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Pistas a respeito do enxame viral

No documento Interrogações às políticas públicas (páginas 123-126)

Postula-se que há uma geopolítica da doença, e, também, uma história da mesma. A distribuição espacial do contágio é um efeito diferenciado na transmissão em função de modos de objetivar e subjetivar a doença. As formas de apreensão e reconhecimento de um ser tem uma materialidade histórico-cultural e geopolítica baseadas na gestão da vida adotada no mo-mento do evento. No caso de uma pandemia como a do coronavírus, há riscos e vulnerabilidades específicas, resultantes da precariedade das vidas em cada local, a partir dos parâmetros de enquadramento da ideia de “guerra declarada à transmissão”, e aos efeitos do contágio face à capacidade de cuidado organizada pelos valores afetivos, culturais e sociais; dados às vidas, pelos quadros de apreensão e reconhecimento. Neste ponto, consideramos utilizar os trabalhos de Butler (2018), a respeito dos quadros de guerra.

Há uma historicidade dos conceitos de saúde, doença, epidemia, pan-demia, vírus, contágio, enpan-demia, normal, anormal, patológico, diagnóstico e tratamento. Com efeito, uma doença não é um fato natural [não?]; e os modos de lidar com ela, menos ainda (Czeresnia, 1997). O coronavírus (Sars-Cov-2) possui uma taxa alta de transmissão, se comparado ao primeiro vírus pandêmico do século XXI, o H1N1 (também nomeado de influenza, transmitido aos seres humanos pelos porcos, denominado de “gripe suína”).

A endemia é uma grande infecção de caráter local de um agente in-feccioso, em uma região específica, como exemplo: a febre amarela. Já, a epidemia é um contágio que acontece em diversas localidades e regiões de um país. No caso da pandemia, há uma infecção de grande contágio, a qual se generaliza por vários continentes (Gordis, 2004). O intenso índice de contágio da Covid-19 produziu uma pandemia com resultados catastróficos, sobretudo, nos países com menores condições de infraestrutura sanitária e com políticas públicas deterioradas e sucateadas. Assim, a Covid-19, um novo tipo de coronavírus ainda sem cura e altamente transmissível, escan-carou uma crise global política, cultural, social e econômica, de diferentes matizes e intensidades.

Com efeito, trata-se de uma crise bastante corrosiva, não apenas à saúde dos cidadãos de diversos países, mas ao nosso próprio modo de vida, em uma sociedade marcada pela ideia de empreendedorismo e de cobranças por extrema produtividade, baseada na racionalidade neoliberal. Diversos países do mundo sentem os efeitos nefastos da pandemia de forma dife-rente, em função das histórias de cada um deles e pela conjugação de um conjunto de práticas: econômicas, sociais, culturais e políticas. Em certas ocasiões, nas quais houve ocorrências muito drásticas, isso se deveu à total ignorância da periculosidade do vírus – mesmo quando ele já apresentava dados alarmantes em Wuhan, na China, epicentro da doença –, como foi o caso da Itália. Em outros exemplos, como o da própria China, o governo logo agiu fazendo uso ostensivo de sua avançada tecnologia biovigilante para lidar de maneira “mais eficaz” com a crise instalada. Uma atitude que, hoje, se reflete no controle da transmissibilidade do vírus, e, no mais, traz à tona a questão ética da retirada da privacidade e da liberdade virtual (Han, 2020).

No Brasil, pesquisas indicam que, em 2018, o país tinha, pelo menos, 13,5 milhões de pessoas com renda salarial de até R$ 145; há também cerca de 30 milhões (16% da população) sem água encanada; 74,2 milhões não tem saneamento básico, e, com isso, sem coleta de esgoto; 5,8 milhões não possuem banheiro em casa; 11,6 milhões residem em imóveis com mais de 3 moradores por compartimento. Tudo isto quer dizer que o número de pessoas

que não dispõem das mínimas condições de sequer manter-se em isolamento, que vivem amontoadas em suas casas, sem condições de manter a assepsia ideal para a prevenção do Covid-19 é, no mínimo, alarmante. Com o que vimos até agora, resta a dúvida: qual será a lógica utilizada pelas autoridades políticas brasileiras para manter a salvo a população em meio à crise?

É importante fazermos nota de que existiram diversas crises pandêmi-cas às quais já assolaram o mundo em outros momentos da história. Em um dos mais conhecidos, retomemos o caso da peste bubônica, de 1348, nomeada como “peste negra”, responsável por uma das maiores baixas demográficas da história europeia, no século XIX. Durante este tenebro-so acontecimento, faça-se nota de que o modelo da quarentena fora um dispositivo de suposta contenção do que poderia ser classificado como um enxame, tal como ocorre hoje, no tempo da Covid-19.

Na medida em que a pandemia é politizada, inúmeros aspectos e atravessamentos são analisados, tanto no plano dos efeitos quanto no en-quadramento realizado pelos Estados e sociedade, sendo que há explícitos elementos racistas, classistas, de gênero, de faixa etária, de acesso desigual às políticas públicas, de habitação, de luto e modos de gerenciar as crises e problemáticas desencadeadas pelo grande e forte impacto do contágio.

Neste sentido, o espraiamento do vírus se torna um enxame difícil de conter, dado o seu potencial de se espalhar e causar situações estarrecedoras em termos de catástrofes sociais, econômicas, subjetivas, culturais e geo-gráficas, fatores que levam os analistas deste acontecimento a afirmarem que se trata do problema mais grave na sociedade global desde a II Guerra Mundial (Mascaro, 2020).

Percebem-se os impactos da pandemia na vida de vários segmentos e grupos sociais específicos com marcas singulares de incidência do aconte-cimento Covid-19, tais como: mulheres com o aumento da cobrança das atividades na família concomitantes às exigências no trabalho; idosos são considerados inelutáveis e a morte deles é naturalizada e banalizada por muitos governantes; cidadãos moradores de áreas classificadas como peri-féricas à margem dos centros urbanos – em geral, pobres e negros – sofrem com o maior contágio e descaso público, no que tange a agilizar políticas

sociais de atenção face aos impactos econômicos e sanitários, decorrentes do desemprego e da ausência de acesso à água e saneamento básico, fatores estes que os fragilizam na imunidade e nas condições difíceis de habitação para realizar a prevenção higienista ao vírus. De fato, iniquidades ganham expressão significativa na incidência e gravidade de manifestação do contágio (Mascaro, 2020).

Com efeito, diante das encomendas higienizadoras, há uma incitação à disciplina, organizada por meio da vigilância minuciosa para diminuir os índices de contágio e de morte por Covid-19. Todavia, os mecanismos de quarentena e isolamento ganham aspectos diferentes, quando as condições de moradia, bem como, socioeconômicas, são agentes envolvidos na ex-pansão da pandemia e dos seus efeitos nefastos; assim, não respondendo à racionalidade higienista/disciplinar de um modelo panóptico de sociedade.

No documento Interrogações às políticas públicas (páginas 123-126)

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