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Considerações finais

No documento Interrogações às políticas públicas (páginas 135-142)

O novo coronavírus trouxe uma série de efeitos e limites à sociedade atual, implicando em regulações biopolíticas da vida, em disciplinas e vigi-lâncias panópticas e em uma gestão da morte pela necropolítica. As diversas

formas de gerir a pandemia e as consequências da mesma possibilitaram perspectivas distintas de operacionalizar as forças de governo das condutas nos Estados modernos. Mecanismos de segurança de ordem e lei foram criados e instalados especificamente para o enfrentamento da pandemia.

Este artigo procurou problematizar estas práticas com atenção e crí-tica, apontando elementos do acontecimento Covid-19 e pandemia no que tange a gestão da vida e da saúde nas correlações com a seguridade social, os efeitos nefastos do grande contágio na economia, na política, na cultura e na sociedade contemporânea. Para tanto, optou-se por des-crever e analisar práticas delimitadoras das maneiras de cuidar das pessoas na prevenção e promoção de saúde bem como no tratamento referentes às decisões políticas tomadas pelos Estados modernos, em um período neoliberal, marcadamente centrado no mercado.

O preconceito e o estigma foram parte do dispositivo racista da bio-política e da necrobio-política abordado neste texto. Parker (2013) destaca a dimensão de estigma das doenças e, no caso da infecção do novo coronavírus, ficou patente tanto o preconceito e a discriminação negativa por regiões, países, cidades quanto de grupos de profissionais e pessoas de determinadas faixas etárias, raças/etnias, gênero, classe social e locais de habitação, bem como no enterro daquelas que passaram a ser tratadas como vidas não dignas de luto, pois foram lançadas em valas comuns e sem direito à (sem crase) velório e a outros rituais de elaboração da comoção diante das perdas.

O que Esposito (2010) classificou como mecanismo imunitário foi analisado na biopolítica como a decisão de fazer viver e deixar morrer de infecção por novo coronavírus em função da ausência de imunidade biológica, de imunidade no sistema de recursos e políticas sociais e de contratualidade na configuração dos países e de cidadania face à pandemia da Covid-19. Ter imunidade não é uma natureza biológica meramente, implica em estar em menos precariedade, como delimitou Butler (2018, 2019) ao conversar sobre os quadros de guerra e as vidas precárias, em dois livros que escreveru com relevantes análises a respeito das vidas inelutáveis e daquelas consideradas como dignas de luto em função dos recortes de valoração dos corpos, no presente.

As táticas panópticas de vigilância, cada vez mais sofisticadas, conforme Antoun (2010), ganharam chips, drones, câmeras, códigos de entrada e saída, medição de temperatura obrigatória, inspeções em navios e aviões, fechamento de fronteiras e de aeroportos, mecanismos de quarentena e isolamento, de lockdown obrigatório e sob pena de punição legal por pri-são e multas caso descumprido, entre outras estratégias disciplinares. No aspecto do apartheid sanitário, a ideia de cidades como negócios (Alvarez, 2015) ganhou intensa visibilidade em função da geopolítica da pandemia centrar-se no controle do meio como espaço de centros urbanos a serem geridos na biopolítica e na necropolítica. A economia política citadina neoliberal e higienista, extremamente valorizada e comercializada com o rótulo de qualidade de vida foi colocada em xeque e novas formas de vivenciar a cidade pela solidariedade e cuidado, ganharam espaço nas práticas cotidianas.

O endividamento tornou-se central e deu indícios do que Lazza-rato havia nomeado como governo do endividamento (2014) porque até bancos e empresas aéreas foram socorridos nas dívidas acumuladas por prejuízos causados a partir da pandemia. Entretanto, pobres e pessoas em vulnerabilidade demoraram e ainda aguardam políticas sociais de enfren-tamento ao endividamento e de atenção psicossocial sejam efetivamente implementados. Por fim, o novo coronavírus escancara as iniquidades de uma sociedade capitalista, embasada na biopolítica, no regime panóptico e na necropolítica.

O quadro é de guerra, e a política da inimizade em andamento no país o agrava de modo inenarrável, se tornando uma prática de genocídio realizada como racionalidade instrumental, articulando a necropolítica com a tanatopolítica, e o racismo de Estado e a sociedade. Os acontecimentos são dramáticos e chocam até mesmo os mais céticos. O presente é constituído por hospitais lotados, tanto os públicos quanto os privados, as filas são imensas à espera de leitos para Unidades de Tratamentos Intensivos (UTIs), faltam: insumos, oxigênio, respiradores, anestesia e profissionais. Há um abandono do povo à própria sorte, e a perspectiva de ampla vacinação bem como de controle do contágio é distante a ponto de quase inexistir como

horizonte no país. Há uma busca internacional pelos insumos e vacinas, sendo extremamente difícil adquiri-los sem planejamento e diplomacia.

Assim, o cenário tornou-se desolador e preocupante, a guerra pela vida e a gestão da morte atualizaram quadros de guerra e novos modos de colo-nialidade racista.

Referências

Alvarez, I. A. (2015). A produção e reprodução da cidade como negócio e segregação. In A.

Carlos, D. Volochko, & I. Alvarez (Orgs.), A cidade como negócio (pp. 65-80). São Paulo:

Contexto.

Antoun, H. (2010). Vigilância, comunicação e subjetividade na cibercultura. Bruno, F.;

Kanashiro, M.; Firmino, R. (orgs.) Vigilância e Visibilidade: espaço, tecnologia e identificação (pp. 141-154). Porto Alegre: Sulina.

Butler, J. (2018). Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira.

Butler, J. (2019). Vida precária: os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Autêntica.

Czeresnia, D. (1997). Do contágio à transmissão: ciência e cultura na gênese do conhecimento epidemiológico. Rio de Janeiro: Fiocruz.

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Vozes.

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Foucault, M. (2008a). Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes.

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Gordis, L. (2004). Epidemiologia. São Paulo: Revinter.

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elpais.com/ideas/2020-03-22/o-coronavirus-de-hoje-e-o-mundo-de-amanha-segundo-o-filosofo-byung-chul-han.html

Lazzarato, M. (2014). O governo do Homem Endividado. São Paulo: N-1 Edições.

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Mbembe. A. (2018). Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. São Paulo: N-1 edições.

Mbembe, A. (2019). Crítica da razão negra. São Paulo: Antígona; Martins Fontes.

Parker, R. (2013). Intersecções entre estigma, preconceito e discriminação na saúde pública mundial. In S. Monteiro & W. Villela (Orgs.), Estigma e Saúde (pp. 25-46). Rio de Janeiro:

Fiocruz/Faperj.

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