• Nenhum resultado encontrado

A teoria das ferramentas: o filosofar histórico na política

No documento Interrogações às políticas públicas (páginas 95-100)

A ferramenta mais preciosa da teoria e da prática política é a maneira como se compreende o ser em geral e os seres particulares ou entes, a ontologia. No dia a dia, usamos uma ontologia inconsciente, estática e fixista e isso funciona bem. Por exemplo, quando dois jovens enamorados descem a escadaria da sala alta do cinema, conversam e

entreolham-se quase sem ver nem pensar nos degraus da escada, que são representados como fixos, imóveis, idênticos entre si. Essa ontologia fixista permite um padrão de movimentos corpóreos repetitivos para descer a escadaria sem nela pensar. Entretanto, se a mesma ontologia fixista estiver operando no conhecimento recíproco do casal, as coisas tendem a não funcionar, porque a ontologia fixista implica a concepção monolítica da subjetividade: o outro é algo em si e por si mesmo, e não um ponto vazado pelas relações que o atravessam.

Desde a virada do século XVIII para o XIX, vivemos na Idade da His-tória, por causa do advento de uma nova ontologia. Os maiores pensadores do século XIX, Kant, Hegel, Marx e Nietzsche, já o haviam compreendido completamente, mas o livro de Foucault (1992), As palavras e as coisas, con-seguiu mostrar que houve um desnível abrupto em todo espaço da ciência. A diferença no modo de pensar o ser e os entes nas ciências da Idade Clássica (séculos XVII e XVIII) e nas ciências da nossa modernidade (da virada do século XVIII aos nossos dias) é de tal magnitude que esses dois períodos perfazem verdadeiros sistemas inconscientes de pensamento alternativos, que Foucault (1992) chamou de epistemes.

Até o século XVIII, os seres respondiam, na análise científica, por essências fixas. Foi nesse horizonte que a ciência clássica (a dos séculos XVII e XVIII) construiu uma nomeação individualizada das espécies vivas e de seus gêneros. A nomeação segue um padrão fixo de gênero e espécie a que correspondem duas palavras latinas. Essa identificação individualizante visava a constituir um sistema de representação de extensão e validade universais para todos os seres vivos da Terra e isso num quadro classifica-tório tão fixo e estático quanto suas próprias naturezas.

Na virada do século XVIII, numa transformação epistemológica geral, que As palavras e as coisas chamou de “arqueológica”, os seres deixaram de ser pensados como fixos. Era a ultrapassagem da ontologia fixista. A primeira construção científica, nesse sentido, foi a da Idade da Terra. A existência de conchinhas marítimas em lugares distantes do mar foi explicada pela ideia de que o mar já esteve sobre aquele sítio, no passado. A Terra, passando por idades, teria tido outros mapas, outras distribuições de oceanos e continentes.

Uma ontologia relacional, já que diz respeito às relações de terra e mar, permi-tiu o nascimento de uma história geológica. (Foucault, 1992; Jacob, 1983).

A esse primeiro acontecimento da grande transformação epistemológica articulam-se outros, em diferentes saberes, todos eles ligados à ontologia relacional. Os vivos passaram a ser vistos não mais como máquinas sempre iguais a si mesmas, à maneira de Descartes (autor do século XVII), mas como organização dotada de autofinalismo: a reprodução. As partes e funções do vivo, agora não mais pensadas como peças de um relógio, dão e recebem sentido umas das outras e do todo. Dito de outra forma, um ser vivo é um complexo de relações governadas por um finalismo interno, o que faz dele um organismo (Foucault, 1992; Jacob, 1983). Não se detendo nesse conceito, a nova ontologia identificou relações externas do vivo. Os seres não se encon-tram fechados no seu autofinalismo, mas integram-no com os vivos e com o inorgânico do seu entorno, que torna a vida possível. Nasceu o conceito de meio (Canguilhem, 1980).

Até antes da grande transformação epistemológica da virada do sé-culo XVIII, a ciência clássica estudava as palavras como instrumentos do homem para representar as coisas. Umas e outras, palavras e coisas, eram fixas. A representação intelectual do ente ou da coisa, mediada pela pala-vra, era também fixa; e também o homem, certamente. A ciência clássica podia convencionar novos nomes, como os do sistema internacional de nomeação individualizada e classificatória dos seres vivos em gênero e espécie, permanecendo fixa a conexão representacional entre nome e ser.

Desde o século XIX, porém, com a mesma transformação epistemológica ou arqueológica já referida: as palavras passaram a ser estudadas como integrantes de um sistema relacional que é a língua, as relações entre as palavras e dessas com as coisas mudam no tempo. Nasceu a filologia. As palavras e as línguas passaram a ser estudadas como sistemas independen-tes dos sujeitos falanindependen-tes, que ignoram os processos de mudança da língua a ocorrer continuamente. As palavras e as línguas, agora pensadas numa ontologia relacional, tornaram-se seres com história própria, deixando de ser entidades fixas e meramente instrumentais da representação das coisas do mundo (Foucault, 1992).

Ao mesmo tempo, houve a passagem da análise das riquezas para a economia política. Até o século XVIII, o ouro era a representação da ri-queza. Acumular ouro era concentrar riqueza, ele a representava. Desde o nascimento da economia política, ciência da nossa modernidade, todo valor econômico vem de algo não representável, o trabalho humano e, se for possível calculá-lo, só o será em termos do tempo de trabalho empenhado, ou seja, da relação entre o trabalho e a natureza transformada por ele pela mediação dos instrumentos. Mas a trama relacional é ainda mais comple-xa, pois as melhorias técnicas e tecnológicas reduzem o tempo de trabalho necessário à produção, o que altera o conjunto de relações constitutivas do valor econômico, pois alteram o trabalho. Percebe-se bem, pela economia política, que a relação, nessa nova ontologia, é constitutiva. O trabalho humano cria o valor econômico.

