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A ECONOMIA E A SOCIEDADE NO RIO GRANDE DO SUL

(...) muito se tem elogiado esta bebida; dizem que é diurética; combate dores de cabeça; descansa o viajante de suas fadigas; e, na realidade, é provável que seu sabor amargo a torne estomacal e, por isso, seja talvez necessária numa região onde se come enorme quantidade de carne. Aqueles que estão acostumados ao mate não podem privar-se dele sem incômodos.43

Nesse breve relato do viajante francês August de Saint-Hilaire, que percorreu a Provín- cia do Rio Grande do Sul por volta de 1822, é possível identificar que a alimentação dos rio- grandenses era à base de carne, coerente com uma região em que a economia sustentava-se prin- cipalmente na pecuária, desenvolvida em torno das charqueadas e das estâncias.

As charqueadas eram estabelecimentos que produziam o charque e seus derivados, como o couro e o sebo. Ela empregava grande quantidade de mão-de-obra cativa, que trabalhava em condições precárias, subjugada aos seus proprietários (charqueadores). Os escravos permaneciam seminus, em contato direto com o sangue e com a carne dos animais, e recobertos de sal, matéria- prima necessária à fabricação do charque44. Sua produção se destinava principalmente ao comér- cio interno pois ele era a alimentação básica dos escravos das demais Províncias.

Já as estâncias eram estabelecimentos responsáveis pela criação dos rebanhos bovinos, destinados tanto ao comércio interprovincial quanto às charqueadas. Essas estâncias eram com- postas por diferentes grupos sociais: os proprietários (estancieiros) e seus familiares, os peões e os escravos. Os peões, oriundos da população local, compunham a mão-de-obra assalariada45. Eles eram normalmente empregados nos cuidados com os rebanhos, atividade que requeria liber- dade e locomoção e, por conta disso, desaconselhável aos escravos fugidios. Mesmo assim, al- guns estancieiros designavam cativos para essa tarefa. Além disso, a mão-de-obra escrava era

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Temístocles Linhares. Op. Cit. p, 120-30 43

August de Saint- Hilaire. Viagem ao Rio G. do Sul. Brasília: Conselho Editorial, 2002. p. 136 44

Robert Avé-Lallemant. Viagem pela Província do Rio Grande do Sul. Belo Horizonte: Itatiaia. 1980 45

empregada nos afazeres domésticos, no cultivo e preparo da alimentação e no beneficiamento da erva-mate46.

Devido a esses dois empreendimentos pecuários, parte significativa dos estudiosos se dedicou a entender a economia da Província do Rio Grande do Sul apenas pelas perspectivas das charqueadas e das estâncias, uma vez que essas eram as principais atividades econômicas da regi- ão47. No entanto, somente o estudo delas não é o suficiente para explicar a complexa realidade social e econômica que caracterizava a sociedade gaúcha desse período. Para compor esse quadro de forma abrangente é preciso integrar e investigar a importância das atividades assessoras, que em conjunto representavam outras esferas de trocas e transações econômicas e, além disso, en- gendravam outras formas de organização da vida, não compreendidas se observadas sob a luz das referidas estâncias e charqueadas.

Em direção a esse fato, o trecho do relato de Saint-Hilaire, embora mencione a impor- tância da carne, retrata o hábito diário de tomar o chimarrão, bebida extraída das folhas e peque- nos galhos da planta da erva-mate. Esse hábito cultural era um elemento de integração dos extra- tos sociais. Por exemplo, os estancieiros, no final de um dia de trabalho, partilhavam a mesma cuia e bomba de chimarrão com os seus escravos e peões48. Esse fato é no mínimo curioso para uma sociedade escravista, pois demonstra as contradições imbricadas na mesma. Mesmo na con- dição de escravo, restringido e subjugado a um conjunto de comportamentos sociais permitidos, ainda assim o homem cativo compartilhava, com seu proprietário, os mesmos objetos de consu- mo do chimarrão. Isso, no entanto, não abrandava as formas de coerção praticadas pelos senhores contra os seus escravos.

