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Vigilância disciplinar em tempos do novo coronavírus

No documento Interrogações às políticas públicas (páginas 126-130)

Um dos comuns modos de se lidar com os contágios foi o dispositivo da quarentena, discutido por Michel Foucault (1999a), em Vigiar e Punir, ao analisar a sociedade disciplinar. Deste modo, entre os escritos contem-porâneos, os estudos sobre disciplina, soberania e vigilância, são relevantes para pensarmos a pandemia da Covid-19, que também está inserida aos usos de mecanismos de quarentena, isolamento e esquadrinhamento social.

A disciplina explicitou o modo de funcionamento do poder, passando a ser exercê-lo como uma relação capilar e produtiva, investindo os corpos e os docilizando politicamente, em nome da promessa de defesa, saúde, educação e proteção social.

Essa capilaridade do poder incidiu sobre o corpo de maneira tão ponderosa a ponto de provocá-lo, ou melhor, justapô-lo, aos limites mais ínfimos da pontualidade, da proatividade e da domesticação, por meio daquilo que Foucault chamou de disciplina. Algo que mais tarde, com a chamada Revolução Industrial (ou técnica), conduziu e recodificou as relações de trabalho nas antigas fábricas, sendo ampliada para toda a so-ciedade, e tendo por base a ideia de uma vigilância generalizada.

No caso das pandemias, controlar os contágios é um objetivo polí-tico da vigilância disciplinar, com fins de proteger os corpos e torná-los produtivos. Um modo de vida asséptico nasce enquanto racionalidade médica e econômica no cuidado rigoroso do corpo. Na sociedade capita-lista, nada se torna mais alvo de investimentos do que o corpo saudável para o trabalho. Neste caso, um corpo doente e com as suas capacidades diminuídas e impedidas por vírus é um problema político e econômico em uma sociedade disciplinar e capitalista, pois o lucro e a produção são diminuídos drasticamente, dependendo da incidência do contágio.

O panoptismo se tornou, então, um modelo de organização social pautado no olhar, uma máquina de visibilidade, cujo funcionamento envolve todos e todas, num controle mútuo, onde cada qual opera, também, se au-tovigiando e se autocontrolando. O panóptico é um operador da sociedade disciplinar, a qual emergiu no século XVII e se tornou vigilante, segundo Foucault (1999a). Com efeito, para disciplinar os corpos, tornando-os dóceis e produtivos, há a combinação de técnicas de poder: a construção de quadros, a prescrição de manobras e a organização de táticas.

O enquadramento da Covid-19 é correlato à prescrição das manobras e da organização das estratégias em saúde, na economia e na política atual.

O jogo de recompensas e punições face à pandemia, em escala global, traz para o primeiro plano a concorrência entre os países no mercado mundial em vários indicadores chamados de desenvolvimento econômicos e social.

Neste plano, a geografia humana é o contágio com seus efeitos nefastos; é capturada e deslocada por metáforas militares, tais como: região, domínio, campo, enfrentamento, combate e guerra. Devemos lembrar que a própria noção de disciplina é fruto da ideia de sociedade como um acampamento militar, segundo Foucault (1999a).

Diante da desobediência, postulam-se sanções normalizadoras e pu-nições variadas. No caso do aumento da docilidade e produção, há recom-pensas e premiações diversas aplicadas aos corpos. A disciplina objetiva criar submissões políticas concomitantes à ampliação da produção, por meio dos mecanismos de vigilância hierárquica e dos controles finos dos corpos no espaço e no tempo. A atenção à saúde é calculada pela vigilância

e obediência às normas, administrada por tecnologias de gestão disciplinar do espaço e do tempo, pelos usos do exame e da sanção normalizadora.

No caso do panoptismo focado na seguridade social da atualidade, é possível problematizar como na gestão da pandemia do novo coronavírus são propostas várias punições panópticas por meio de multas, prisões, advertências, isolamentos obrigatórios e mecanismos de controle da cir-culação os mais variados no campo da defesa social e de uma determinada produção de saúde.

Os quadros são esquadrinhamentos, exames e avaliações que permitam classificar e nomear os acontecimentos, com fins a organizar as forças dos corpos de modo que sejam manobradas com utilidade política e econômica.

