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A distribuição de para-raios

No documento Interrogações às políticas públicas (páginas 69-74)

Construir espaços que sejam confortáveis afetivamente (Mingus, 2011) para um número maior de pessoas é a proposta que buscamos em nossos trabalhos e nossas vidas. A partir do percurso seguido neste texto, afirmamos que alguns para-raios precisam ser construídos para que a acessibilidade esteja sempre presente nos espaços de debate, de tomada de decisão, nos espaços acadêmicos. Os para-raios que elencamos neste texto são esparsos. Acreditamos, porém, que fincar cada um deles é não esquecer a pauta da inclusão e da acessibilidade. É ficar com o problema, para dele tirar consequências.

Os para-raios já descritos nas linhas anteriores dizem respeito a um ethos que precisa perpassar as práticas cotidianas na inclusão de pessoas no ensino superior: o ethos da inclusão e da acessibilidade. Para isso, sem dúvida, é necessário agir para remover barreiras: atitudinais, metodológi-cas, arquitetônicas e outras. Vimos que para chegarmos a uma intimidade acessibilizadora (Mingus, 2011) é fundamental que esse ethos perpasse todas as práticas acadêmicas; é fundamental que a comunidade acadêmica assuma a respons-habilidade4 (Haraway, 2019) de se tornar-com uns com outros, coletivamente.

O tempo é uma questão decisiva. As práticas de inclusão mobilizam temporalidades diversas que operam como resistência contra a pressa dos produtivismos cientificistas. Por certo há um planejamento que se faz necessário para garantir a chegada das pessoas com deficiência nos cursos de pós-graduação. O vídeo em libras com a apresentação do edital do

4 Haraway usa a expressão respons-habilidade para indicar a habilidade de respondermos imersos nas relações heterogêneas que nos constituem. Ser responsável é menos uma questão moral e muito mais uma questão ontológica: somos interdependentes. Logo, é por meio das relações de dependência que temos uns com os outros que nos tornamos-com, que diferimos de nós mesmos.

mestrado – feito pela comunidade discente – foi um antes, um planeja-mento decisivo para que uma de nós sentisse como realizável o desejo de ingressar na pós-graduação. Há o durante. É preciso acompanhar e seguir juntos nos percursos da inclusão, atentando para as barreiras que preci-sam ser suprimidas. E há um tempo depois, as marcas institucionais que precisam ser lembradas para que outras pessoas com deficiência acessem a pós-graduação. A inclusão é uma operação transformadora também das relações temporais.

Na universidade em que as autoras com deficiência cursaram suas pós-graduações, alguns outros para-raios foram colocados em cena, o primeiro deles, a política de ações afirmativas. Em 2018 tivemos o pri-meiro processo seletivo para ingresso no curso de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense em que incluímos as ações afirmativas. O ano anterior foi marcado por muitas turbulências dentro e fora dos espaços universitários. Tivemos a ocupação estudantil na universidade no final do ano de 2016 e foi nesse contexto que discutimos a proposta de inserção das ações afirmativas. Mesmo em face a muitos momentos de tensão, conseguimos aprovar que 50% das vagas oferecidas deveriam ser destinadas às ações afirmativas. Com isso, garantimos uma via de acesso pelas cotas que seriam distribuídas para candidatos negros (pretos e pardos), indígenas, pessoas com deficiência e pessoas transexuais e travestis. Esse edital, construído com muita luta, foi o primeiro passo e, aqui, entendemos como o primeiro para-raios que ajudou na construção do que dissemos acima: a distribuição dos raios para o fortalecimento da proposta de inclusão.

Segundo para-raios: o seminário sobre inclusão. No dia 10 de outubro de 2019 foi realizado, no Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense, o primeiro seminário sobre acessibili-dade. Tal seminário foi coordenado por duas de nós: Camila Alves e Ildete Soares e realizado como parte das iniciativas de inclusão dos alunos com deficiência que entraram pelas cotas nesse mesmo ano. A realização desse seminário, acolhido e incentivado pela coordenadora do curso, surge a partir de situações de exclusão vividas por uma de nós como relatado no

trecho: o raio da inclusão. A proposta do seminário era devolver para o coletivo o que havia se apresentado como uma questão individual, era distribuir os raios.

Nesse seminário, que reuniu muitos alunos e professores, as alunas puderam falar sobre este processo de inclusão dos alunos com deficiên-cia e, fundamentalmente, do papel daqueles que se propõem a abrir os espaços para a inclusão: estar disponíveis para construir acessibilidade além de trabalhar para isso. Como nos diz bell hooks: “A palavra ‘amor’

é um substantivo, mas a maioria dos mais perspicazes teóricos dedicados ao tema reconhece que todos amaríamos melhor se pensássemos o amor como uma ação” (hooks, 2020, p. 46). Nesse sentido, entendemos que não basta a disponibilidade, é fundamental que haja também um movimento em direção à mudança.

Terceiro para-raios: a conexão de outros Programas de Pós-Gradua-ção para a construPós-Gradua-ção da acessibilidade. No segundo semestre do ano de 2019, a coordenadora do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense se reúne com a coordenação do Mestrado Profissional em Diversidade e Inclusão e o Programa de Pós-graduação em Ciências, Tecnologia e Inclusão se uniram para o debate sobre aces-sibilidade e inclusão no âmbito da pós-graduação. Com essa pauta, tais coordenações puderam garantir a contratação de intérpretes de Libras que contemplasse as demandas desses três Programas, a princípio, mas que pudesse ser estendida para outros tantos que oferecessem vagas para alunos com deficiência. Sabemos que essa proposta não é suficiente, tendo em vista que todos os Programas - e toda a universidade - deveria oferecer esse serviço. Porém, entendemos também que, sem luta, não conseguimos construir os espaços de inclusão.

Referências

Alves, Camila Araújo (2020). E se experimentássemos mais. Contribuições não técnicas de acessibilidade em espaços culturais. Curitiba: Appris.

Decreto Legislativo n. 186, de 9 de julho de 2008. (2008). Aprova o texto da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova Iorque, em 30 de março de 2007. Diário Oficial da União 2008; 10 jul.

Despret, Vinciane & Stengers, Isabelle. (2011). Les faiseuses d’histoires. Ce que les femmes font à la pensée. Paris: La Découverte / Les Empêcheurs de Penser en Rond.

Evaristo, Conceição. (2017). Becos da Memória. Rio de Janeiro: Pallas.

Haraway, Donna. (2011). A partilha do sofrimento. Relações instrumentais entre animais de laboratório e sua gente. Horizontes Antropológicos, 17(35), 27-64.

Haraway, Donna. (2019). Seguir con el Problema. Generar Parentesco enel Chthuluceno.

Bilbao, ESP: Consonni.

hooks, bell. (2020). Tudo sobre o amor: novas perspectivas. São Paulo: Elefante.

Mingus, Mia. (2011). Access Intimacy: The Missing Link. Recuperado de https://

leavingevidence.wordpress.com/2011/05/05/access-intimacy-the-missing-link/

Moraes, Marcia. (2010). PesquisarCOM: política ontológica e deficiência visual. In M.

Moraes & V. Kastrup (Eds.), Exercícios de ver e não ver: arte e pesquisa com pessoas com deficiência visual (pp. 26-51). Rio de Janeiro: Nau Editora.

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Taylor, Sunaura. (2017). Beastsof Burden: Animal and Disability Liberation. New York: The New Press.

No documento Interrogações às políticas públicas (páginas 69-74)

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