• Nenhum resultado encontrado

articulações entre as políticas de saúde e assistência social no campo do HIV

No documento Interrogações às políticas públicas (páginas 196-200)

Gabriel Luis Pereira Nolasco Gabriela Lopes de Aquino Anita Guazzelli Bernardes

Introdução

O

direito à Saúde Pública, no Brasil, tem se constituído como campo de possibilidades a partir da produção da vida, dos modos de viver e do trabalho como valores centrais para o cuidado em saúde. São valores manifestados pela Organização Mundial da Saúde (OMS, 1946) e pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (Organizações das Nações Unidas [ONU], 1948), mais tarde incorporados na Constituição Federal Brasileira (Constituição da República Federativa do Brasil de 1988).

A proposta deste capítulo é discutir a articulação entre as políticas de saúde do Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) e as de assistência social. Busca-se pensar tais políticas sob uma perspectiva intersetorial para criar arranjos não apenas de acesso à medicação ou tratamento, mas também de modos de vida além do HIV. Entende-se que há processos de colonialidade implicados em determinados grupos sociais, produzindo condições de exclusão e de invisibilidade, bem como iniquidades.

Pensar a política a partir da controvérsia permite considerar que, em uma lógica da governamentalidade, o foco está em elementos para controle de certas regularidades que produzem outras possibilidades de agenciamento, mas não se modificam, necessariamente, as condições que as mantêm. O conceito de controvérsia pode ser pensado a partir do que Angela Davis (1981/2016) aponta sobre as diferenças do controle de natalidade das mulheres brancas e das mulheres negras. Para a autora, o

controle de natalidade permitiria certa liberdade sobre o próprio corpo para as mulheres brancas e negras, no entanto, no caso das mulheres negras, havia um controle dos corpos em termos de eugenia. Ou seja, trata-se de pensar nessas diferenças a partir de uma leitura interseccional das relações sociais que constituem os modos de subjetivação. Nesse sentido, dentro da lógica da controvérsia, é necessário considerar as intersecções de raça, gênero e classe que, de forma heterogênea para cada grupo social, produzem normas e regularidades de gestão das políticas sociais.

Pensar as políticas de saúde e de assistência social com a interseccio-nalidade implica considerar as controvérsias como efeitos da colonialidade;

esta, enquanto racionalidade, apoia as estratégias de governamentalidade, uma vez que direciona os modos de demarcação de corpos e diferenças no jogo de gestão da vida e da morte presente nas políticas públicas. Os processos de colonialidade produzem determinações sociais que definem os espaços que certos grupos sociais podem ou não acessar, colocando-os em posições de maior ou menor vulnerabilidade. Quando se pensa na população que acessa as políticas públicas de saúde e de assistência social, é importante considerar o jogo de biopoder, tanto no sentido de uma biopolítica quanto no de uma necropolítica. As lógicas da colonialidade criam arranjos controversos para a gestão das vidas: há uma política de morte, uma política que torna vidas matáveis em um estado de exceção permanente (Agamben, 2002). Esse estado de exceção deve, então, ser compreendido a partir da interseccionalidade.

As práticas de desumanização e marginalização presentes na colo-nialidade recaem diretamente sobre os corpos de grupos étnicos/raciais e dissidentes de gênero e/ou sexualidade não hegemônica, no que diz respeito à garantia do direito à saúde e assistência, bem como ao acesso ao cuidado, ou seja, a certo tipo de gestão da vida. Essas marcas identitárias produzem a exclusão do acesso ao cuidado em saúde de certos grupos, historicamente vulnerabilizados, constituindo diferentes situações de iniquidades sociais por meio de políticas de morte.

Busca-se pensar a objetivação/subjetivação dessas políticas sociais sob uma perspectiva intersetorial que produz “efeitos na relação entre saúde,

cidadania e estado de direito” (Medeiros et al., 2005, p. 263), para criar arranjos, não apenas no acesso ao Tratamento como Prevenção (TcP) (Monteiro & Brigueiro, 2019), mas também nos modos de subjetivação indo além da sorologia positiva para o HIV, na perspectiva da promoção da dignidade para viver. Isso significa considerar o acesso às formas de cuidado como garantia do acesso às possibilidades de vida, visando a minimizar outras vulnerabilidades sociais em razão dos efeitos da colonialidade que faz incidir formas de governo sobre a vida e a morte.

