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Religião e os Principais Desafios na sua Relação com a Ciência

Capitulo IV – Ciência e Tradições Espirituais

2. Religião e os Principais Desafios na sua Relação com a Ciência

Perguntaram a um chinês: "O que é a ciência?" Ele disse: A ciência é conhecer as pessoas". Perguntaram-lhe então: "E o que é a virtude?" E ele respondeu: "A virtude é amar as pessoas." (Tolstoi, 1999, p.25) Ao contrário da ciência onde as teorias tendem a dominar os modelos, na religião os modelos são mais influentes do que as teorias (Barbour, 1998). A religião é vista como um conjunto de atividades humanas e uma das estruturas institucionais mais importantes da sociedade é uma relação dos indivíduos que procuram um bem supremo, aquilo para além do qual nada mais existe, a plenitude, a realização plena (Espírito Santo, 1993).

Agostinho da Silva define a religião e o espírito como pilares da formação pública do ser humano, defendendo uma teoria ecuménica da religião, enquanto Durkheim entende a religião como a fonte de toda a cultura mais elevada através da qual “o grupo social periodicamente se reafirma” (2003, p.387). As religiões são manifestações do divino e formas diversas de vivência do espírito, sendo que cada uma das religiões as interpreta à sua maneira. Para Kant, a religião permite conhecermos todos os nossos deveres “como mandamentos divinos” (2001, p.175) e uma religião verdadeira e universal que se encontra na maior parte dos povos civilizados, segundo ele, “contém só leis, (…) princípios práticos de cuja necessidade nos podemos tornar conscientes e que (…) reconhecemos como revelados pela razão pura” (2001, p.192).

A tendência que temos verificado nas últimas décadas é de uma crescente laicização e, simultaneamente, procura de vias alternativas e individuais de espiritualidade levando ao descrédito dos dogmas e considerando desejável o ideal, utópico, da unificação das religiões. Para Kung (1991) e Panikkar (2007), a paz entre as religiões é uma condição necessária para haver paz entre as nações. Para Cusa (2002), todas as religiões devem ouvir e aprender umas com as outras, pois todas elas “não passam de conjecturas relativamente às quais a posição mais

prudente é a de uma “douta ignorância””. Por isso, elas não podem esquecer que todas precisam de ter “um saber permanentemente consciente dos seus limites, acautelando assim qualquer dogmatismo carregado da presunção da posse da verdade” (André em Cusa, 2002, p. 12). O homem religioso, de acordo com Krishnamurti, é aquele que não pertence a nenhuma religião, nação ou raça, mas é “inwardly completely alone, in a state of not-knowing, and for him the blessing of the sacred comes into being” (Krishnamurti, 1955, p. 55).

Dalai Lama, Papa Francisco e outros líderes religiosos têm considerado o diálogo inter-religioso como essencial e fator chave para haver paz e a justiça no mundo que, ao mesmo tempo, são as únicas formas para garantir o futuro humano. Apesar das diferenças, assim como Cusa, o Papa Francisco apela para a necessidade de uma coexistência religiosa. “Muitos pensam de forma diferente, sentem diferente, procuram Deus e encontram Deus de outra forma. Nesta multitude, neste leque de religiões há uma única certeza: todos somos filhos de Deus”.12

Dalai Lama vê a harmonia inter-religiosa como a chave para ultrapassar os conflitos e o maior obstáculo para o alcançar pode estar relacionado com a falta de reconhecimento do valor que se encontra em todas as tradições religiosas. A prática religiosa desempenha um papel muito importante na medida que se preocupa em ajudar as pessoas para se tornarem melhores seres humanos, procurando encorajá-los para uma responsabilidade universal em relação aos outros, demonstrando a necessidade de uma disciplina ética (Dalai Lama, 2001). De qualquer forma, quando os ensinamentos religiosos “não penetram no coração”, mas ficam apenas “ao nível intelectual” (Dalai Lama, 2001, p.163), eles têm poucos benefícios. Por isso, Dalai Lama chama à atenção para os cuidados a ter em relação ao uso que damos à religião:

Relacionamo-nos com a religião como se fosse uma posse ou uma marca que nos distingue dos outros. É errado. Quando pensamos assim, em vez de utilizarmos o néctar da religião para purificar os venenos dos nossos corações e espíritos, corremos o risco de usar esses elementos negativos para envenenar o néctar da religião (Dalai Lama, 2001, p. 164).

Segundo Grof, a religião representa uma das forças mais motivadoras que tem guiado a história e a cultura humana (2012, p.233) e para Borges, a religião é “um dos fatores mais constitutivos da experiência humana, mas também dos mais indutores de conflito” e, por isso, o grande desafio é que a religião possa contribuir para o estímulo do diálogo e para “o progresso espiritual e social” (Borges, 2007, p. 183).

É inegável o facto de que a religião representa um conjunto de atividades humanas e um complexo de formas sociais de grande importância e é, em parte, uma resposta a problemas que incluem incerteza e importância, e tais experiências revelam ao homem os poderes que estão atrás da “superfície calma da experiência comum” (O’Dea, 1969, p.40).