O chimarrão era, geralmente, consumido durante todo dia. Nas estâncias, por exemplo, sempre havia uma chaleira de água fervente pronta a encher a cuia quando alguém desejasse to- mar mate ou quisesse servi-lo a qualquer transeunte desconhecido. Devido às grandes distân- cias49, era costume acolher todos os viajantes, que em alguns casos pernoitavam e em outros ape- nas descansavam e tomavam o mate50. Como outro exemplo de hábito cultural, durante uma visi- ta entre famílias, os rituais de recepção dos familiares eram os seguintes: os homens se agrupa-

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Moacyr Flores. Op. cit. p 100 47

Fernando H. C. Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 5º. ed. 2003. p, 203. 48

Ave-Lallemant. Op. Cit. p. 150 49

Nesse período, as distâncias entre as localizações não eram somente estimadas a partir de referenciais geográficos, elas também eram avaliadas em termos das vias e das formas de transportes existentes entre as localidades. Ver Eric Hobsbawm. A Era das Revoluções.

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Lilian da Rosa. O complexo ervateiro na Província do Rio Grande do Sul oitocentista visto sob as impressões de viajantes. Artigo apresentado em congresso. 5º Congresso de História Econômica Gaúcha. 2014.

vam em roda em um determinado lado do cômodo, as mulheres do outro; logo em seguida, um escravo era responsável por servir o mate a ambos. As mulheres geralmente preferiam tomar ma- te doce enquanto os homens mate amargo51. Nesse caso, o escravo não partilhava nem da conver- sa e nem do chimarrão com seus senhores, sua função era exclusivamente serviçal.

Nesses dois últimos exemplos e nos temas já tratados, além dos hábitos culturais e das questões econômicas, ficam evidentes as formas de organização social que segmentam essa soci- edade oitocentista. Além dos mencionados estancieiros e charqueadores, havia outra parcela com destaque econômico, os comerciantes. Eles eram migrantes do Rio de Janeiro ou imigrantes eu- ropeus, que se estabeleceram na Província do Rio Grande do Sul e que, por meio da atividade comercial, adquiriram grandes fortunas. Na segunda metade dos oitocentos, como será visto adi- ante nesse estudo, esses homens de negócios investiram quantias substanciais no setor ervateiro.

Outro exemplo de categoria social, os peões, em sua maioria descendentes de índios, es- cravos, portugueses ou espanhóis, integravam um nicho diverso de homens livres e itinerantes que vendiam aos estancieiros sua principal força de trabalho: cuidar dos rebanhos bovinos. Nas horas livres, eles se dedicavam à agricultura de subsistência e à produção de erva-mate apenas para consumo próprio.

Já os caboclos, também descendentes de luso-brasileiros mas diferentes dos peões, esta- vam à margem dessa sociedade estancieira e escravocrata. Eram, em sua grande maioria, possei- ros, pequenos proprietários, agregados ou arrendatários que sobreviviam da extração e comercia- lização do mate. Nos meses de entressafra, também praticavam uma agricultura de subsistência. Suas técnicas agrícolas se baseavam em métodos rudimentares como a coivara: derrubada e pos- terior queima da mata nativa para a plantação de gêneros alimentícios, como o milho, a abóbora, o feijão e a mandioca. Essas técnicas agrícolas, em conjunto com a extração do mate, provavel- mente compuseram boa parte das características de formação do complexo ervateiro, hipótese que também será trabalhada ao longo deste estudo.

Enfim, a sociedade desse Rio Grande do Sul oitocentista, formada pelos seus diversos agentes (estancieiros, charqueadores, comerciantes, escravos e homens livres), contribuiu com as transformações socioeconômicas que resultaram na emergência e valorização da produção e co- mercialização da erva-mate, em parte evidenciadas pela gradual evolução técnica que o setor er- vateiro atravessou ao longo do Brasil Império.

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Em relação aos procedimentos de extração e de preparo da erva-mate, no início do sécu- lo, o mesmo Sant-Hilaire, ainda em 1822, no decorrer de suas andanças, observou e registou ín- dios, próximos ao rio Uruguai, preparando-a para o consumo. As etapas desse processo, breve- mente descritas a seguir, duravam cerca de uma semana e eram feitas manualmente.

1) Poda: com o auxílio de um facão, os galhos e as folhas da árvore do mate eram extraí- dos. Esse procedimento era preferencialmente realizado entre os meses de março a ou- tubro. Esse período, com temperaturas mais frias, favorecia a diminuição da seiva. 2) Sapeco: realizado logo após a colheita, a ramagem era passada rapidamente sobre a

chama de uma fogueira, com o objetivo de secar as folhas e galhos menores, desidra- tando-os. Isso evitava a fermentação da planta e garantia a qualidade do sabor e da to- nalidade final.

