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A expansão do mercado platino de erva-mate, ocorrido durante o período da guerra, in- centivou melhorias no sistema produtivo ervateiro. Tais melhoramentos tecnológicos, de certo modo, foram reflexos da Revolução Industrial europeia. Esta, após atingir os limites de desenvol- vimento da indústria têxtil, reinvestiu capitais em outros setores econômicos, o que culminou

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com a emergência de uma nova fase industrial assentada no carvão, no ferro e, depois, no aço78. O ferro logo se tornou matéria-prima essencial para a fabricação de máquinas mais rápidas e ro- bustas. Essas novas tecnologias disseminadas nos diferentes ramos da produção promoveram melhoramentos e possibilitaram um rápido crescimento industrial. Esse período caracterizou-se por um intenso acumulo de capitais para os empresários ingleses, decorrentes do crescente núme- ro de exportação de bens de consumo e de capitais daquele país.

Nesse contexto, essas tecnologias foram disseminadas nos países periféricos e, com isso, também promoveram uma série de melhoramentos em vários setores econômicos do Brasil Impe- rial. No setor ervateiro Rio-grandense, essa mudança de paradigma decorrente da revolução in- glesa contribuiu com a substituição dos soques manuais pelo emprego dos pilões projetados com ferro e movidos à tração hidráulica, que tornou mais eficiente a trituração das folhas e dos peque- nos galhos. Essa nova tecnologia foi rapidamente disseminada pelas áreas produtoras de erva- mate da Província.

Como exemplo desse desenvolvimento, Abel Correa Câmara possuía, em 1849, um mo- inho d’água com dez pilões de ferro para o beneficiamento da erva79

. No relatório da Vila de Cruz Alta de 1853 enviado ao governo provincial, outro exemplo, retratou a existência de 16 en- genhos de beneficiamento de erva-mate no distrito de Campo Novo, todos funcionando plena- mente e produzindo excelente erva, pronta para o consumo e a exportação80. Os relatos do jovem viajante italiano Henrique Schutel Ambauer, também exemplo da mesma época, registou outro engenho em Campo Novo que possuía cerca de 10 a 12 pilões, impulsionados por enormes rodas d’águas, para realizar a moagem81

. Já no município de Rio Pardo, último exemplo, Avé-

Lallemant, um viajante alemão, discorreu sobre uma fábrica de erva-mate equipada com 46 pilões

de puro ferro, que trituravam, com grande velocidade, as folhas e os pequenos ramos e que, com isso, possibilitavam o beneficiamento de até 100 arrobas por dia82.

Diferente do que foi observado por Sant-Hilaire em 1822, quando a trituração era reali- zada por pedaços de madeira e surrões de couro, esses quatro registros evidenciam que o mesmo procedimento de moagem passou a ser feito com a utilização de pilões de ferro movidos a força hidráulica. Tais exemplos sugerem que num período de 30 anos ocorreu o melhoramento das for-

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Eric Hobsbawm. Da Revolução Industrial Inglesa ao Imperialismo. Rio de Janeiro: Forense, 1986 79

José. P. Eckert. O Povo dos Ervais – Entre o Extrativismo e a Colonização (Santa Cruz 1850-1890) Dissertação De Mestrado Unissinos: 2001. p, 106.

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Wilmar Bindé. Campo Novo: Apontamentos para sua história. Santo Ângelo: Gráfica Santo Ângelo, 1986. P, 58 81

Wilmar. Bindé. Op. Cit. p, 133 82

ças produtivas no setor ervateiro. Essa melhora se deveu ao provável reinvestimento de capitais acumulados pelos proprietários de fazendas e de casas comerciais.

Possivelmente esse avanço dos meios de produção melhorou a qualidade da erva-mate produzida no Rio Grande do Sul, que se destacava da erva produzida nas demais regiões produto- ras do Império (Paraná e Santa Catarina) devido às suas características organolépticas considera- das aprazíveis. Esse atributo permitiu, entre 1850-70, que a erva ainda cancheada83 ganhasse a preferência do mercado da Argentina. Este país a importava e, para agregar valor ao produto, realizava as etapas finais do beneficiamento (a moagem, o empacotamento e a distribuição ao consumidor) em solo argentino. Embora a venda da erva-mate cancheada representasse certa falta de controle sobre a cadeia distributiva e a perda de grande parte dos dividendos, o mate rio- grandense, ainda assim, vivia um bom momento no comércio internacional84.