Quanto às manobras, são visadas as técnicas de regulação do tempo e das atividades regradas, em um cronograma bem administrado, rigoroso e de-talhado. Vale salientar que a organização das táticas implica em posicionar cada indivíduo no seu lugar; estabelecer adaptações dos corpos aos objetos e às instituições e, no caso da pandemia de Covid-19, há um governo das condutas meticuloso de cunho disciplinar no que tange a regulação dos corpos no espaço, em uma administração policial das políticas da saúde, da assistência, trabalhistas e da educação materializadas para organizar o detalhe das relações, das atividades, do controle no tempo e no espaço de indivíduos alcançados por estas tecnologias.

Para tanto, em nome da saúde, passa-se a justificar a perda da privacidade, a aceitação do monitoramento e dos registros de cada ato, minuciosamente. Com efeito, para enfrentar a expansão da Covid-19 e para cuidar das pessoas que já foram contagiadas pelo novo coronavírus, técnicas disciplinares e panópticas foram usadas em detalhes, transpostas a um aparato político focado no modelo das prisões para as adjacências sociais, ou seja, em práticas parajudiciárias de garantia dos direitos, tal como o direito à saúde e à vida, por exemplo.

Além das tecnologias panópticas disciplinares, trabalha-se neste texto com o governo da vida por meio da biopolítica enquanto ferramenta de uma analítica dos modos de objetivar e gerir a pandemia no plano da regulação das populações e de seus segmentos (?). A biopolítica emerge na segunda metade do século XIX e trata da entrada da vida na história

pela emergência da biologia como ciência, isto é, quando o corpo se torna espécie, e, a vida, objeto dos cálculos políticos. A biopolítica ocasiona o

“fazer viver” e o “deixar morrer”, modus operandi da e na governamentali-dade moderna (Foucault, 1988; 2008a; 2008b).

Emerge uma nova investida: não apenas o corpo, mas a população;

isto é, não apenas o homem-indivíduo, mas a espécie “como todo” é alvo central das investidas de governo; não só a vida pública, mas a vida íntima e privada entram nos cálculos e engrenagens ininterruptas do funcionamento do poder e da constituição de subjetividade. Michel Foucault passará a utilizar o léxico “biopolítica” (biopolitique) para definir os diversos acon-tecimentos ao nível da gestão e da administração da vida; na medida em que a mesma se caracteriza como um agente modificador do cerne das decisões políticas, à revelia de ser somente um agente complementador ou “alargador” das últimas. Não só o bio, mas o tanato, o necro, o psico político, dependendo da variância ao qual se dá a análise do assunto. E, de fato, várias estão sendo as respostas da comunidade acadêmica em relação à crise da Covid-19.

No caso do novo coronavírus, à primeira vista, dois mecanismos passaram a ser usados, sendo de cunho disciplinar quanto às normas de comporta-mento. Trata-se da quarentena e do isolamento: ambos surgiram na Idade Média, aplicados aos navios vindos do Oriente. Depois, passam a ser uma estratégia de proteção social face a supostos riscos e perigos, na modernidade.

Enquanto a quarentena incide sobre os indivíduos considerados saudáveis, o isolamento é voltado aos que estão infectados. Ambos mecanismos são práticas sociais disciplinares de bloqueio dos corpos em nome da saúde e da segurança social, isto é, são ações de defesa social, na sociedade discipli-nar e de vigilância. Neles, há uma positividade das relações de poder, pois objetivam produzir saúde e impedir a transmissão de um vírus ou de outro agente infeccioso.

Todavia, vale mencionar que o panoptismo opera não apenas por bloqueios dos corpos por quarentenas, isolamentos e internações. Os mecanismos disciplinares podem ser de outra ordem também, a de meca-nismos abertos de controle dos corpos de vigilância panóptica. Neste caso,

podemos pensar as táticas chamadas de abertura gradual do comércio, das escolas, de universidades, de acessos às praças e locais de esporte, de retorno ao trabalho presencial e aos espaços culturais etc. O uso de máscaras e os controles de distanciamento social seriam o ou um dos modos de governar as condutas por vigilâncias abertas, em cada um de nós vigia os pares e é vigiado por eles e pela comunidade.

Biopolítica, necropolítica e as vidas consideradas

No documento Interrogações às políticas públicas (páginas 126-130)

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