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A LEI DE TERRAS DE 1850: CONTEXTO HISTÓRICO

A história agrária brasileira, desde os tempos da Colônia, foi marcada pela prática do apossamento de terras públicas. Durante o período colonial, a legislação agrária implantada no Brasil foi a mesma vigente na metrópole. Em Portugal, a ordenação jurídica da apropriação terri- torial era baseada no sistema de Sesmarias, que tinha como objetivo impedir o esvaziamento do campo, resolver a crise do abastecimento das cidades, mediar os conflitos entre as distintas clas- ses sociais e também acabar com as terras ociosas ao estabelecer a possibilidade de perda do ter- reno caso o mesmo não fosse cultivado. Em Portugal, em um primeiro momento, essa legislação alcançou os resultados esperados, tendo fracassado depois. No caso da colônia brasileira, entre- tanto, o sistema de sesmarias apresentou resultados distintos, em parte devido a certas especifici- dades da colônia. A proporção territorial era significativamente maior do que na metrópole e a maioria das terras ainda não possuía proprietários civis96. Isso, posteriormente, possibilitou que o apossamento ilegal se tornasse a forma dominante de apropriação de terras públicas. Com o pas- sar do tempo, as tensões entre a metrópole e a colônia desencadearam questionamentos acerca dos vínculos entre ambas e, em consequência, deslegitimaram a legislação das sesmarias. Isso, reforçou, ainda que de forma indireta, o rompimento dos laços coloniais existentes. Portanto, a supressão desse sistema de partição territorial ocorreu junto com a declaração da Independência do Brasil em 1822.

De 1822 a 1850, o único modo de apropriação da terra foi através da posse. De certo modo, durante o Império, debater a questão agrária requeria a discussão de opiniões conflitantes entre o governo e a elite da época, representada pelos grandes proprietários rurais. O debate a respeito da regulamentação das propriedades só se iniciou na década de 1840, devido principal- mente ao problema de abastecimento de mão de obra caso se pusesse fim ao tráfico negreiro. Ou- tra questão, entretanto, de igual importância estava subjacente: a necessidade de afirmação e de desenvolvimento do Estado brasileiro. Essa discussão fazia sentido porque somente através da regulamentação das terras é que os proprietários seriam amparados pelo direito legal. Apesar dis- so, a dificuldade de aplicação de uma legislação agrária que fosse conveniente aos grandes pro- prietários, beneficiados pela posse indiscriminada da terra e também pelo então sistema de plan-

tations, postergou a criação dessa regulamentação. Assim, o primeiro projeto da Lei de Terras

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discutido em 1843 foi engavetado97.

Foi somente em 1850, com as novas demandas socioeconômicas, que a regulamentação de terras se efetivou. A falta de controle do governo Imperial sobre as terras públicas e a adoção da Lei Eusébio de Queiros, de cessação do tráfico, que atingia diretamente a forma predominante de mão-de-obra, levaram os setores da elite nacional e os órgãos governamentais a reavaliarem as políticas agrárias e a forma de organização do trabalho. O sistema produtivo vigente, assentado na escravidão, estava sendo ameaçado pelas políticas imperiais da Inglaterra visando a acabar com o tráfico internacional de escravos, uma vez que o desenvolvimento do capitalismo alterou o padrão das relações comerciais e econômicas em âmbito mundial98. Diante dessa pressão exerci- da pelos ingleses, Dom Pedro I fora obrigado em 1830 a tomar medidas em relação ao tráfico negreiro. A despeito disso, o governo imperial, obediente aos interesses da classe dominante, postergou a adoção de medidas drásticas. Porém, o posicionamento irredutível da Inglaterra, para findar com o tráfico negreiro tornava, em 1850, necessário esse debate, ao mesmo tempo em que diminuía a resistência de alguns grupos contrários ao término da escravidão99.