Além disso, após o término da Revolução Farroupilha, a erva-mate contribuiu com a re- tomada do crescimento econômico da Província e com a reestruturação dos municípios que pos- suíam ervais e que foram castigados pela guerra. A tributação sobre o fabrico e a exportação do mate se tornou a principal fonte de arrecadação entre eles85. Além disso, os próprios fazendeiros dos centros ervateiros investiram em infraestrutura para melhorias dos portos e das embarcações. Os irmãos José Inácio e João Teixeira, por exemplo, construíram um porto na foz do Arroio dos Conventos, próximo ao rio Taquari. Do cais dele, as embarcações partiam com madeira e erva- mate e, em contrapartida, retornavam com outros mantimentos86.

A expansão do mercado platino também contribuiu com a migração para o interior do município de Cruz Alta, especialmente nos ervais localizados no mato Castelhano e no mato Por- tuguês. Nessa época, esse município, vizinho de Rio Pardo, estendia-se por cerca de 60.0000 Km quadrados, o que correspondia a aproximadamente 20% do território total da Província87. Seus ervais, sobretudo o de Castelhano, ainda não haviam sido explorados comercialmente pois neles habitavam comunidades autóctones que provavelmente afastavam a presença dos extratores. A Figura 1.5 mostra um mapa com a extensão desses ervais.

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Erva-mate beneficiada até a etapa de Cancheamento. 84

José P. Eckert. O Povo dos Hervaes: entre o extrativismo e a colonização (Santa Cruz, 1850 – 1900). Dissertação de mestrado. São Leopoldo. Unissinos. 2011. P, 96

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De acordo com correspondências oficiais da própria Câmara Municipal de Cruz Alta. 86

Lucildo A. Sirlei T.G. Povoamento e Desenvolvimento Econômico na região do Vale do Taquari, Rio Grande do Sul 1822 a 1930. Dissertação de Mestrado Uníssinos.

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Figura 1.5 – Mapa das regiões de ervais ainda inexplorados88.

A exploração desses novos ervais foi, de certa forma, facilitada devido à adoção de polí- ticas de catequização dos povos indígenas, com o objetivo de promover aldeamentos e evitar con- frontos, bem como inseri-los nos costumes e moldes da sociedade oitocentista89. Em 1845, por exemplo, o governo provincial, através do Decreto n. 426 de 24 de Julho90, iniciou o projeto de catequização dos índios do mato Castelhano para viabilizar a ocupação daquelas terras. Além disso, a criação dos aldeamentos ocorreu durante a construção de uma estrada, entre o norte do Rio Grande do Sul e a Província de São Paulo, destinada à facilitação do transporte de pessoas e mercadorias. A abertura dessa estrada em conjunto com os aldeamentos promoveu uma corrida para esses ervais ainda não explorados. Além desses dois indícios, a concorrência estabelecida

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Cláudio Moreira Bento. O Exército Farrapo e seus chefes. Porto Alegre: Biblíoteca do Exército. 1992 89

Relatório apresentado pelo presidente da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, Barão de Muritiba. Porto Alegre. Typographia Correio do Sul 1856. Vale salientar que todos os Relatórios de Presidente de província estão disponíveis gratuita- mente em: http://www.crl.edu/brasil/provincia/rio_grande_do_sul

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nos Vales do Taquari e do Rio Pardo possivelmente já dispersava parte dos produtores que, à procura de novas regiões ervateiras, migravam motivados pela promessa de rentabilidade.

