A produção de referências técnicas pelo Conselho Federal de Psicologia é fundamental frente às demandas das psicólogas. Sua escrita emerge em um contexto de forças políticas, históricas e sociais que embasam pautas e problematizações do fazer psi, além de promover atualizações das práticas, considerando que as formações universitárias, tanto na graduação e na pós-graduação, podem ser deficitárias quanto à atualidade das expressões da questão social e de debates epistemológicos do contemporâneo.
A interseccionalidade provoca reflexões que podem ser aliadas das políticas públicas, visto que amplia as discussões sobre as formas correntes de dominação e os padrões de desigualdade sociais por combinar diferen-tes variáveis na análise das opressões. Nesse sentido, pode-se entender o contexto social de um modo ampliado, atento aos entrecruzamentos das opressões que se colocam no cotidiano da vida e que se presentifica nos serviços públicos e nas relações ali construídas.
Escrever, para nós, pesquisadoras brancas, tem sido um exercício de encontros tensos com nossa branquitude e com o desejo de compor a luta antirracista, levando as discussões para nossos diferentes locais de práticas psicológicas: a clínica, o hospital, a assistência social, a saúde, a educação, a docência. Ainda assim, escrever a partir da branquitude que nos cons-titui consiste em um desafio que não está somente em perceber-se como alguém beneficiado pelas estruturas de poder, mas também em expor as falhas estruturais que nos compõem e em lutar contra a imobilização que este lugar pode nos provocar. É o desafio de sair da culpa imobilizadora e tentar construir e compor ativamente a luta antirracista.
A escuta - que nos é tão cara enquanto prática psi - necessita se constituir num processo contra-hegemônico de deslocamento da mitologia branca, que, como aponta Marcelo Moraes (2017), se constitui no predomínio do homem branco, racional, hetero e europeu, que promoveu e ainda promove violências contra aqueles que não fazem parte do grupo tido como ideal universal. O epistemicídio é uma destas violências coloniais que busca a destruição de todas as possibilidades de produção de conhecimento dos povos não europeus, seja nas escritas, nas produções culturais, científicas e éticas.
É indispensável, para nós, nas produções de vida e de escrita, pautarmos uma geopolítica da descolonização, buscando novas perguntas, refletindo cotidianamente sobre nossos lugares de fala e escrita, para construir alternativas contra-hegemônicas que possam produzir novas narrativas, outras histórias, sempre localizadas e provisórias. Para isso, torna-se im-perioso o exercício permanente de descolonização do olhar, da escuta, dos pequenos e grandes gestos. O caminho é longo, motivo para que a crítica (a autocrítica) seja permanente.
Referências:
Akotirene, C. (2019). Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen. (Coleção Feminismos Plurais)
Almeida, S. (2018). Racismo estrutural. São Paulo: Editora Letramento. (Coleção Feminismos Plurais)
Anzaldúa, G. (2000). Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 8(1), 229-236.
Benevides, B. (2021). Prefácio. In: B. Benevides & S. Nogueira (Orgs.), Dossiê dos assassinatos e da violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2020. (pp. 9-11). São Paulo: Expressão Popular; ANTRA; IBTE.
Bento, M. A. (2002). Branqueamento e branquitude no Brasil. In: I. Carone & M. A.
Bento (Orgs.), Psicologia social do racismo – estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil (pp. 1-30). Petrópolis, RJ: Vozes. Recuperado de http://www.media.ceert.org.br/
portal-3/pdf/publicacoes/branqueamento-e-branquitude-no-brasil.pdf
Bueno, W. (2019). Repensando a Interseccionalidade. Portal Geledés. Recuperado de https://www.geledes.org.br/repensando-a-interseccionalidade/
Carneiro, S. (2011). Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro.
Collins, P. H. (2019). Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo: Boitempo.
Conselho Federal de Psicologia. (2005). Código de Ética Profissional do Psicólogo. Brasília, DF: Autor.
Conselho Federal de Psicologia. (2012). Referências técnicas para atuação de psicólogas (os) em Programas de Atenção à Mulher em situação de Violência. Brasília, DF: Autor.
Conselho Federal de Psicologia. (2017). Relações Raciais: Referências Técnicas para atuação de psicólogas/os. Brasília, DF: Autor.
Crenshaw, K. (2002). Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Rev. Estud. Fem. [online], 10(1), 171-188.
Davis, A. (2016). Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo.
Gonzalez, L. (1983). Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje.
Anpocs, 2, 223-244.
Grosfoguel, R. (2008). Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: Transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. Revista Crítica de Ciências Sociais, 80, 115-147.
Grosfoguel, R. (2016). A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas:
racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI.
Sociedade e Estado, 31(1), 25-49.
Hirata, H. (2014). Gênero, classe e raça Interseccionalidade e consubstancialidade das relações sociais. Tempo social, 26(1), 61-73.
hooks, b. (2010). Vivendo de Amor. Portal Geledés. Recuperado de https://www.geledes.
org.br/vivendo-de-amor/
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA. (2017). Retrato das desigualdades de gênero e raça - 1995 a 2015. Recuperado de https://www.ipea.gov.br/retrato/apresentacao.html Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA. (2020). Atlas da Violência. Recuperado de https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/publicacoes
Kilomba, G. (2019). Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro:
Cobogó.
Laborne, A. A. P. (2017). Branquitude, colonialismo e poder: a produção de conhecimento acadêmico no contexto brasileiro. In T. Muller & L. Cardoso, Lourenço (Eds.), Branquitude:
estudos sobre a identidade branca no Brasil. (pp 91-105). Curitiba: Appris.
Lima, E. F. et al. (Org.). (2019). Ensaios sobre racismos: pensamentos de fronteira. São Paulo:
Balão Editorial.
Maluf, S. W. (2018). Serviço Social: Gênero, raça/etnia, gerações e sexualidade. Revista Katálysis, 21(3), 435-440.
Moraes, M. J. D. (2017). Desconstruindo o epistemicídio a partir de Jacques Derrida.
Análogos, Rio de Janeiro, (nspe.), 16-26. Recuperado de https://www.maxwell.vrac.puc-rio.
br/30440/30440.PDF%20acesso%20em%2017/04/2018
Ribeiro, D. (2016). Prefácio à edição brasileira. In: DAVIS, A. Mulheres, raça e classe. (pp.
11-13). São Paulo: Boitempo,
Ribeiro, D. (2019). Pequeno manual antirracista. São Paulo: Companhia das Letras.
Ribeiro, J. (2019). Apresentação. In E. F. Lima et al. (Orgs.). Ensaios sobre racismos:
pensamentos de fronteira. São Paulo: Balão Editorial. Recuperado de http://www.
balaoeditorial.com.br/ensaios-sobre-racismos-pdf.html
Saffioti, H. (2004). Gênero, patriarcado e violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo.
Schucman, L. V. (2014). Sim, nós somos racistas: estudo psicossocial da branquitude paulistana. Psicologia & Sociedade, 26(1), 83-94.