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1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

1.2 A Teoria da Relação com o Saber

1.2.2 O fracasso escolar

1.2.2.1 O fracasso escolar em termos de origem e deficiências

Charlot (2009a) nos lembra que nas décadas de 60, 70 e até 80 do século XX, a forma como se pensou a escola foi muito influenciada pela Sociologia da Reprodução, em particular a de Bourdieu. Essa sociologia “das posições e disposições” se propagou pelo mundo todo, inclusive no Brasil, tornando-se explicação dominante acerca do sucesso e do fracasso escolares. Ireland (2007) e Silva (2008) apontam que Bourdieu, Passeron, Baudelot e Establet na França, Bowles e Gintis nos Estados Unidos e Willis, na Inglaterra, teorizaram acerca dessa questão, sendo que, para esses autores, a ideia fundamental é de que a escola, longe de ser um instrumento de democratização da sociedade, contribui e legitima a reprodução da desigualdade social.

A teoria mais elaborada, nessa linha de pensamento, é atribuída a Bourdieu, em particular no livro “A reprodução” (em coautoria com J. C. Passeron). O ponto de partida dessa obra é a ideia de que a escola transmite e avalia uma cultura que não é socialmente neutra, ou seja, de que toda ação pedagógica é a imposição de uma cultura ou, dito de outra forma, de um recorte cultural, aos destinatários da ação. Como nos apontam Nogueira & Nogueira (2009), a

escola e o trabalho pedagógico por ela desenvolvido, só podem ser compreendidos, na perspectiva de Bourdieu,

[...] quando relacionados ao sistema das relações entre as classes. A escola não seria uma instância neutra que transmitiria uma forma de conhecimento intrinsecamente superior às outras formas de conhecimento, e que avaliaria os alunos com base em critérios universalistas; mas, ao contrário, ela é concebida como uma instituição a serviço da reprodução e da legitimação da dominação exercida pelas classes dominantes. (NOGUEIRA & NOGUEIRA, 2009: 71)

Para melhor apreensão das ideias veiculadas por Bourdieu, faz-se necessária a compreensão de três conceitos essenciais por ele elaborados: o de habitus, de arbitrário cultural e de capital cultural12.

Bourdieu define habitus da seguinte maneira:

As estruturas constitutivas de um tipo particular de meio (as condições materiais de existência características de uma condição de classe), que podem ser apreendidas empiricamente sob a forma de regularidades associadas a um meio socialmente estruturado, produzem habitus, sistemas de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, como princípio gerador e estruturador das práticas e das representações que podem ser objetivamente “reguladas” e “regulares” sem ser o produto da obediência a regras, objetivamente adaptadas a seu fim sem supor a intenção consciente dos fins e o domínio expresso das operações necessárias para atingi-los e coletivamente orquestradas, sem ser o produto da ação organizadora de um regente. (BOURDIEU, 1994: 60-61 – grifos do autor)

O habitus é, então, um conjunto de disposições psíquicas construídas num determinado meio social, refletindo as estruturas do mesmo. Desse modo, nas crianças se constroem disposições psíquicas condizentes com as condições sociais em que vivem, sendo que as posições sociais são reproduzidas de geração para geração, pelo menos em termos de probabilidades, ou seja, as condições em que se forma a criança moldam socialmente o seu psiquismo e este a leva a representações e práticas que reproduzem a estrutura social de origem. Dando continuidade ao raciocínio, Ireland (2007) explica que:

[...] os indivíduos têm práticas e representações aparentemente livres, isto é, de acordo com o que lhes agrada. Porém, o que lhes agrada decorre das suas disposições psíquicas e estas acatam as normas sociais do seu meio. O

12 Além dos três conceitos mencionados, há outros igualmente importantes formulados por Bourdieu; porém, como

nosso foco é refletir sobre a questão do fracasso escolar, nos limitaremos à exposição dos conceitos relevantes a esse propósito.

conceito de habitus explica por que as pessoas obedecem a regras sem querer e sem saber. Explica, ao mesmo tempo, o determinismo social e a aparência de liberdade do sujeito. Cada um faz o que quer e, ao fazê-lo, contribui para a reprodução das estruturas e das desigualdades sociais. Na escola, cada um, quer seja docente, quer filho de ricos ou filho de pobres, faz o que gosta e não faz o que não gosta e, sendo assim, todos participam da reprodução das desigualdades sociais. (IRELAND, 2007: 32 – grifo do autor)

