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Distribuindo raios: Sobre uma formação superior construída coletivamente

No documento Interrogações às políticas públicas (páginas 66-69)

O ensino na vida das pessoas com deficiência é um desafio imenso em todas as fases da formação escolar. Discussões em torno de uma escola inclusiva não é pauta nova em nosso país, no entanto, apesar de avanços nessa área, este é um campo de tensão, alvo de políticas de retrocesso em nossas conquistas, principalmente nos últimos anos.

Como a trajetória da maior parte das pessoas com deficiência que conseguem seguir seus estudos, minha formação foi e ainda é construída a muitas mãos. E vocês podem pensar, mas qual formação não é constru-ída a muitas mãos? Todas, eu diria, mas nem todas as pessoas precisam se preocupar com as condições necessárias para tal percurso. Como pessoa com deficiência, cega, quero dividir com vocês um esforço para além dos estudos, um esforço para criar as condições necessárias para estudar. E digo isso porque, a cada etapa de minha jornada acadêmica, a máquina institucional ali atuante faz questão de informar que aquele não é um espaço pensado para nossas existências, e digo mais, após dez anos de presença em uma universidade pública, essa máquina afirma que esse não é um espaço para nós, e resiste com todas as suas forças afirmando por meio de práticas diárias que não se tornará. Minha formação acadêmica é construída pelo meu coletivo.

Ao ingressar na graduação, ao mesmo tempo que me deparava com a dureza de falta de acesso, com as violências do capacitismo e o despre-zo pela minha presença, deparava-me também com inúmeras pessoas que se dispuseram a viver tudo isso comigo, celebrando as frestas que a deficiência abriria numa certa hegemonia corponormativa ali presente.

Alunos, parceiros de turma, veteranos e calouros como eu, professores

e professoras, se abriram e se envolveram nesse processo de construir uma universidade mais inclusiva. O principal desafio daquele momento era acessibilizar o conteúdo de um curso inteiro. Textos, artigos, livros, quase nada nascia de forma acessível naquela época, e cabia aos meus parceiros de jornada transporem uma parte de um mundo hostil em outro, mais acessível.

Desse movimento intenso surgiu um Projeto de Ensino, que na época chamamos de InformaPsi, coordenado pelas docentes Marcia Moraes, Maudeth Py Braga e, por último, por Silvana Mendes e com-posto também por alunos. Com o apoio do Departamento de Ensino, o projeto visava a digitalizar textos acadêmicos, tornando-os acessíveis aos programas de voz e, consequentemente, construir uma universidade que pudesse ser acessada também por outras pessoas cegas. Era um trabalho demorado, demandava equipamentos específicos, softwares específicos, um lugar adequado para a realização das digitalizações, demandava ver-ba, investimento institucional. Pouco a pouco e às custas de muita luta, tudo o que era preciso foi chegando, inclusive bolsas para os alunos que realizavam as digitalizações.

O InformaPsi, no seu tempo de existência, entre 2008 e 2012, pas-sou a entender que, para além das atividades de acesso que realizava, era preciso desindividualizar esse projeto. Era um trabalho que me atendia nas minhas demandas singulares, mas que não podia se restringir a um projeto individual. Foi nesse movimento que o grupo passou a pautar o projeto em eventos, reuniões de colegiado, semanas acadêmicas, com o objetivo de institucionalizar uma prática de acessibilidade, com o objetivo de que, com a minha formação, que pouco a pouco foi se aproximando da conclusão, o projeto não deixasse de existir. Para garantir a memória, uma ancestralidade, trabalhamos por um tempo com o intuito de criar uma biblioteca virtual, que se pretendia aberta a estudantes cegos do país inteiro.

Ao longo dos quase cinco anos de existência do InformaPSI, conquis-tamos muitas coisas. Graças a esse projeto, eu me tornei uma psicóloga muito bem formada. Na sequência da graduação, voltei para o mestrado

na mesma universidade e enfrentei problemas muito parecidos com o que havia vivido na graduação. Nas aulas e nas pesquisas bibliográficas para a escrita da minha dissertação, a falta de acesso aos textos e livros foi também marcante, e mais uma vez o meu coletivo, que no mestrado não se configurou em um grupo institucionalizado, me ajudou a me formar.

Tornei-me mestre em psicologia (Alves, 2020).

Depois de um ano, volto para a mesma instituição para então fazer o Doutorado. Aqui tem uma virada: pela primeira vez na minha trajetória acadêmica, eu era uma aluna cotista. Pela primeira vez nos meus sete anos de formação acadêmica, a discussão em torno da minha presença, da presença de uma pessoa com deficiência no Programa de Pós-graduação acontecia antes de eu mesma chegar. Aqui posso afirmar que, além de garantir a entrada de pessoas com deficiência na pós-graduação, as cotas também operam, dentro do Programa de Pós-graduação, uma coletivização da inclusão e da acessibilidade. Não era mais sobre mim; era, enfim, sobre a falta de acesso nas universidades, naquela universidade.

Em poucos dias após o início do primeiro semestre do doutorado, questões que acompanham meu ensino superior voltaram. E os textos?

E as provas? E os documentos acessíveis? E o que o programa de voz lê?

E o que faríamos com os textos e livros não acessíveis? O cansaço já me abatia, eu teria mais uma jornada, lidando com as mesmas questões, eu pensava. Mas não, as questões talvez não mudem, mas mudaram as formas de respondê-las. Aprendi ao longo dessa caminhada a devolver as questões que me são feitas para quem precisa respondê-las comigo.

Nesse momento, e graças às cotas, eu não era mais a única pessoa com deficiência da pós-graduação. As cotas me garantiram parceria de outras pessoas com deficiência. Foi assim que Ildete e eu nos conhecemos e nos aproximamos. Tínhamos questões comuns a responder juntas… o cansaço diminuía quando eu estava com ela. Sozinha não daria. A luta por um intérprete me garantiu também a presença, pela primeira vez, de uma ledora. Uma pessoa responsável pela acessibilização dos textos e livros que eu teria ou queria trazer para a construção da minha tese.

A ledora foi uma conquista dessa fase de minha formação, fase na qual

me encontro hoje. Cotas, intérpretes, ledores, parceiros com e sem deficiência, uma formação coletiva, um coletivo para uma formação:

é disso que se trata.

No documento Interrogações às políticas públicas (páginas 66-69)

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