Tendo em consideração as diferenças que a ciência e a religião apresentam, se olharmos de uma forma geral para a história, durante séculos, a relação entre estes dois sistemas tem sido marcada por uma controvérsia e conflito constantes, e até atualmente se não parece ter encontrado soluções que procuram harmonizar a sua relação. Uma das principais causas deste conflito relaciona-se, por um lado, com o facto de a ciência ver na religião um obstáculo persistente ao seu desempenho, em relação ao progresso humano, como capaz de incentivar o fanatismo e a intolerância, ignorância, superstição e obscurantismo (O’Dea, 1969; Grandy 2012). E, por outro, de alguns líderes religiosos conterem declarações dogmaticamente fixas nalguns assuntos que pertencem ao domínio da ciência, como é o caso do exercício de uma influência educacional na tradição, através do desenvolvimento e promulgação de certos pensamentos.

No caso de matérias que não são essenciais para a prossecução dos objetivos religiosos, conforme referido por Einstein, é importante que esses conflitos sejam evitados da parte da religião (Einstein, 1949). No seguimento do raciocínio einsteiniano, Wilber (2010) realça que, quer a ciência, quer a religião, devem contribuir para que a integração entre ambas seja possível. Assim, por um lado, a ciência deve reconhecer que há outras possibilidades de empirismo, sem ser apenas o experimental, tendo em consideração o caso da lógica e da matemática, e por outro, a religião, deve permitir a verificação ou rejeição de certos fenómenos recorrendo à via experimental (Wilber, 2010).

A existência ou não de uma dimensão sagrada ou espiritual é uma outra causa importante de conflito entre a ciência e a religião, não havendo evidência da parte da ciência, que nega a sua existência (Grof, 2012). Para tornar possível e mais claro o entendimento da espiritualidade, Wilber propõe que “as religiões abram mão de seus conteúdos mitológicos e mitopoéticos que são de ordem dogmática, ou seja, quando afirmados como verdades não podem ser comprovadas com qualquer evidência” (2010, p.248).

Um outro fator que induz conflito diz respeito à mitologia13, considerada uma crença que, antigamente, tinha como objetivo ajudar as pessoas nas suas necessidades espirituais e a relacionarem-se com o meio ambiente, nas diferentes fases da vida. Para a ciência, a mitologia passou a ser um termo incorreto e sinónimo de falsidade (Weil & Ribeiro, 1990), apesar de, frequentemente, ela própria ter recorrido às experiências míticas para encontrar explicações sobre certos fenómenos espirituais, nomeadamente, no que diz respeito à conexão das pessoas com o universo (Feinstein, Krippner & Granger, em Crema, 1991). Segundo Crema, a ciência moderna pode ser considerada “uma mitologia incompleta, não holística – uma ciência que possui um poder explanatório impressivo mas que é mais eficaz destruindo antigas construções míticas do que estabelecendo novos conceitos que as substituem” (1991, p.16).

Segundo Weil (1990), um outro fator que tem dificultado a relação entre a ciência e a religião, diz respeito à linguagem, sendo que ela “constitui um obstáculo no caminho da realização da verdadeira natureza das coisas, em virtude do seu aspecto essencialmente dualista” (p. 76).

Worrall (2004) considera que a ciência e a religião estão num conflito constante devido à sua incompatibilidade e por isso não é possível uma pessoa ser, ao mesmo tempo, um crente religioso e ter uma mente científica. Worrall parece ter esquecido que as grandes realizações científicas na historia da humanidade devem-se a indivíduos com convicções religiosas, na medida que consideravam que o nosso universo “is something perfect and susceptible to the rational striving for knowledge. If this conviction had not been a strongly emotional one, they would hardly have been capable of that untiring devotion which alone enables man to

13 Mitologia é um termo frequentemente associado às descrições de religiões fundadas por sociedade antigas

attain his greatest achievements” (Einstein, 1949)14. Concordando com Einstein, Barr (2007) refere que grande parte dos cientistas no passado, como no presente, foram pessoas religiosas, e Grandy (2012) explica que as crenças dos vários cientistas como Newton, Einstein, Galileu, Copérnico e Steve, entre outros, afetaram as suas investigações. “They brought their religious ideas to their science (…) informing their science, and my observation was that very few if any … would call themselves an atheist” (Grandy, 2012).

Para além das diferenças aqui referidas, Barbour (1998) consegue identificar também algumas semelhanças entre a ciência e a religião. Segundo ele, ambas fazem afirmações cognitivas usando o método hipotético-dedutivo e uma estrutura histórica de contextualização, assim como organizam a observação e a experiência através de modelos vistos como analógicos, extensíveis e coerentes, expressados através de metáforas.