Bourdieu & Passeron (2008) defendem que as crianças que têm acesso, em sua família e por meio de sua classe social, a uma educação voltada para a cultura que a escola privilegia têm mais chances de ser alunos bem-sucedidos na escola. Para os autores, os jovens das classes populares são vítimas de uma violência simbólica, isto é, de uma violência que não é produzida por agressão física, mas por meios simbólicos; ela é praticada pela imposição da cultura (arbitrário cultural) de um grupo social como a verdadeira ou a única forma cultural existente. Em outras palavras, Bourdieu & Passeron (2008) denominam arbitrário cultural o fato de a escola valorizar e avaliar formas de cultura e de relação com a cultura que condizem com as das classes dominantes, e, ao impor, dissimuladamente, a cultura de um grupo como a verdadeira ou a única forma cultural existente, pratica uma violência simbólica.

Outro conceito-chave na teoria de Bourdieu é o de capital cultural. Tal conceito propõe explicar as diferenças de rendimento escolar obtido por crianças de classes sociais distintas. O autor sustenta que as desigualdades no desempenho escolar são frutos da distribuição, também desigual, do capital cultural entre as classes e as frações de classes: O rendimento escolar da

ação escolar depende do capital cultural previamente investido pela família (BOURDIEU,

1998: 74). Em outras palavras, a família transmite às crianças um capital econômico (bens e

serviços), um capital social (relações mantidas pela família) e um capital cultural (domínio da língua, conhecimentos cultos, relação com a cultura etc.) (IRELAND, 2007: 32-33). Esse

capital transmitido possibilita que crianças oriundas dos meios mais favorecidos atendam às exigências da escola de forma mais satisfatória, enquanto as crianças originárias dos meios desfavorecidos sejam menos capazes de entender tais exigências. Em suma, de acordo com esse modelo sociológico, o que acontece na escola depende fundamentalmente do capital cultural e do habitus dos alunos: quem tem as disposições psíquicas e o capital cultural requeridos pela escola tem mais chance de se tornar um aluno bem-sucedido; quem não os tem possui grande probabilidade de fracassar.

Assim, Bourdieu (1994; 2007; 2008) analisa as posições escolares dos alunos (e, portanto, suas futuras posições sociais) comparando-as com as posições sociais dos pais, ou

seja, às diferenças de posições sociais dos pais correspondem diferenças de posições escolares

dos filhos e, mais tarde, diferenças de posições sociais entre esses filhos na idade adulta

(CHARLOT, 2000: 20). Com isso, perpetua-se a reprodução das diferenças:

[...] às diferenças de posições dos pais correspondem nos filhos diferenças de “capital cultural” e de habitus (disposições psíquicas), de maneira que os filhos ocuparão eles próprios posições diferentes na escola (CHARLOT, 2000: 20– grifos do autor)

Mostra-se, assim, que existe uma correlação entre a posição social dos pais e a dos filhos no espaço escolar. Porém, Charlot (2000) defende que a abordagem do fracasso escolar em termos de posições se depara com limites que não consegue transpor. Embora reconheça a importância e relevância das pesquisas realizadas pelas sociologias ditas da reprodução (CHARLOT, 2000: 19), o autor considera que estas não conseguem explicar, por exemplo, por que certos alunos não se empenham para estudar na escola, não conseguem aprender, refugiam- se na indiferença, ou praticam a violência, ou então por que duas crianças pertencentes à mesma família – cujos pais têm, portanto, a mesma posição social – podem obter resultados escolares diferentes.

Nessa perspectiva, é muito pertinente também a reflexão que o autor desenvolve sobre os conceitos de posição social objetiva e posição social subjetiva e a maneira como estas influenciam a produção de sentido:

[...] é preciso distinguir a posição social objetiva e a posição social subjetiva. A posição objetiva é aquela que o sociólogo identifica do exterior, classificando os pais por uma escala de categorias sociais. A posição subjetiva é aquela que a criança ocupa em sua cabeça, em seu pensamento. A criança, de fato, interpreta sua posição social. Assim, há modos de ser filho de um operário, de migrante, ou criança negra: pode-se ter vergonha, orgulho, resolver mostrar aos outros que se tem o mesmo valor que eles, querer vingar- se da sociedade etc. Como são sujeitos, as crianças produzem uma interpretação de sua posição social, do que lhes acontece na escola, gerando um sentido do mundo. A sociedade não é somente um conjunto de posições, é também o lugar de produção de sentido, e não se pode compreender essa produção de sentido a não ser em referência a um sujeito. (CHARLOT, 2003: 24 – grifos do autor)

Charlot (2000) questiona as correntes que supõem que alunos em situação de fracasso escolar sejam deficientes socioculturais, ou seja, ele contesta a interpretação do fracasso escolar, na qual a diferença é pensada como deficiência sociocultural.