A possibilidade de extração e comercialização da erva-mate no mato Castelhano atraiu a migração de uma parcela da população pobre de outras partes da Província. Essa camada social possuía uma origem heterogênea: índios já catequizados, caboclos, mestiços, escravos fugidios, entre outros. O setor ervateiro, que exigia grande contingente de trabalhadores e pouca capacita- ção técnica, tornou-se uma opção de fonte de renda para esses homens. “Atraídos pelas notícias da extraordinária abundância e superioridade da erva-mate, eles se arranchavam como agregados ou por conta própria, dentro dos matos baldios para realizarem a extração da erva91”. Já nos me- ses de entre safra, eles se dedicavam a agricultura de subsistência, muitas vezes cultivada em meio aos próprios ervais. É provável que a necessidade de fornecer produtos básicos a esses tra- balhadores logo despertou o interesse de comerciantes que, dispostos a vender ferramentas de trabalho, artigos e provisões, também migraram para esses matos afastados.

Assim, esses comerciantes se distribuíram por essa região nos distritos de Passo Fundo, Soledade, Campo Novo e Palmeira das Missões. Muitos deles abriram, bem próximo aos ervais, pequenas vendas em que aceitavam a erva como moeda de troca. Joaquim Pereira Motta, por exemplo, iniciou seus negócios, na década de 1860, com uma pequena casa de comércio no dis- trito de Palmeira das Missões, município de Cruz Alta. Ele atuava como prestamista e como agenciador de erva, atividades que lhe renderam fortunas. Em 1885, ano de sua morte, ele deixou uma herança avaliada em cerca de 149:320$290 réis, que era composta por dois campos de terras, rebanhos, imóveis, mercadorias e, também, uma aplicação de 27:756$560 réis no banco de Porto Alegre92.

Outros comerciantes também atuaram diretamente sobre o processo de produção da er- va-mate. Eles compraram os engenhos e, com estes, realizavam a trituração e o empacotamento dela, adquirida ainda cancheada dos extratores. Com o domínio dessas duas últimas etapas e com o controle das vendas, esses negociantes agregaram valor à mercadoria e aumentaram suas renta- bilidades. Por exemplo, o comerciante francês Luiz Perié, residente em Cruz Alta, acumulou co- mo herança, segundo o inventário de sua morte em 1851, artigos de comércio, um galpão nas margens do arroio Santo Christo (sic), uma casa coberta de capim, um pequeno rincão de campos

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José Velloso da Silveira Hemetério. As missões Orientais e seus antigos domínios. Porto Alegre: Erus, 1990, p. 326 92

Luis Cristiano Christillino. Litígios ao Sul do Império: A Leis de Terras e a consolidação política da Coroa no Rio Grande do Sul. Tese apresentada na Universidade de Niterói. 2007 p, 93

e um engenho hidráulico de erva-mate, tudo avaliado na quantia de seiscentos mil réis93. Em ou- tro exemplo, Evaristo Teixeira do Amaral, em 1854, fundou, em Itaqui, a empresa Evaristo & Cia, casa comercial que se dedicava à exportação de erva-mate, lã e couros e à importação de sal, açúcar, tecidos, cigarros, fumos e charutos. Com o pecúlio oriundo dos seus negócios, ele acumu- lou terras, gado e escravos. Por conseguinte, em 1869, foi nomeado Major Ajudante da Guarda Nacional e, em 1870, foi então transferido para Cruz Alta. Devido a essa transferência, o Major estendeu seus empreendimentos para essa região ervateira, na qual, além de uma casa de comér- cio, também investiu num engenho de erva-mate em Palmeira das Missões94.

Devido ao grande fluxo de pessoas que migraram para os ervais de Castelhano, o gover- no provincial começou a se preocupar em protegê-los, sobretudo os matos de Campo Novo, regi- ão limítrofe com a Argentina e, por isso, suscetível a invasões de extratores estrangeiros oportu- nistas. Para isso, em 1879, ele abriu novas estradas, construiu pontes, e fundou uma colônia mili- tar, investimentos que também ajudaram a desenvolver a região95. Em especial, a abertura de es- tradas possibilitava o transporte de produtos com maior segurança, o que favorecia o comércio, e conectava essa região ervateira com os centros urbanos portuários, como Porto Alegre, o que facilitava o escoamento da produção.