Dessa forma, a grande transformação epistemológica da nossa mo-dernidade foi a que nos situou no horizonte da nova ontologia. As ci-ências próprias da nossa modernidade só existem na medida em que operacionalizam uma ruptura com a ontologia classicista: a da fixidez do ser, da representação, da palavra, da coisa. Tudo isso era concebido num alinhamento entre o objeto conhecido e o sujeito do conhecimento, por correspondência direta, fixa e não atravessada pelo tempo nem pela cria-tividade do sujeito conhecedor.

Na transformação do sistema de racionalidade científica que inaugu-ra a nossa modernidade, houve uma cisão com uma leituinaugu-ra estritamente mecânica do movimento e do tempo e com uma teoria exclusivamente representacional do conhecimento. No lugar disso, os seres (os vivos, as palavras e os produtos do trabalho humano) inter-relacionam-se de ma-neiras diferentes, no tempo, e isso os transforma. Assim, o tempo penetra o ser e os entes; e eles, no lugar de fixos, estão em trânsito na história, constituindo a história de suas relações que os constituem e transformam.

A ontologia relacional é a ferramenta mais preciosa da participação política porque ela é uma maneira não fixista de tratar os instrumentos políticos, o Estado, as políticas públicas, os agentes políticos, os aparelhos de Estado etc. Marx e Nietzsche são dois pensadores que melhor exercitaram

e burilaram essa nova ontologia para os propósitos da arte da interpretação ou leitura dos processos históricos (Foucault, 1994a).

O livro de G. Deleuze (2018), Nietzsche e a filosofia, é uma das melho-res exposições da ontologia relacional de que dispomos. Um ser não é algo dado por si e em si mesmo, como na ontologia tradicional. Os seres são o que se tornam apenas enquanto se confrontam e se interpretam, no cruzar das espadas. Nesse sentido, a existência não se encontra mais separada e independente do conhecimento que os seres fazem uns dos outros, pois não há um ente independente de seu relacionamento e confronto de forças e de conhecimento com os outros entes. Nessa nova ontologia, o ponto de partida não é mais o ser, mas a relação. Ela é constitutiva porque os entes são o que são apenas ao serem dados ao conhecimento uns dos outros. Mas o conhecimento recíproco não oferece fatos e dados. Antes, é a construção das leituras resultantes dos entreveros e trombadas, na relação efetiva, na confrontação, no agon, e isso faz com que a constituição do outro (no ser e no saber) seja também e simultaneamente uma constituição de si. O co-nhecimento ocorre no processo continuado da relação ontológica, donde a afirmação de que o tempo penetra os seres. Sendo decisiva no conhecimento do outro, a temporalidade da relação é constitutiva de ambos.

Foi porque essas filosofias, a de Marx e a de Nietzsche, operaram as mais densas elaborações da ontologia relacional da nossa modernidade, que em nenhuma obra como na deles apareceu tão contundentemente o problema da sociedade-com-Estado, em Marx, e do homem, em Nietzsche, como pontos de passagem e não de chegada.

A instalação da ontologia relacional, entretanto, não tornou impossível que uma ontologia de tipo fixista continuasse a prosperar. Nasceram saberes sobre o homem em que se propugna uma relação mecânica entre seu tipo físico e sua personalidade, para o que se desenvolveu um sistema de medição de crânios. Lombroso padroniza as características físicas das personalidades criminosas. No lugar das relações constitutivas entre os sujeitos e sua socie-dade, o fenótipo (Darmon, 1991).

Enquanto a ontologia relacional, em Nietzsche, vingou como a mais destacada filosofia do homem como ponto de passagem, a de Marx o fez em

relação aos modos de produção (ou dos modos de apropriação do produto do trabalho) em sua relação com os sistemas sociais e políticos.

Marx instalou a ontologia relacional no plano das relações materiais e econômicas pela contradição dos polos, seguindo o modo como Hegel havia pensado a dinâmica relacional. A contradição permite uma solução passagei-ra pela síntese dos polos relacionais. Mas essa síntese se torna polo de nova contradição. Essa maneira de pensar a ontologia relacional recebeu o nome de dialética: as relações não são neutras, são contraditórias. As relações materiais de produção, em condições de apropriação privada dos meios de produção, colocaram em polos relacionais contraditórios o capital e o trabalho; o capi-talista e o trabalhador.

Foram também Marx e Nietzsche que, levando às últimas consequências a ontologia relacional, lograram colocar na ordem da análise histórica os valores morais, até então tidos como transcendentes ao tempo e às socie-dades. De ambas as filosofias emerge a ferramenta decisiva de análise dos sistemas de valor, a solapadora pergunta pelo “quem” diz o bem e o mal. Em ambos os autores aparece o perspectivismo da produção moral em relação ao interesse de classe (em Marx) e aos polos do poder (em Nietzsche). Em que pese a diferença das análises da dialética materialista de Marx e da genealogia de Nietzsche, o importante é que ambos propuseram analíticas dos sistemas de moralidade da modernidade como enraizados nas relações de dominação, conquista e espoliação. Em ambos os autores os sistemas morais precisam ser ligados aos lados do conflito, da luta, da guerra e às suas histórias. Nesse ponto de cruzamento, encontram-se as análises de poder feitas por Foucault.

No documento Interrogações às políticas públicas (páginas 95-100)

Outline

Documentos relacionados