica, por exemplo, porque certos alunos afirmam gostar muito de certa

matéria escolar por simpatizarem com o professor, ou justificam o mau desempenho na disciplina por não gostarem do docente. Conclui-se, que a relação com a matéria escolar, nesses casos, depende da relação com o professor e da relação do aluno consigo mesmo21. É possível

compreender, desse modo, que a relação com o mundo agrega a ela a relação com o outro e a relação consigo mesmo. Charlot (2000: 73) esclarece como o "mundo", o "eu" e o "outro" configuram-se em sua teoria e como se relacionam:

21 Nas respostas fornecidas por alunos e analisadas pelo autor, aparecem nas falas “eu gosto do professor” e “eu

“O mundo” é aquele em que a criança vive, um mundo desigual, estruturado por relações sociais. “Eu”, “o sujeito”, é um aluno que ocupa uma posição, social e escolar, que tem uma história, marcada por encontros, eventos, rupturas, esperanças, a aspiração a “ter uma boa profissão”, a “tornar-se alguém”, etc. “O outro” são pais que atribuem missões ao filho, professores que “explicam” de maneira mais ou menos correta, que estimulam ou, às vezes proferem insuportáveis “palavras de fatalidade”22.

Assim, para Charlot (2000), não existe relação com o saber senão a de um sujeito, da mesma forma que não há sujeito, senão em um mundo e em uma relação com o outro. Mas também não há mundo e outro, senão já presentes, sob formas que preexistem. Portanto, a relação com o saber não deixa de ser uma relação social, embora sendo de um sujeito.

Tendo apresentado a Teoria da Relação com o Saber, bem como os principais elementos e pressupostos que a compõem, discutiremos a seguir o tema motivação, de acordo com suas concepções na área de ensino-aprendizagem de línguas, por entendermos que na teoria elaborada por Charlot algumas de suas variáveis não são exploradas, e estas são importantes para a análise do contexto investigado nesta pesquisa.