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Biopolítica, necropolítica e as vidas consideradas inelutáveis na pandemia por Covid-19 e suas variantes

No documento Interrogações às políticas públicas (páginas 130-135)

A decodificação e a reconfiguração do corpo social para uma série de números estatísticos, voltados ao controle dos mais variados desníveis nos “nichos”, isto é, adensamentos da demografia, das redes de comércios, entre outros; bem como, da administração e gerência da vida ao nível da população, não é algo novo. Na verdade, descende de pelo menos dois séculos, com a aparição, inserção da gestão e da administração populacio-nal, no seio dos Estados modernos. Se buscarmos por razões genealógicas para corroborar este argumento, poderemos ver que os modelos de cidades as quais foram projetadas para permitir o escoamento de seus produtos, que eram higienizadas, e que viabilizavam o exercício de uma vigilância constante, ou pelo menos, “fácil” de ser exercida, foi um problema advindo do século XVIII (Foucault, 2008a). De maneira geral, se por um lado a soberania se exercera sobre um território e a disciplina sobre a reorganização do espaço; a noção fulcral/biopolítica que emerge durante aquele século, qual seja, a de “segurança” (sécurité), estará totalmente alinhada às noções advindas da biologia, por exemplo, como a de “meio” (milieu).

O meio, objetivamente falando, “é o que é necessário para dar conta da ação à distância de um corpo sobre o outro” (Foucault, 2008a, p. 7); isto é, o “meio” é um locus específico que deve ser tratado, projetado, organizado e averiguado milimetricamente, para que se possa ter a noção literal da circulação e da causalidade, ou seja, do que transita em uma cidade (pessoas, produtos, animais, meios de transporte, e, até mesmo, o vento por entre as ruas etc.), e do que acontece em uma cidade (epidemias, catástrofes

naturais, crimes diversos etc.). Para que tudo ocorra de maneira correta, conta-se com o desenvolvimento de diversos “dispositivos de segurança” para controlar os eventuais desníveis do meio. Assim, entende-se que nunca irão se encerrar os crimes, erradicar o aparecimento de possíveis crises de saúde, de escassez alimentar e etc. Entretanto, controlar estes níveis e adequá-los a

“números aceitáveis” é possível de ser executado. E aí está presente a “lógica biopolítica”: às vezes, o mantimento desses níveis requererá a padecimento de uns em detrimentos de outros. Melhor dizendo: contentamo-nos com os baixos níveis de roubos, assassinatos, epidemias e crises, mesmo que eles signifiquem o sofrimento de alguns, para que se mantenham a maior parte da população, economicamente falando, sadia e ativa.

A gerência biopolítica focada na geopolítica e na racionalidade bio-médica, enquanto uma das formas de governo do meio, é estratégica no caso da atenção em saúde nas pandemias, especialmente, a do novo coronavírus. Com efeito, há neste ponto um encontro entre biopolítica, soberania jurídica e panoptismo disciplinar, incidindo sobre o que Foucault (1979) delimitou como biopoder. A seguridade social é um mecanismo de segurança assentado no biopoder e opera pela polícia da saúde, atualizadora do poder pastoral, em que a vida se torna alvo de valor a ser governada (como um rebanho em nome da saúde), pois o pastoreio se dava como governamentalidade semelhantemente, outrora, como governo das almas rumo à salvação em outra vida. A medicina como religião deseja salvar corpos em nome da saúde (Foucault, 2008a).

Como já dito, a Covid-19 assolou e continua assolando diversos países pelo mundo. Mas, será mesmo que as medidas de contenção da prolife-ração da doença funcionarão de maneira equitativa para todos? Pensemos no Brasil, e, especificamente, em nossas diversas periferias, através e por onde, há muito, é relatado o contraste de um país que é rico, em PIB, e pobre em medidas para asseguramento da qualidade de vida da popula-ção, o chamado IDH. Quem são aqueles que estão sob o risco constante da exposição ao vírus, caso haja um colapso em nosso sistema de saúde?

