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Covid-19, SUS e ataques brasileiros

No documento Interrogações às políticas públicas (páginas 187-196)

No Brasil, o enfrentamento da Covid-19 se configura um grande desafio. Notícias, orientações e comunicados oficiais, lançados pela im-prensa e por agências sanitárias nacionais e internacionais, fazem parte dos cotidianos da população e de autoridades, desde a emergência da doença.

Acreditou-se, logo no início, que o problema poderia ser administrado de forma eficiente, especialmente a partir de normas e ações recomendadas e manejadas pelo Ministério da Saúde - por meio do SUS e seus braços - em consonância com orientações globais.

Nesse sentido, foram acionados os Pontos Focais Nacionais do Regula-mento Sanitário Internacional da OMS (PFN-RSI/OMS) e, após avaliação dos riscos associados, o evento foi incluído no Comitê de Monitoramento de Eventos, em 10 de janeiro de 2020. Em 22 de janeiro, foi acionado o Centro de Operações de Emergência (COE) do Ministério da Saúde, coordenado pela Secretaria de Vigilância Sanitária (SVS/MS), para harmonização,

pla-nejamento e organização das atividades com os atores envolvidos. Em 27 de janeiro, foi ativado o plano de contingência e, em 3 de fevereiro, a epidemia foi declarada emergência em saúde pública de importância nacional. Em 26 de fevereiro, então, foi confirmado o primeiro caso em território brasileiro e a resposta da SVS/MS foi imediata (Croda & Garcia, 2020).

Partindo disso, devido ao gradativo aumento do número de infecções, o distanciamento social foi adotado como principal estratégia para amenizar o impacto da doença, especialmente em relação à capacidade de atendimentos no sistema público de saúde. Desse modo, seria possível garantir o tempo necessário para a organização, atendimento e tratamento dos doentes, sem superlotação e prejuízos à população. O Supremo Tribunal Federal atribuiu, à época, aos estados, Distrito Federal e municípios a decisão de implementar as medidas de distanciamento social para o controle da Covid-19. O governo federal instituiu apenas a restrição da entrada de estrangeiros no país e a determinação para que idosos observassem o distanciamento social (Silva et al. 2020). Porém, dada a liberdade de secretarias estaduais e municipais de saúde administrarem suas normas de controle sanitário, grande parte dos estados aplicou outras ações que impactaram positivamente os índices ligados ao controle da pandemia, como recomendações acerca do uso de máscaras, distanciamento social para outras faixas etárias, construção de hospitais de campanha, entre outras.

As manobras operadas até então visavam uma organização capaz de enfrentar a doença por meio dos princípios que envolvem o SUS.

A partir da diminuição de casos concomitantes, imaginava-se que seria possível garantir melhores atendimentos a todos os usuários necessitados - universalidade - bem como oferecer uma espécie de cuidado horizontal, desempenhado de forma contínua, visando não apenas ao tratamento da doença, mas, principalmente, à não infecção e à atenção em diferentes agregados populacionais - integralidade. De certo modo, foi por meio de ações estaduais e municipais que os profissionais e gestores do SUS encontraram condições para lutarem contra a propagação da pandemia.

Porém, as diversas tensões, tanto diplomáticas quanto em diferentes níveis de gestão nacional, geraram disputas ideológicas que se desdobraram em

trocas de ministros, retrocessos científicos, investimento em medicamentos não eficazes, negligenciamento em relação à compra de vacinas e outras trapalhadas que desorientaram grande parte da população.

A instabilidade econômica e política do país desarticulou, portanto, as medidas de isolamento recomendadas por profissionais do SUS e do setor privado a partir de argumentos que defendiam a necessidade de grupos populacionais mais vulneráveis garantirem rendas emergenciais, a reversão da diminuição de receita por parte de empresários e prestadores de serviços, a possibilidade de práticas profiláticas fantasiosas e, no limite, a negação dos perigos da doença. Além disso, em vários estados, os números de infecções, apesar de significativos, impactavam menos do que havia sido previsto para o período - justamente pelas práticas de distanciamento - e, em comparação, chamavam menos atenção que os dados econômicos que começavam a despencar.

Diante destas dinâmicas, o discurso econômico, principalmente, a parte que se refere ao empreendedorismo e à possibilidade de rearranjo da economia nacional ganhou fôlego, se tornando cen-tral para diversas discussões. Tal situação contraria, portanto, um modo de pensar que há muito tempo colocava os enunciados da saúde em vantagem quando associados a outras áreas. Assim, não foram necessárias normas verticalizadas para contrapor as deman-das econômicas às da saúde, por meio de uma perspectiva que prio-riza as primeiras. Foram as próprias dinâmicas sociais que relati-vizaram as mortes resultantes da Covid-19 em relação ao possível empobrecimento da população, definindo enunciados, normativas e demais manobras oficiais acerca da pandemia. (Darsie, 2020)

De acordo com Siddik (2020), partindo de índice criado para medir e comparar os estímulos econômicos nacionais relacionados à Covid-19, entre 168 países, o Brasil se encontra na quadragésima primeira posição.

