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Ser pesquisadora monstruosa 3: Entre gingas, mandigas e encantarias

No documento Interrogações às políticas públicas (páginas 26-30)

Os meus dedos percorrem as teclas do meu computador, desenhando uma história gestada em muitos corpos. Enquanto escrevo, ouço ecoar nos quatros cantos da casa as vozes que me acompanham desde a

infân-cia. O som que esses corpos emanam se inscrevem em cada palavra aqui apresentada. É sobre a palavra falada que repousa nossos saberes. Cada palavra lançada no mundo é um elemento inédito, ela é carregada por ondas sonoras que percorrem caminhos diversos, trazem o hálito de um corpo, as ideias de um povo e conduzem o axé. Eu sempre fui adepta da oralidade e, assim, incorporo os saberes a mim repassados, produzindo a escrita enquanto possibilidade.

Mainha conta que demorei a falar e que isso a deixava muito aperre-ada. E ela, como boa sabedora das mandigas e professora em matéria de artimanhas, tratou logo de apressar esse processo, não dava para esperar.

Para me lançar no espaço da fala, mainha me deu água das trovoadas de janeiro e colocou um pinto para piar em minha boca, eu mordi logo a sua cabeça e o bichinho desandou a piar. Ela tanto atentou que uma tagarela ganhou. E no espaço acadêmico me encontro a tagarelar sobre a vida e as estórias contadas nas gingas.

As palavras escritas que encontrei em diversos livros pareciam esvaziadas de sentidos e esse sempre foi meu grande medo, escrever e aprisionar as palavras, deixando-as desnudas de sua magia. Quando comecei a escrivinhar o texto “Quando ela escreve”, pensei sobre o quão grandiosa é a produção de saber que transborda do corpo de mainha e deságua em mim. Saberes não registrados, não catalogados, jamais descritos, os conhecimentos não aprisionados às normas da ciência. Costa e Carvalho (2020, p. 28) dizem que a “produção de conhecimento passou por uma assepsia – pela elimi-nação da vida, dos sinais da vida, dos vestígios do que possa ser vida”. Por isso, a minha escrita é pura e simplesmente um abrir de bocas. As palavras que escrevo é “como sopro ritmado da minha boca é parte de meu corpo, é carne” (Rufino, 2019a, p. 39), que marca no papel o que me foi dito, encarnando vozes ancestrais e buscando moradas em outros corpos.

É através da dimensão da ancestralidade que encontro minha mons-truosidade. Em um corpo que é múltiplo, constituído por continuidades.

A ancestralidade é presença e ramificação de saberes, é conexão atempo-ral que permite a preservação de histórias, conhecimentos e formas de vida (Rufino, 2019a). O meu corpo é assentamento e encarne de outras

sabedorias. Jeffrey Cohen (2000, p. 28) aponta que a ameaça do corpo do monstro está em sua propensão a mudanças, eu compreendo o corpo como princípio de Exu, que “quando se parte, é porque de seus pedaços emergirá um novo ser, tão completo e integral como aquele que havia antes” (Rufino, 2019b, pp. 68-69). Cada estilhaço desse corpo produz novas possibilidades, é um corpo encantado que desobedece e desafia as definições fixas de vida e morte.

A morte, no fim das contas, não é antagônica à vida. Simas e Rufino (2020) defendem que “o contrário da morte é o desencanto”, me constituo a partir de minhas ancestrais e enquanto pertencente a este corpo encanta-do, integrado à natureza, mistura de matérias tangíveis e intangíveis, serei imortal. Minha imortalidade se faz possível pela incorporação ancestral que acende memórias no combate ao esquecimento enquanto produto colonial. Invoco Rufino (2019a, p. 19) para defender que “A descoloni-zação não pode se limitar a se banhar na beirada”, é preciso desobedecer a ordem, ser monstruosa e mergulhar nas profundezas. E eu, que não possuo a habilidade da natação, pela via da transgressão mergulho, me afundo, mas não morro na beirada.

