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Capitulo II – Educação Tradicional e Contemporânea

3. O Ocidente

3.2. A Dupla Face do Ocidente

Se, antigamente, o Ocidente era visto como cristão, moral, desenvolvido, símbolo de instrução, ciência e tecnologia, progresso, ou defensor de grandes discursos universalistas, atualmente é considerado ateu e um explorador “perigoso para os outros povos” (Droit, 2008, p. 20), cometendo crimes de uma barbaridade difícil de imaginar. É esta dupla face do Ocidente que tem contribuído para ele se tornar palco de críticas e, por vezes, também vítima de ataques violentos.

Têm sido os próprios instrumentos intelectuais desenvolvidos pelo Ocidente que frequentemente se têm virado contra o seu próprio domínio (Droit, 2008). Voltamos de novo à história e procuramos trazer algumas memórias passadas, que nos ajudam a compreender estas afirmações e que dificilmente podem ser esquecidas. De acordo com Droit (2008), nunca houve nenhuma civilização na história que tenha provocado tantos mortos como o Ocidente. Vários países como Espanha,

Portugal, Holanda, França, Bélgica e Inglaterra, durante o período colonial, atuaram de forma insensível e desumana (Boff, 1997) e “de consciência tranquila” (Droit, 2008, p. 44). Estes países foram os responsáveis pelas guerras em África e pelo desaparecimento de índios da América e de aborígenes da Austrália, pelo desaparecimento de grandes civilizações, como dos Incas e dos Astecas, os quais foram vítimas de massacres em massa (Macedo, 2006). “As crónicas da época arrepiam-nos: aldeias em chamas, famílias separadas, filhos mortos em frente aos pais, crianças dadas a comer aos cães em frente das mães” (Droit, 2008, p.44). Para além da ilusão da superioridade da sua raça branca, os ocidentais justificavam os seus atos bárbaros pela forma como definiam os índios, que os consideravam como selvagens e sem alma, “animais sem dignidade, coisas, mas nunca homens” (Droit, 2008, p. 45). Do mesmo modo eram tratados também os escravos que “não eram considerados como inteiramente humanos”, mas “como se fossem gado ou mercadoria” (Droit, 2008, p. 45). Ao longo da história, a escravatura foi considerada como natural ou até mesmo de ordem divina (Kinner et al, 2000).

O Ocidente utilizou o que fosse preciso para conseguir este domínio, incluindo os discursos morais e a defesa da universalidade e do direito. Segundo Jullien (2014), o universalismo defendido pelo Ocidente diz respeito apenas ao universalismo do seu próprio culturalismo. Quando os ocidentais se apresentaram como defensores da universalidade dos direitos humanos, para Jullien “it was really only a matter of a new (and ultimate?) avatar of its theology of incarnation, (…) it is precisely the opposite of what one might expect” (Jullien, 2014, p.89). Ao contrário dos valores que promove, o Ocidente utiliza os valores fingindo e tentando enganar o mundo, “quando o seu objetivo é explorar e dominar o planeta inteiro” (Droit, 2008, p. 54). Neste mesmo sentido, Santos e Douzinas referem que o discurso dos direitos humanos, utilizado pelo Ocidente, é realizado por meio da duplicidade de valores e muitas vezes serve para encobrir atrocidades. De acordo com estes autores, os países ocidentais têm recorrido à “hipocrisia ou ao cinismo das grandes potências” (em Barreto, Wasem, 2012, p. 7191), exigindo determinadas condutas que respeitam os direitos humanos que servem apenas como forma de encobrir as suas práticas, que contrariaram estes mesmos direitos. Outros autores explicam que “as acusações às violações de direitos humanos muitas vezes são propagadas em razão dos interesses económicos e políticos envolvidos, que não estão,

necessariamente, relacionados com preocupações reais com os direitos humanos” (Barreto, Wasem, 2012, p. 7195-96).

De acordo com Droit, o Ocidente, foi a civilização que:

(…) mais conjugou caridade e massacres, progresso científico e domínio, afirmação universal dos direitos do homem e sujeição dos povos inteiros. (…) Foi com valores morais na cabeça e discursos universalistas na boca que os ocidentais mataram, massacraram, esmagaram e colonizaram e se mataram entre si (Droit, 2008, p. 52).