Aos poucos, as vilas e povoados, originárias ou expandidas do fluxo migratório, cresce- ram e, com isso, sobrecarregaram a câmara municipal de Cruz Alta, encarregada de administrar, como já mencionado, um município de 60.000 Km quadrados. Portanto, com o tempo, elas inevi- tavelmente se desmembraram dele. Passo Fundo, por exemplo, emancipou-se de Cruz Alta em janeiro de 1857. Já Palmeira das Missões se desvinculou em 1874. Soledade, por sua vez, des- membrou-se de Passo Fundo em 1875. Todos os novos municípios se constituíram, de certa for- ma, com a ajuda da extração e produção de erva-mate, que, de acordo com os próprios relatórios e documentos das suas novas câmaras, era considerada o principal produto econômico da região.

Assim, com esses desmembramentos de distritos, o mato Castelhano se segmentou em novas regiões ervateiras, Palmeira das Missões, Passo Fundo e Soledade, as quais, integradas às já existentes – Cruz Alta, Rio Pardo e Taquari –, compuseram os principais centros produtores de erva-mate da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul durante o século XIX. Por outro lado, com a emergência e a subsequente valorização desses centros produtores, os conflitos agrários

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Marcos Gerhardt. Op. Cit. p, 77 94

Lurdes G. Ardengui. Caboclos, Ervateiros e Coronéis: Luta e resistência no norte do Rio Grande do Sul. Passo Fundo: editor da UPF. 2003. p, 135

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decorridos do apossamento de terras com ervais e os seus desdobramentos, tratados na sequência desse estudo, protagonizaram um capítulo à parte na história da Província, sobretudo com o ad- vento da Lei de Terras de 1850 e com o início do processo de colonização.

2 REFLEXOS DA LEI DE TERRAS NAS REGIÕES ERVATEIRAS

Neste capítulo, serão abordados aspectos das regiões de ervais na Província do Rio Grande do Sul oitocentista. Entre os agentes desse contexto histórico estão as formas distintas de como a Lei de Terras de 1850 foi aplicada e os seus desdobramentos políticos, sociais e econômi- cos. A interpretação e a aplicação da Lei, tanto em sua jurisprudência quanto em seus efeitos na mercantilização da terra, estiveram sujeitas às certas especificidades regionais como, por exem- plo, o aparato judiciário responsável pelos registros legais. Por conta disso, é parte fundamental deste trabalho a investigação de como os municípios das cinco regiões ervateiras, apresentadas no capítulo anterior, receberam a referida Lei e como ocorreram as demarcações e apropriações das terras, que passaram da administração pública à privada.

Essa investigação se fundamentou na análise de documentos oficiais da época: os regis- tros paroquiais de terras, os ofícios Províncias, as correspondências das Câmaras Municipais, a sanção de Leis municipais, entre outros. A partir dessa documentação, pôde-se avaliar a maneira como os órgãos públicos agiram: se a Lei de Terras de 1850 foi cumprida em sua totalidade ou se em determinados momentos permaneceu letra morta. Além disso, essa documentação oficial também continha registros de conflitos devido à posse ilegal de terrenos e revelava informações importantes sobre a atuação do Estado enquanto órgão fiscalizador e regulador desse processo. Outro fato relevante presente nessa documentação são os indícios do processo de colonização praticado nas áreas de ervais. A presença dos colonos, como será melhor abordado adiante, con- tribuiu com o avanço da privatização e consequente evolução do preço dos terrenos em áreas de matas nativas, o que posteriormente dificultou que a população luso-brasileira de baixa renda tivesse acesso à terra.

Como a Lei de Terras influenciou profundamente a economia ervateira emergente, a compreensão e a contextualização do momento histórico da sua institucionalização são importan- tes ao propósito desta pesquisa. De forma direta e simplificada, o principal objetivo da Lei era regulamentar a propriedade, e com isso, proibir a posse de terras devolutas por ocupação ou inva- são. Como em diversas partes do país, a Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, após a sanção da Lei, também passou por uma série de transformações socioeconômicas, especialmente nas regiões Norte, Noroeste, do Vale do Rio Pardo e do Vale do Rio Taquari, todas localidades de terras públicas com abundantes ervais.