Estaremos preparados para o “pior”? Percebemos que, com isso, se um dia se falou em “afirmação da vida”, nos termos biopolíticos (mesmo que

sejamos desconfiados de tal assertiva), em nossa nação, pouco percebemos isto de forma analítica. O que há, na verdade, é um exercício do biopoder que fere, marca, exclui, oprime, coage e mata, muito mais rápido e de for-ma for-mais expressiva do que aquele que for-mantém a vida, que dá saúde, que a potencializa. Mesmo que ainda contemos com um programa de saúde pública de qualidade como o Sistema Único de Saúde (SUS), os números e as estatísticas indicam que não podemos dar conta do que poderíamos denominar de enxame viral. A lógica biopolítica seguirá a mesma: morre, massivamente, o mais fraco na “terra do carnaval”.

O fazer viver e o deixar morrer é uma questão crucial da biopolítica e está presente nos cálculos estatísticos, socioeconômicos e geopolíticos da pandemia em todo o globo. O acesso às condições de imunidade e pre-venção, em função das condições sanitárias, por quarentena e isolamento, efetivamente, está atravessado pela questão de classe social, de raça/etnia, de gênero e de faixa etária. Trata-se do próprio paradoxo da biopolítica, em nome da vida: cresce a morte pelo “deixar morrer”, na medida em que, para que alguns vivam, muitos outros são deixados à própria sorte, em uma evidente decisão política.

No bojo do que vinha trabalhando Foucault, Butler (2018) também salientou que determinadas vidas são choradas quando morrem. O luto por elas gera intensa comoção, enquanto outros corpos são despidos da condição humana, isto é, da vida digna de ser valorizada e chorada em casos de luto, violência e violação de direitos. O enquadre de números e fotos, por exemplo, é uma interpretação de uma verdadeira guerra em que certos corpos são enterrados em valas comuns, jogados como “sem valor”

e “sem comoção social”, como tem-se visto em muitos países, nos enterros dos mortos pela Covid-19, dentre eles o Brasil. O descaso acontece até mesmo em setores do Estado e na cultura necropolítica que o embasa.

Achille Mbembe (2019), filósofo camaronês ainda em atividade, designa muito bem esta lógica, chamando-a de necropolítica. O grande ganho qualitativo deste último termo fora o de tornar explícito seu re-lacionamento às mútuas investidas coloniais e neocoloniais, em países diversos, que supliciaram e objetificaram o corpo negro/escravo, nos mais

variados casos em que os sistemas de plantation foram utilizados como base estrutural-econômica para desenvolvimento das nações no Novo Mundo, pondo à frente dos olhos a lógica da submissão racial, presente na escravidão. Mbembe (2018) ressalta as novas formas de colonização, nas últimas décadas, e como a necropolítica é materializada nelas por meio da construção de apartheids e racismo, Estado de emergência e racialização das políticas, biopoder e política da morte, na explicitação de uma materialidade colonial/racista no Estado de Direito e na governamentalidade neoliberal.

A ideia de concorrência entre os Estados modernos atualiza a racionalidade da conquista nos períodos colonial e imperial que os precedem. Há um deslocamento do conceito de colônia para o exercício do terror, à margem da lei, e até mesmo em nome da lei.

Fazendo uso do referencial exposto, poderíamos interpretar que a crise a qual nos sonda atingirá, principalmente, nossa população menos abas-tada em recursos e condições de manter perante as dificuldades impostas pelo vírus. É histórica a permanência de tais desigualdades, oriundas de questões raciais, em nossa sociedade, que um dia já foi escravista. E isto, infelizmente, tenderá à intensificação, se for posto na conta, também, nossa atual crise política do Estado e da sociedade. Arriscando-nos, então, a uma transposição, ou ressignificação, do termo de Mbembe (2019) para os parâmetros brasileiros dos dias atuais, diríamos que, em grande parte, o corpo morto pelo novo coronavírus é o das pessoas negras. Não somente elas, mas indígenas, quilombolas, idosos e habitantes das periferias urba-nas. Pessoas que são sobrepujadas pelos efeitos da gestão necropolítica da pandemia. Traduzindo: no Brasil, a vida em vulnerabilidade é a dos menos favorecidos e assistidos na tomada de decisão.

A ação “diferenciadora” do novo coronavírus atestaria uma necropolí-tica, na medida em que potencializa dificuldades práticas para se lidar com o mesmo e escancara um modus operandi que flutua em torno do “deixar morrer”. Uma destas dificuldades gira em torno da necessidade de se ter respiradores artificiais em quantidade suficiente e à disposição, para quem deles necessite, pois a Covid-19, como sabido, compromete o sistema pulmonar/respiratório dos acometidos. No entanto, o acesso seletivo aos

respiradores e aos leitos das unidades de tratamento intensivo (UTIs) é filtrado por supostos fatores de risco e critérios de valoração da vida, algo que não deveria acontecer.