Através da vontade para o domínio, que para o conseguir teve de recorrer à violência e aos confrontos, o Ocidente suprimiu diferenças culturais, impondo a cultura ocidental às colónias e contribuindo para o desaparecimento de outras singularidades culturais (Macedo, 2006; Droit, 2008).

Vários países do médio-Oriente têm relembrado que o mundo ocidental tem um histórico que não defende, mas viola os direitos humanos (Barreto, Wasem, 2012). Para eles, o Ocidente preocupa-se com o lucro, procura a transformação das relações humanas através das relações comerciais, e contribui para a desumanização do trabalho. O Ocidente é ainda visto como “medíocre, desumano, humilhante, ímpio, obsceno, imoral, idólatra e é tão asfixiante e totalitário como o dos nazis” (Droit, 2008, p. 73). Não é de esquecer, que o nazismo e o comunismo são considerados “filhos monstruosos” (Droit, 2008, p.50) do Ocidente, que nasceram nos países mais civilizados e mais desenvolvidos, com o objetivo de controlar a vida das pessoas e da sociedade.

Ann Mayer traz alguns exemplos que mostram as inúmeras violações dos direitos humanos, como as práticas de tortura, escravidão, genocídio, perseguição religiosa, racismo, sexismo, assim como o registo de desrespeito dos direitos de pessoas não-ocidentais durante o processo de colonialismo, no século XIX, que continuam nos dias atuais (Barreto, Wasem, 2012, p. 7191). De acordo com Mayer, os países ocidentais utilizaram a famosa tríade das potências colonialistas para levar a civilização, a liberdade e o cristianismo aos povos, conhecidos como “bárbaros”, através dos quais conseguiram desmentir e encobrir várias crueldades. Durante o século XIX, Inglaterra, França, Espanha, Portugal, Alemanha, Itália e Holanda, utilizando, por um lado, a superioridade do seu armamento e os avanços

tecnológicos, e por outro o poder da razão, tornaram-se os “donos” do planeta, que o dividiram e partilharam entre si (Droit, 2008).

Por detrás desta vontade de domínio, segundo Droit, está a outra característica do Ocidente, que é o gosto pela novidade, através do qual ele procura conhecer e estudar os outros povos. Esta novidade, não deve ser entendida como sinónimo de abertura ou de solidariedade em relação às outras culturas, mas, conforme Droit refere, é uma “espécie de impaciência permanente que exige mudança a todo o custo, mesmo que não seja útil, nem positiva” (Droit, 2008, p.70-72).

Uma outra característica do Ocidente diz respeito à dúvida que, por vezes, contribuiu para a sua própria difamação, autoacusando-se e duvidando-se dos seus próprios valores, nas alturas que se sente ameaçado pelos adversários que parecem ter como objetivo a sua destruição (Droit, 2008, p. 74).

A tendência da cultura ocidental tem sido uma supervalorização dos valores ocidentais, como se fossem os melhores valores, considerando os valores dos outros países como valores inferiores. Esta tendência, de acordo com Barreto e Wasem, parece estar relacionada com o facto de “(…) na modernidade ocidental, a ideia do cosmopolitismo encontra-se relacionada com a ideia de universalismo desenraizado, individualismo e de negação de fronteiras territoriais ou culturais” (2012, p. 7191).

De acordo com Pye (1985) e Droit (2008), o Ocidente é caraterizado por uma ânsia para a autonomia e identidade individual, que valoriza as liberdades individuais, enquanto que o Oriente dá mais importância ao sentido de pertença, procurando dissolver o individualismo numa escala maior, dando relevância à dimensão espiritual. A soberania dos indivíduos e a universalidade dos direitos do homem no Ocidente, fundamentalmente, associados ao indivíduo e não à comunidade, foram afirmadas pela primeira vez na Revolução Francesa e na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789 (Droit, 2008). O individualismo constitui uma das características principais do Ocidente e é também aquela que levanta mais questões e tensões relativamente a outras culturas. No Ocidente, o direito é entendido na maior parte dos casos como um assunto privado, justificado pelo facto de o mundo ser constituído por indivíduos independentes, vivendo assim, cada um deles de forma independente (Droit, 2008).