A sanção da Lei Eusébio de Queiros, em 04 de setembro de 1850, pôs fim ao tráfico ne- greiro e, com isso, engendrou uma profunda transformação socioeconômica na segunda metade dos oitocentos. Com a proibição do tráfico, os recursos disponíveis, antes destinados à compra de escravos, foram reinvestidos em outros setores econômicos como, por exemplo, o ferroviário, o varejista, o bancário, o telegráfico, entre outros. Esses novos investimentos, por sua vez, contri- buíram com a dinamização da economia e da sociedade100. Diante desse quadro, foi imprescindí- vel uma discussão sobre a transição do trabalho cativo para o trabalho livre. A solução pensada pela elite nacional e pelo governo Imperial foi a retomada do antigo plano de colonização, posto em prática pela primeira vez entre os anos de 1823 a 1830. Nessa época, tal plano foi abandonado devido a uma derrota política do Imperador para a elite agrária, contrária à colonização e aos inte- resses de Dom Pedro I101. Contudo, para retomar o projeto de colonização do Brasil, primeiro havia a necessidade de resolução da questão agrária.

Alguns dias após a promulgação da Lei Eusébio de Queiros, foi também outorgada a Lei

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Daniel do val Cosentino. Um Múltiplo de Transições: A Transição do Trabalho Escravo para o Trabalho Livre em Minas gerais. Dissertação de Mestrado. Unicamp. IE. 2006, p. 27

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Daniel do val CosentinoOp. Cit. p, 30-45 99

Ligia Osório Silva. Op. Cit. p,132-33 100

Ligia Osório Silva. Op. Cit. p, 132-33 101

Paulo Pinheiro Machado. Colonizar Para Atrair: A montagem da Estrutura Imperial de Colonização no Rio Grande do Sul. Tese de Doutorado. IFCH. 1996. P, 16

Imperial nº 611 em 18 de setembro de 1850, popularmente denominada Lei de Terras. Ela foi um projeto com 108 artigos elaborado pelo partido conservador e regulamentado pelo decreto nº 318 de 20 de janeiro de 1854. Essa compilação de normas visava resolver duas questões concomitan- tes: a regulamentação das terras e a questão da mão-de-obra102. A Lei de Terras pretendia demar- car as áreas devolutas, vendê-las e, com o lucro das vendas, promover um projeto de colonização, tanto para os imigrantes quanto para os nacionais, para remediar a eventual falta de trabalhadores desencadeada pela Lei Eusébio de Queirós. Para que esse planejamento fosse bem sucedido, os proprietários primeiramente deveriam regularizar as suas propriedades para que posteriormente as terras públicas fossem então demarcadas. No entanto, grande parcela dos posseiros se recusava à demarcação das suas terras e continuava a se apropriar das áreas devolutas.

Em termos jurídicos, a aplicação da Lei de Terras objetivava discriminar as áreas públi- cas das áreas privadas e evitar as fraudes e as apropriações indevidas. Ao contrário disso, as difi- culdades de aplicação dessa Lei, atrelada a uma série de desdobramentos políticos e socioeconô- micos, possibilitaram a apropriação e a concentração territorial legal e ilegal em todo Brasil, pois na prática não era a Lei em si mesma que garantia a aquisição e a manutenção das terras, mas sim as condições socioeconômicas e políticas dos requerentes envolvidos no processo. Assim, a pos- se de terras continuou por muito tempo ocorrendo de forma desordenada pela iniciativa privada, o que contribuiu com a não democratização do acesso à terra. Esse fenômeno ocorreu em pratica- mente todo o Brasil. Contudo, esse trabalho abordará principalmente a aplicação da Lei de Terras na Província do Rio Grande do Sul, especialmente nas áreas de ervais. Além disso, também será analisado, a seguir, o impacto da imigração e da colonização nas regiões ervateiras e os decorren- tes reflexos dessa nova conjuntura na economia e na sociedade oitocentista Rio-grandense.