Pela transgressão, me torno junto à mainha e nossas ancestrais, o que Simas e Rufino (2020) denominam como “supraviventes”, possuidoras da capacidade de ludibriar os mecanismos coloniais de subordinação e exclusão, produzindo a vida como espaço de (re)conexões. Compreendo e defendo que “a condição do Ser é primordial à manifestação do Saber”

(Rufino, 2019a, p. 9). Afinal, os conhecimentos tornam-se possíveis através da incorporação. Pela via da transmissão mainha encarna conhecimentos ao mesmo tempo que ensina. O chão que eu piso, as paredes que me protegem, a água que eu bebo, a comida posta à mesa são rastros deixados por mainha como mestra de “ensinança” (Haddock-Lobo, 2020, p. 38).

Saberes que foram adquiridos pela vivência, não pelas especulações, são ensinamentos de “transmissão direta” (Costa & Carvalho, 2020, p. 52), de quem tem a vida como escola.

O projeto colonial estruturou-se sobre os escombros de corpos negros e indígenas, que foram dizimados, estuprados, violentados, desencantados

(Rufino, 2019b). O colonialismo nos negou a condição de ser e saber, subestimando nossa capacidade de fazer estripulias. Mas, esse corpo-alvo é também assentamento de muitas sabedorias. Meu corpo encantado é ato de desobediência, na pura e singela afirmação da vida (Simas & Rufino, 2020). Viver e rememorar conhecimentos ancestrais tem sido uma pequena pedra no sapato do projeto político colonial, pequena na miudeza e grande no estrago. Aquela pedrinha que tu tiras o sapato, vira, mexe, bate, volta a calçar e ela continua lá. Ainda que tentes se desfazer, ela volta a incomodar.

É que aquela pequena pedra, pedra miudinha, nunca é encontrada sozinha.

Eu sou a pedra no teu sapato e prometo continuar.

Assim, apresento minha monstruosidade como um corpo que escapa. Um corpo que se parte, fragmenta, estilhaça, que é ginga, mandiga, encantaria, que dança, dribla, corta e fita (Cohen, 2000; Rufino, 2019b). Meu corpo é arquivo memorialístico, constituído por pedaços lançados no universo, extensão da natureza, é ponto que fixa atemporalidade. Meu corpo é matéria ancestral e espiritualidade, é vida. É um corpo que possui “Ginga demais, para aqueles obcecados pela ‘segurança’ dos caminhos retos, é sinal de má conduta” (Rufino, 2019a, p. 149). Aos que procuram por certeza, segurança e verdade absoluta, encontram em meu corpo-palavra-escritura as rasuras inacabadas de algo ou alguém em constante transformação. Nas incertezas que me formam, moram as invenções. Pelos desvios que percorro reside minha transgressão.

Nas fissuras deixadas pelos saberes hegemônicos, nos vazios não pre-enchidos, nos corpos não aprisionados nascem os “sujeitos abusados e desobedientes” (Rufino, 2019b, p. 74). Assim, me apresento como pes-quisadora monstruosa pelas estripulias e incorporação de conhecimentos e afetos ancestrais ao espaço acadêmico. No preenchimento das lacunas com os saberes gestados nas margens, na invocação de uma “ciência encantada”

(Rufino, 2019a, p. 29). No rasgar das normas acadêmicas, trabalhando na produção de uma ciência dinâmica na arte das gingas, mandigas e encanta-rias. Que sejamos fontes de transmissão, pontos de acesso e incorporação.

Que nossas escritas sejam fruto de um projeto coletivo, pela compreensão das potências presentes nas parcerias. Assim sendo, recorro a um provérbio

Yorubá que diz “dê seu fósforo, mas fume junto” para agradecer minhas companheiras nessa escrita e parceiras de longa jornada.

No documento Interrogações às políticas públicas (páginas 26-30)

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