Ao contrário da perspetiva ocidental, a China, em que o pensamento dominante é o confucionista, defende uma perspetiva de direitos cuja natureza não pode ser individual, pois o indivíduo apenas encontra o sentido da sua existência através da relação que estabelece na sociedade. Segundo o governo chinês, o Ocidente tem utilizado o assunto dos direitos humanos como uma ferramenta de hegemonia e de poder político (Weatherly, 1999). Na primeira metade do século XX, a China sofreu grandes influências do Ocidente, principalmente no que diz respeito às teorias do individualismo (Bamford, (nd)).

A Declaração Universal dos Direitos Humanos de dezembro de 1948, adotada pela Organização das Nações Unidas, foi também criticada por vários países, por considerarem que o seu fundamento transparece nitidamente o pensamento ocidental (Droit, 2008; Barreto, Wasem, 2012). De acordo com Bamford, o Ocidente tem procurado afirmar a universalidade dos seus próprios direitos para ganhar autoridade e solidificar o seu poder nas relações a nível internacional para, desta forma, poder criticar e invalidar outras visões que não se alinhem com a perspetiva ocidental.

Um outro fator relaciona-se com a forma como as sociedades constroem o poder que, por sua vez, está na origem da construção das relações entre as sociedades. De acordo com Pye “the way in which a society conceives power is linked directly to the rights discourse. Much of the human rights discourse is wrapped up in what we consider to be appropriate power relationship” (em Bamford, (nd), p.4).

Apesar de defenderem a universalização dos direitos humanos, são vários os exemplos que mostram a sua relativização pelos países do Ocidente. A rejeição da parte dos Estados Unidos da América da criação de um Tribunal Penal Internacional, integrado numa perspetiva universalista dos direitos humanos, é um exemplo disso. Os EUA procuraram “usufruir de um status jurídico privilegiado, onde os crimes de guerra por eles praticados seriam inimputáveis criminalmente” (Barreto, Wasem, 2012, p. 7193). Outro exemplo é o caso da Inglaterra que, em 1997, fez um negócio de armas com a Indonésia, que na altura era liderada pelo regime genocida do presidente Suharto, o qual ao longo do seu reinado causou a morte de meio milhão de timorenses do leste. Por outro lado, os EUA também colaboraram com a Indonésia através do treino das suas tropas (Barreto, Wasem, 2012).

Recentemente, um documentário realizado pela jornalista Ana Leal (2016), com o título “Love you mom”4 demonstra como na Inglaterra ainda existem leis que violam os direitos humanos. Sob o pretexto da proteção de menores, em Inglaterra, a cada 15 minutos é retirada uma criança às suas famílias, principalmente famílias de imigrantes, sem qualquer decisão judicial. Estas crianças, de seguida são levadas pelos Serviços Sociais à espera de serem adotadas por famílias de acolhimento, sob a justificação de os seus pais não serem capazes de tomar conta desses filhos. De acordo com a Ex-Procuradora da República, Dulce Rocha, que também dá o seu testemunho neste documentário, esta lei representa “uma intromissão na vida privada das pessoas”5. De acordo com o advogado Pedro Proença, “estas crianças estão completamente desprotegidas, à sua mercê, perante esta realidade assustadora, que é terem de viver, permanentemente, vigiados e na perspetiva da eminência de lhe serem retiradas as crianças pelos motivos mais extraordinários que pode acontecer” (min13:00)6.

Tendo em consideração os factos históricos da sociedade ocidental, alguns países desenvolvidos asiáticos começaram a considerar a doutrina dos direitos humanos como uma nova forma de imperialismo ocidental. A violação dos direitos humanos pelos países ocidentais, ao longo da história, isto é, a discrepância entre aquilo que se procura defender e a atitude prática, causou dificuldades por parte de alguns países do Oriente em aceitar uma perspetiva universalista dos valores definidos pelo Ocidente. Como consequência, alguns destes países começaram a defender uma perspetiva relativista de valores, conhecidos como “Valores Asiáticos” (Shanawez, 2010, p. 3), receando as intenções do Ocidente que representam uma forma de imperialismo cultural (Barreto, Wasem, 2012), as possíveis interferências nos sistemas político-institucionais e a perda da própria identidade cultural. De qualquer forma, a perspetiva relativista adotada por alguns países asiáticos considerou-se como injustificável, sendo que nalguns casos suprimia os direitos de grupos ou indivíduos podendo, assim, ameaçar a segurança humana (Shanawez, 2010). 4 Disponível em http://www.tvi24.iol.pt/videos/sociedade/reporter-tvi-love-you- mom/57f95c950cf2095c52cc9b86 e https://www.youtube.com/watch?v=j9kirSKHg8c 5 Idem 6 Idem