John Ogbu, citado por Charlot (2000: 26) distingue três formas da teoria da deficiência: a primeira supõe que a deficiência é o que impede as crianças de terem sucesso na escola (teoria

da privação); a segunda enfatiza a questão de essas crianças crescerem em culturas diferentes

da cultura escolar, provocando um conflito cultural – seus valores, atitudes e processos cognitivos são diferentes daqueles que permitem o sucesso social e escolar (teoria do conflito

cultural); finalmente, uma terceira forma da teoria da deficiência sustenta o fato de que a

deficiência é uma desvantagem gerada pela própria instituição, pelo seu modo de lidar com as crianças das classes menos favorecidas, no que diz respeito à organização dos currículos, programas, expectativas dos docentes, entre outros (teoria da deficiência institucional).

Charlot (2000: 26) concorda que tanto a teoria do conflito cultural quanto a teoria da

deficiência institucional apropriam-se da noção de deficiência de forma pertinente, pois a

pensam em termos de relações – entre cultura familiar e cultura escolar; entre aluno e instituição

– e a veem como uma desvantagem do aluno em decorrência de uma relação. No entanto, a

teoria da privação não compreende a deficiência como decorrência de uma relação, mas como uma falta imputável ao próprio aluno, isto é, ele tem deficiências, lacunas, carências.

Para Charlot (2000), é correto pensar que quando o aluno está em situação de fracasso constatam-se faltas, ou seja, diferenças entre esse estudante e os outros, entre o resultado esperado e o efetivo. Porém, quando se analisa a questão em termos de deficiências, não há interesse pela atividade do aluno e do professor; não se questiona o que ocorreu, onde a atividade falhou; ao contrário, uma vez constatada uma “falta” no fim da atividade, tal falta é retroprojetada para o início dessa atividade, concluindo-se que ao aluno em situação de fracasso faltam recursos iniciais, intelectuais e culturais, que teriam permitido uma aprendizagem eficaz, isto é, a deficiência é vista como falta constitutiva do aluno: ele é deficiente. Posto isto, o autor conclui que:

Assim se constrói uma verdadeira teoria do fracasso escolar, formulada em termos de origem e deficiências. Longe de ser a expressão imediata da prática docente, põe em cena um conjunto de processos articulados: reificação, aniquilamento, retroprojeção das faltas, introdução de um princípio de causalidade da falta. Essa teorização se apoia nas sociologias da reprodução e, mais amplamente, nas teorias que raciocinam em termos de diferenças de posições, reinterpretando as noções de posição e diferença. O deslocamento da falta ao longo de uma cadeia causal é o equivalente, nessa teoria, da homologia de estrutura entre sistemas de diferenças posicionais que constitui o princípio explicativo de Bourdieu. (CHARLOT, 2000: 28)

Deste modo, para que possamos compreender o sucesso ou o fracasso escolar de um aluno, sua singularidade deve ser levada em consideração; não basta saber a posição social que pais e filhos ocupam: deve-se também interrogar-se sobre o sentido que eles atribuem a essa posição (como também à sua história, às suas experiências, à sua própria singularidade):

Por que é necessário levar em conta o sujeito? Porque a posição que uma criança ocupa na sociedade, ou, mais exatamente, a posição que seus pais ocupam, não determina diretamente seu sucesso ou fracasso escolar. Ela produz efeitos indiretos e não determinantes através da história do sujeito. [...]

A criança do meio popular, portanto, ao mesmo tempo, ocupa uma posição social dominada e é também um sujeito, um ser de desejo, que fala, que interpreta o que lhe acontece, que age de modo mais ou menos eficaz, que tem uma história pessoal incluída nas histórias mais amplas (da família, comunidade, sociedade, espécie humana). Se se quer compreender o que ocorre na escola, quais as relações de uma criança com o saber e o fato de aprender, é preciso levar em consideração sua posição social e o fato de que é um sujeito. (CHARLOT, 2003: 24 – grifos do autor)

Assim, o autor afirma que para explicar o fracasso escolar necessita-se também da análise das condições de apropriação de um saber. Passamos a verificar, portanto, como o fracasso escolar é abordado em termos da relação com o saber.