O filósofo David Grandy (2012), durante o seu discurso de 21 de Setembro de 2012, referiu Tomás de Aquino como um exemplo que procurou harmonizar os pensamentos religiosos com a ciência, relembrando os cientistas que a revelação divina não nega a ciência e, pelo contrário, procura completá-la, uma vez que a revelação é aquela que nos permite observar “the natural world in all its scientific splendor.”15

A famosa frase de Einstein "Science without religion is lame, religion without science is blind" (Einstein, 1949) procura demonstrar que apesar das naturezas diferentes da ciência e da religião, a sua relação é importante para o funcionamento de ambas. Einstein afirma que é possível construir uma relação harmónica entre a ciência e a religião e a maior dificuldade, que mais complica a construção desta relação, é o facto que “while most people readily agree on what is meant by "science" they are likely to differ on the meaning of "religion” (Einstein, 1949). Stanley Klein (2002) acredita que o aumento do diálogo entre a ciência e a religião pode ser um passo no caminho para um futuro melhor. Apesar de já haver diálogo entre alguns cientistas e teólogos, na opinião de Klein, este ainda não é suficientemente amplo, mencionando que para a ciência e a religião serem uma

14 http://www.sacred-texts.com/aor/einstein/einsci.htm 15 Idem

força na transformação da sociedade, o diálogo precisa de ser estendido aos principais cientistas e pessoas de fé.

Goswami apela para a necessidade de uma complementaridade entre a ciência e religião, devendo para isso no futuro, a ciência realizar “o trabalho preliminar em forma objetiva do que precisará ser feito para recuperar o encantamento, e que a religião Oriente a pessoa através do processo de fazê-lo." (Goswami, 1998, p.251). Um dos fatores que facilitaria a relação entre a ciência e a religião é a separação formal entre a ciência e a sociedade, como a separação da igreja e do Estado, argumentando que a ciência é apenas uma das ideologias que impulsiona a sociedade e uma das formas humanas do pensamento exteriorizado, que por isso deve ser tratada como tal (Bergson, 2006; Weinberg, 1994). Por outro lado, refletido também no pensamento de Locke, o Estado não deve interferir nas opções religiosas dos cidadãos, sendo que se tratam de dois domínios muitos distintos e que não são coincidentes, defendendo assim, de forma inequívoca, a separação entre a política e a religião, sendo que a religião é o domínio da salvação pela fé e o culto a Deus, e o Estado representa os interesses civis (Locke, 1782).

Para Wilber, o principal fator que poderá contribuir para facilitar a relação entre a ciência e a religião é a contemplação, referindo que “tanto a ciência, quanto a religião poderiam se submeter ao método empírico onde injunção, acesso aos dados e comprovação seriam plausíveis a ambas que comungariam do mesmo método de exploração” (2010, p. 248). Para Heisenberg, a relação harmónica entre a religião e a ciência não só é possível, como constitui um progresso estimulante: Na história do pensamento humano os desenvolvimentos mais fecundos ocorrem, de um modo geral, quando duas correntes totalmente distintas se encontram. Estas correntes podem radicar em zonas bastante diferentes da cultura humana (…); assim, se de facto se chegam a encontrar, (…) só se pode esperar que novos e estimulantes progressos se sigam. (Heisenberg em Capra, 1989, p.10)

Para Wilber, a ciência e a religião precisam uma da outra na medida que “A ciência oferece um arcabouço de conhecimento global preenchido regionalmente com significados pelas diversas religiões” (2010, p.11).

Assim como Einstein provou aos cientistas que energia e matéria são duas manifestações diferentes da mesma substância universal, da qual todos somos constituídos, a ciência e a religião não podem continuar a ser vistas como duas estruturas que se contrariam na sua missão, mas como complementos da mesma realidade. Elas próprias são duas manifestações complementares da mente humana, correspondendo às suas duas faculdades, intuitivas e racionais, e representam condições necessárias que nos ajudam a entender melhor o universo e a nossa própria existência. Esta complementaridade é visível na frase abaixo da Capra:

O físico moderno sente o mundo através de uma especialização externa da mente racional; o místico através de uma especialização da mente intuitiva. Os pontos de vista são completamente diferentes, e envolvem muito mais do que uma determinada visão do mundo. No entanto, eles são complementares (…). Nenhum está compreendido no outro, nem nenhum pode ser reduzido ao outro, são ambos necessários, complementares um do outro para um conhecimento pleno do mundo (Capra, 1989, p.251-252).

A tendência de compartimentação que experienciamos no mundo atual, segundo Watts (2013) não será longa e será substituída por uma nova visão do mundo que não é, nem religioso, nem científico, mas simplesmente a nossa forma de ver o mundo, “in which the reports of science and religion are as concordant as those of the eyes and the ears” (Watts, 2013, p.24). É esta visão que a educação, ao nosso ver, precisa integrar nos tempos de hoje, sendo que apenas uma complementaridade de perspetivas pode ajudar o ser humano a desenvolver todos os seus potenciais, físicos e não físicos, e levá-lo ao caminho de realização da sua plenitude.