Os fatores avaliados para esse índice incluem as políticas fiscais, monetárias e de câmbio. Assim, o Brasil, até o fim de 2020, foi o país considerado rico que menos direcionou valores aos auxílios sociais durante a pandemia.

Contudo, o baixo investimento em medidas de apoio à população foi

justificado por incapacidade financeira nacional e como forma de reverter tal quadro, o desempenho de práticas laborais e comerciais, contrárias ao distanciamento, foi tomado como lema. A situação torna-se preocupante, especialmente ao ser apontado pela Fiocruz (2020) que as populações vulneráveis, as áreas consideradas periféricas e os estados com os maiores problemas relacionados aos Determinantes Sociais em Saúde (DSSs) re-gistraram taxas significativas de mortalidade causada pela doença.

As desigualdades sociais são terreno fértil para a propagação da Co-vid-19, pois a falta de saneamento básico, de condições de compra de insumos de higiene e equipamentos de proteção, a superlotação nos espaços de moradia, além das questões de sobrevivência que, muitas vezes, dificul-tam o isolamento social potencializam a possibilidade de infecções. Nos profissionais de saúde, da linha de frente, as desigualdades influenciaram o número de contaminações e óbitos, uma vez que equipamentos de proteção individual não eram disponibilizados conforme a real necessidade. Além disso, o excesso de demanda, devido aos afastamentos e equipes reduzidas potencializam o esgotamento emocional, físico e a vulnerabilidade ao contágio (Minayo & Freire, 2020).

Tais fragilidades foram expostas, por exemplo, no editorial da revista The Lancet, na edição temática sobre a Covid-19 (The Lancet, 2020).

Segundo o texto, a crise política brasileira foi causada pela postura de ne-gligência do governo nacional em relação ao controle da doença no país.

Nessa direção, evidencia-se também que durante a pandemia, ocorreram

“uma tentativa frustrada de privatizar a atenção primária à saúde, a ausência de um plano de resposta nacional completo, graves falhas logísticas na cam-panha de vacinação e o forte negacionismo científico na alta administração do governo” (Dall’Alba et al., 2021, p. 579).

A pandemia demonstra, portanto, quão fortes são os desafios en-frentados pelo SUS, já que o Brasil atingiu o maior colapso sanitário e hospitalar de sua história (Fiocruz, 2021). Os impressionantes números que envolvem a doença - após um ano, mais de 284 mil óbitos, 11,693 milhões de casos confirmados, 10,384 milhões de pacientes recupera-dos, 21.401 leitos de UTI dedicados à Covid-19 (Ministério da Saúde,

2021) - servem, também, para lembrar que o SUS, por meio de seus princípios, de seu modo e níveis de gestão, de seu funcionamento e de seus profissionais oferece atendimento à população brasileira, sem dis-tinções, porém com limitações.

Este apontamento não deve ser entendido como uma justificativa para um possível desmantelamento do Sistema Único de Saúde em lugar de outro que “seria mais eficiente e financeiramente adequado”, mas, ao contrário, enquanto um alerta relacionado à negligência sofrida pelas políticas públicas de saúde, tanto por parte do governo federal e demais gestores que corroboram com essa lógica quanto do grande número de profissionais e usuários que costumam apostar em seu fracasso. Partindo disso, pode ser pensado que os argumentos neoliberais encontraram, no que se refere à saúde, a brecha que necessitavam para se fortalecerem, aumentando o descrédito relacionado aos princípios coletivos, ao invés de potencializá-los enquanto possibilidade de crescimento - verdadeiros ataques brasileiros contra seu próprio sistema de saúde.

Um exemplo acerca dessa lógica são as falhas e negociações descom-prometidas ligadas à compra de vacinas. Desde meados de 2020, enquanto diversos países garantiram quantidades significativas de doses para suas populações, o Ministério da Saúde brasileiro parece ter agido no sentido de sabotar a garantia de insumos (as vacinas, as seringas, os diluentes) para o Brasil. Tal situação pode ser pensada a partir de duas vias: a primeira se refere à imposição de tratamentos feitos com medicamentos de eficácia não comprovada, defendidos fortemente pelo presidente e seus apoiadores e a segunda à possibilidade de menor investimento público diante da possibili-dade de venda das vacinas à população comum, por laboratórios privados.

Em qualquer hipótese, o que mais chama a atenção é o fato de grande parte da população entender tais manobras como decisões corretas, pois, desse modo, o ônus dos cofres públicos seria menor. Para além disso, em lugar de manifestações direcionadas ao esforço em relação à importação das vacinas, ao incremento da estrutura de atendimento público e à valorização dos profissionais da linha de frente, o que mais se destaca são as manifestações contrárias às medidas estaduais e municipais de enfrentamento da doença.

Diante do exposto, vale a pena ser destacado, mais uma vez, que é necessário que a população brasileira entenda o Sistema Único de Saúde como uma política pública necessária, destinada a toda a população. Seria justamente esta virada moral, cultural e ética que garantiria novos rumos para a saúde dos brasileiros. Partindo de um posicionamento otimista, talvez a pandemia também sirva no sentido de convocar parte da população - a parte que adere aos saberes científicos ou que foi salva pelos serviços do SUS - para apoiar a estrutura pública de saúde quando tudo isso passar.

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