Os efeitos dos processos de colonialidade que recaem sobre deter-minados grupos sociais e produzem condições de exclusão, invisibilidade e iniquidades no acesso à promoção de saúde e nas condições de vida que garantam os mínimos sociais – a seguridade social – evidenciam-se também no acesso às políticas sociais, na medida em que as pessoas que vivem com HIV/AIDS (PVHA) têm na saúde sua porta de entrada, po-rém, constantemente são invisibilizadas no âmbito do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). As formas como são classificadas as experiências dos grupos sociais subalternizados na cena do HIV/AIDS, como “gays e outros homens que fazem sexo com homens; pessoas trans e travestis;

pessoas que usam álcool e outras drogas; pessoas privadas de liberdade e trabalhadoras(es) sexuais” (Ministério da Saúde, 2017, p. 28), têm intersecção com outros marcadores sociais, tais como idade, território, raça/etnia, implicando diretamente na marginalização do acesso à saúde como um direito, produzindo impactos no agenciamento de práticas de cuidado e gerenciamento de risco para o HIV/AIDS e outras Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs).

Essas considerações apoiam-se em cenas cotidianas e nos relatos de travestis e transexuais que, ao acessarem os serviços de saúde, são rapidamente “convidadas” a realizarem exames para a testagem do HIV/

AIDS e outras ISTs, mesmo que esta não seja a queixa inicial. Essas práticas marcam experiências de uma corporalidade não passível de negociação com a norma; seus corpos são atravessados por marcas de subalternização, reduzindo o acesso às políticas de saúde exclusivamente ao espectro do HIV/AIDS e outras ISTs. As pessoas trans e travestis, ao acessarem os

serviços de saúde, têm seus corpos criminalizados, circunscritos por suas práticas sexuais, o que reduz suas existências à experiência da infecção por HIV/ISTs, sem a possibilidade de negociação de acesso a outras deman-das de saúde e outras políticas públicas. Desse modo, não se reconhece a intersetorialidade dessas políticas como parte da multiplicidade das necessidades dos sujeitos.

Essas políticas estão assentadas em uma lógica territorial para res-ponder às necessidades de saúde, moradia, alimentação, violência, entre outras organizações de vida e possibilidades que acontecem no território e, consequentemente, em outras dimensões da vida da população. Porém, o modo como tais políticas se organizam resulta em um deslocamento das demandas intersetoriais, produzindo desafios ao acesso universal e integral para as remissões das iniquidades sociais.

A proposta deste texto volta-se para a compreensão dos modos como são engendradas certas estratégias de governamentalidade, na articulação com a colonialidade. Ibiapina e Bernardes (2019, pp. 324-325) sustentam que Foucault “empreende uma análise genealógica das práticas de governo que permitem certo modo de pensar a regulação da multiplicidade como um tipo específico de poder”, elegendo-se certos dispositivos de biopoder sobre a vida e a morte de determinados grupos sociais (Foucault, 2008).

A análise teórico-metodológica sustenta-se nos estudos de Michel Foucault, especialmente no que diz respeito à operacionalização do conceito de biopoder. Entretanto, é importante considerar que pensar a partir da colonialidade torna o conceito de biopoder mais amplo, na medida em que não se trata apenas de exercícios biopolíticos, mas também de políticas de morte que se evidenciam nas experiências das travestis e transexuais que são constantemente interpeladas pela sombra do HIV/AIDS.

Em um primeiro momento, são discutidos alguns elementos neces-sários de articulação das políticas sociais em termos de intersetorialidade e interseccionalidade. A partir disso, situamos os arranjos frente a essa organização das políticas no que se refere aos modos como a colonialida-de recai sobre as formas colonialida-de acesso das PVHA. Finaliza-se apontando os desafios para as políticas.

No documento Interrogações às políticas públicas (páginas 196-200)

Outline

Documentos relacionados