Para entendermos melhor, nos remetemos a uma notícia do jornal britânico The Telegraph, em 14 de março de 2020. Nela ficou exposto, através de um documento de uma unidade de controle e gerenciamento de crises, em Turim, na Itália, que diante da impossibilidade de se manter a todos em respiradores de terapia intensiva, deveriam ser seguidas algumas medidas básicas, ditas “preventivas”, dentre elas, a de decidir, literalmente, quem deverá viver e quem deverá morrer. No caso mencionado na matéria, a escolha seria feita entre os mais velhos (com menos chances de sobreviver à enfermidade) e os mais jovens (principalmente os mais saudáveis). E por que? A lógica é: salva-se o mais jovem e com maior capacidade de voltar a ter uma vida ativa e saudável na condição de trabalhador, em detrimento daquele que já estava com uma baixa produção nas atividades produti-vas e atingindo um momento de maior demanda por proteção, isto é, a chamada seguridade social, logo, implicando em um custo maior para o Estado. Assim, uma questão socioeconômica, de cunho gerontocida, é justaposta também a um protocolo de guerra, que expõe, da forma mais aviltante, o Estado de emergência se materializando por uma necropolítica na gerência do que se passou a nomear como governo da crise do novo coronavírus. Mbembe (2019) descreve esta mistura de fatores políticos e econômicos nomeando o sistema neoliberal de produção, como sendo o de um necroliberalismo.

Há um limite nos usos da ciência como racionalidade de práticas de-cisórias na política neoliberal. O conhecimento validado é aquele que serve aos interesses de grandes corporações e os da concorrência entre os Estados.

Parece existir uma instrumentalização científica da sociedade por meio da biopolítica, da disciplina e da necropolítica, nas quais a medida de inter-venção é o valor conferido a determinadas vidas. Os saberes são utilizados mais para alguns do que para outros nas políticas públicas – dependendo das tomadas de decisão dos Estados modernos –, em nome da segurança e do controle das liberdades individuais e da desregulação dos mercados. Os

níveis de confiabilidade na ciência vêm diminuindo com o crescimento e a expansão das ações desregulamentadoras do Estado neoliberal.

Isto não quer dizer que a ciência deixa de ter importância na política de cuidado de vítimas de doenças como as que foram infectadas pelo novo coronavírus e outras, bem como para a resolução de diferentes problemáti-cas sociais e econômiproblemáti-cas. O ponto de tensão é o homem empresário de si mesmo e o vetor economicista que o move na racionalidade neoliberal, na qual a liberdade deve ser balizada pelo termômetro do mercado, estando acima das vidas e dos chamados direitos humanos universais. Os direitos nomeados como fundamentais ficam em segundo plano face à lógica empresarial. Neste ponto, a ciência é profanada pelo mercado. Porém, há vírus que profanam o mercado, mesmo quando este insiste em fazer valer os seus interesses acima da vida e da ciência. É neste âmbito que o mercado tenta flertar com a instrumentalização da ciência e da vida.

Até mesmo o poder de morte e o deixar morrer podem lançar mão da ciência e dos direitos em nome de interesses nada éticos, focados no lucro exorbitante de pequenas parcelas da população mundial. A voracidade mercantil não cessa de crescer e atropelar princípios básicos de dignidade e reciprocidade em nome do crescimento econômico como sinalizador de êxito político. Assim, a Covid-19 se torna uma ameaça ao mercado e à avidez do mesmo; limita lucros e circulação de bens; diminui a produção e o consumo de mercadorias específicas; e tanto mata quanto afasta tra-balhadores do dia-a-dia da hiperexploração do trabalho. A precarização se intensifica para as pessoas que estavam em trabalhos com poucos ou quase nenhum direito garantido, sobretudo os informais, que pouco podem se proteger de infecções e dependem de cada dia, horas e minutos para gerarem renda, pois não têm salários fixos (Mascaro, 2020).

No documento Interrogações às políticas públicas (páginas 130-135)

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