Jullien alerta o Ocidente para não ensinar:

(…) arrogantemente aos outros como viver; ao passo que sua vertente negativa, fazendo surgir um a priori da recusa diante do que sua falta faz subitamente aparecer de incondicionalmente inaceitável, isto é, independentemente das perspetivas próprias das diversas culturas, vale como um universalizante eficaz e que não está desgastado (Jullien, 2009, p.16).

O filósofo alemão Herder alerta os europeus para os cuidados a ter neste sentido, referindo que apenas arrogantes insensíveis podem partir do pressuposto que todas as pessoas do mundo precisam de adotar a cultura europeia para serem felizes (em Pohl, 1999). Annan também faz um apelo às sociedades que se consideram modernas, relembrando que a modernização não gera obrigatoriamente tolerância e, por isso, nenhuma sociedade tem o direito de impor a sua cultura ou regras, mesmo que considerem que são úteis para os outros (Annan, 2013). No mesmo sentido, King (1999) e Mall (2000) alertam os filósofos ocidentais para o facto de que a sabedoria não pertence a ninguém e a filosofia ocidental representa apenas uma filosofia que não é, necessariamente, a forma mais correta de ver a realidade. Pelo contrário, a dualidade e a noção do certo e errado, predominantes no Ocidente, são as causas principais que deram origem e sustentaram os comportamentos colonialistas e imperialistas. Neste sentido, King (1999) apela para a necessidade da autorreflexão da filosofia ocidental sobre o seu próprio contexto histórico, político e social aprendendo com as suas ruturas, heterogeneidades e descontinuidades.

Apesar de, por um lado, o pensamento ocidental basear-se, principalmente, “na partilha de um conjunto de valores que são indissociavelmente intelectuais, filosóficos, morais, jurídicos e espirituais” (Droit, 2008, p. 61), vários países levantam questões, discussões e polémicas se os valores defendidos pelo Ocidente devem ou não ser considerados como universais, uma vez que a partilha dos valores universais poderia significar, mais uma vez, uma repetição ou continuação da história, que procura uma transformação de mentalidades e/ ou a destruição dos valores próprios das outras culturas, e que em vez de contribuírem para a liberdade podem ser utilizados de novo como instrumentos de domínio (Droit, 2008).

A discussão sobre a natureza dos valores é uma questão relevante para a filosofia da educação, sendo que eles são reconhecidos como aqueles que dão sentido e dignidade à vida (Luckesi, 1994) e sem os quais, quer a filosofia, quer a educação, dificilmente, poderiam conseguir cumprir com a sua missão e os seus objetivos. A falta de consenso sobre os valores a abordar na educação é uma das questões principais que tem levantado dúvidas e tem transformado os ambientes educativos numa fonte de ansiedade para os educadores na sua tarefa de educar os alunos, para atingir, conforme Kant refere, o bem mais elevado, a sua perfeição. A discussão dos valores tem causado várias dificuldades e perigos provocando alguma insegurança, angústia e violência na educação que, conforme afirma Patrício (1993), tem levado a uma educação esvaziada de valores, devido ao facto de se considerar perigoso e doutrinário inculcar valores.

Nos próximos pontos vamos tentar compreender duas perspetivas principais dos valores, nomeadamente, a relativista e universalista, não ignorando a história do Ocidente e as lições que acabámos de tirar. Estas abordagens procuram oferecer elementos que ajudam à reflexão filosófica sobre os valores que devem ser adotados e promovidos através da educação, de forma a conseguir desenhar melhor o caminho e o rumo que queremos dar à educação.