3) Carijo: para continuação da secagem iniciada no sapeco, uma estrutura, em torno de 1,20 m de altura, feita de achas de pinho, era rusticamente construída para formar uma grade de varas fincada ao chão através de esteios. Sobre a grade, as ramas e as folhas sapecadas eram dispostas de forma que estas ficassem acima das primeiras e, com bra- sas embaixo, elas eram mantidas em temperatura constante, por volta de sete a oito di- as, o que garantia a torrefação uniforme delas. Esse procedimento exigia constante vi- gilância: fogo demais, elas contraíam o gosto da fumaça; fogo de menos, as mesmas não secavam.

4) Soque: na última etapa de beneficiamento da erva-mate, as mesmas folhas e ramas ori- undas do carijo eram introduzidas em sacos de couro e depois malhadas com auxílio de um pedaço de madeira ou eram colocadas em um pilão de soque manual. Na sequên- cia, após a trituração, o produto estava pronto para o consumo.

5) Empacotamento: o produto final era embalado em surrões, espécie de bolsa de couro que cabia em média 5 arrobas (75 Kg) de mate. Isso garantia a qualidade do produto ao ser transportado.

Por fim, tanto as categorias sociais quanto a evolução do processo de manufatura contri- buíram com certos aspectos da composição do objeto de estudo dessa pesquisa: “o complexo econômico ervateiro” sul-rio-grandense. Embora essa denominação se assemelhe, por exemplo, a terminologia “complexo econômico cafeeiro” proposta por Wilson Cano, a idealização do “com- plexo econômico ervateiro” apresenta diferenças conceituais, se comparada com a visão do Cano

e com as visões de “complexos econômicos” empregadas por outros autores.

Celso Furtado, por exemplo, utilizou a expressão “complexo econômico nordestino” pa- ra sintetizar as características e as formas que assumiram as relações dos dois sistemas econômi- cos nordestinos, o açucareiro e o pecuarista, no final do XVIII e início do XIX. Esse complexo foi uma conjunção do primeiro setor, típico das regiões litorâneas e baseado no sistema de plan-

tation, com o segundo setor, típico das regiões sertanejas e baseado no regime de subsistência que

surgiu para atender certas demandas da economia do açúcar: alimentação, força motriz e couros. Apesar das diferenças entre esses setores, ambos apresentaram uma característica singular: o crescimento extensivo através da incorporação de terras e de mão-de-obra, que ocorria sem mu- danças nos custos de produção52.

Já de acordo com o Wilson Cano, para entender a dinâmica de crescimento de uma eco- nomia é necessário analisar que partes principais a compõem, como atuam cada uma delas e qual a intensidade das inter-relações do “complexo econômico” integrado53. Evidentemente, Cano utilizou a noção de “complexo econômico” para entender o dinamismo singular do café e o pro- cesso de industrialização de São Paulo na segunda metade dos oitocentos em diante. Esse dina- mismo foi amparado por algumas características presentes nessa formação econômica: o sistema de transporte; uma pujante agricultura de alimentos; um mercado interno e externo, crescentes; a atuação do Estado; o beneficiamento da produção; e as relações capitalistas de produção. A com- binação desses fatores contribuiu para a formação do “complexo econômico cafeeiro” e a indus- trialização de São Paulo54.

A partir do conceito de “complexo econômico” trabalhado por Furtado e teorizado por Cano, pretende-se, nesse trabalho, analisar se as mesmas características de formação econômica estão presentes no ciclo produtivo da erva-mate e, no caso de presença, identificar o momento histórico de sua ocorrência. No entanto, de forma distinta da produção do café, considerada ativi- dade nuclear na qual ocorreu um vazamento de capitais e formou um conjunto de outras ativida- des dependentes da economia cafeeira, o “complexo econômico ervateiro” será entendido como a integração mútua, direta ou indireta, entre a produção da erva-mate e os demais setores econômi- cos e atividades assessoras. O conceito de “complexo ervateiro”, compreendido sob uma ótica de conjunção de fatores, sustenta a hipótese de que o setor da erva-mate, nos oitocentos, dinamizava

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Celso Furtado. Op. Cit. p. 101-112. 53

Wilson Cano. Raízes da Concentração em São Paulo. São Paulo: Campinas. 1975 54

a economia da Província do Rio Grande do Sul, através do processo de acumulação de capitais que ocorreu, sobretudo, durante o século XX.