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2.4 OS APOSSAMENTOS EM ÁREAS DE ERVAIS

2.4.1 A Apropriação em Cruz Alta

O município de Cruz Alta, um dos mais antigos do Rio Grande do Sul, criado pela reso- lução de 11 de março de 1833, era um dos maiores em extensão territorial e, devido a isso, ao longo do XIX e XX, o seu desmembramento daria origem a muitos outros municípios. Cruz Alta foi elemento importante em quase todos os acontecimentos políticos, militares e econômicos da Província. Recebeu o alto comando farroupilha em janeiro de 1841. Forneceu voluntários à 4º divisão da cavalaria que atuou na Guerra do Paraguai. E, além disso, foi um importante centro extrator ervateiro136. Dado o seu grande território, nesse município, após a sanção da lei de 1850, ocorreram muitos casos de posses de terra irregulares, especialmente nas regiões dos ervais.

Em um de seus distritos, Santo Angelo, os moradores, através de oficio, reclamavam que os hervaes, existentes na Serra geral Juhy Grande, foram tomados pelo cidadão Jõao Rodrigues da Fonseca e outros individuos que se consideravam possuidores sob a alegação de os terem me- dido e demarcado. No entanto, nenhum archivo, que assegurava a legalidade desses atos, consta- va no cartório da cidade. A Câmara Municipal requisitava, por meio de correspondência ofical ao governador da Província, urgência na solução desse problema e esclarecia que, entretanto, não embargara as referidas medições e demarcações em virtude do Artigo 221 do Código de Postu- ras137. Mas de acordo com a Câmara, os extratores de erva-mate tinham o direto de explorar a- quela região porque esta era propriedade do municipio e porque a extração e beneficiamento da erva-mate era o único ramo industrial que empregava a população de baixa renda138.

Em outro ofício, enviado a Repartição de Terras Públicas da Província, ainda retratando o mesmo caso, um abaixo assinado, com 25 assinaturas dos moradores de Santo Angelo, solicita-

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Cruz Alta (Prefeitura). Disponível em: <http://www.cruzalta.rs.gov.br>. Acesso em: 16/06/2014. 137

RIO GRANDE DO SUL (Estado). Memorial do Rio Grande do Sul. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Correspondên- cia da Câmara Municipal de Cruz Alta. Nº 520, Maço 60, Cx. 28, de1870

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RIO GRANDE DO SUL (Estado). Memorial do Rio Grande do Sul. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Correspondên- cia da Câmara Municipal de Cruz Alta. Nº 517, Maço 60, Cx. 28, de 24 de maio de 1870.

va providências das autoridades. O traço impreciso das assinaturas sugere que o documento foi redigido com apoio de um indivíduo letrado, o que corrobora a hipotese de que os caboclos, ou extratores de erva-mate, não conheciam bem as leis juridicas e, talvez, por isso não se preocupa- vam em legalizar suas posses conforme exigido no Artigo 5º da Lei de Terras.

Art. 5º. Serão legitimadas as posses mansas e pacíficas, adquiridas por ocupação primária, ou havidas do primeiro ocupante, que se acharem cultivadas, ou com principio (sic) de cultura, e morada habitual do respectivo posseiro, ou de quem o represente (...)

Registros primários do acervo documental das Câmaras Municipais, contendo abaixo as- sinados de cidadãos pobres prejudicados, são raros e, portanto, valiosos para a compreensão da situação vivenciada por essa população. Além disso, são raros também documentos que retratam a intervenção do poder público em socorro a essa gente.

Além da documentação oficial da Câmara Municipal de Cruz Alta, os Registros Paro- quiais do mesmo município também apresentam documentos que revelam a intensa disputa de terras na região. Os primeiros registros desse tipo, a cargo das paroquias locais, revelaram-se na prática omissos ou imprecisos. Contudo, a despeito das deficiências, eles também são fontes vá- lidas que contribuem para a elucidação de aspectos da formação fundiária brasileira. Eles ganha- ram importância histórica devido à Lei de Terras de 1850, pois esta exigia de todos os possuido- res de terra, qualquer que fosse o título de sua propriedade, a obrigação de registrá-la, dentro dos prazos estabelecidos pelo regulamento139. Esses registros eram realizados pelos vigários, que os lançavam em livros paroquiais exclusivamente destinados a esse fim, e posteriormente eram en- viados ao Diretor Geral de Terras Públicas da Província. As condições precárias em que os do- cumentos eram confeccionados permitiam fraudes, pois, conforme o Art. 100, os párocos não podiam recusar as declarações de posse do suposto possuidor, mesmo se essas apresentassem erros notórios140. Assim, amparados na Lei, os posseiros muitas vezes burlavam o artigo 100 para pagar um valor menor pelo registro ou para assegurar uma área maior do terreno. Em geral, o declarante da posse estava desobrigado a prestar informações precisas sobre a forma como adqui- rira a propriedade e suas reais dimensões141. Dessa forma, as descrições sobre os terrenos eram vagas e caracterizadas, por exemplo, por acidentes geográficos: uma encosta, uma encruzilhada,

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Art. 91 do Decreto nº. 1.318 de 30 de Janeiro de 1854. 140

Artigo 102. 141

Ortíz, Helen Scorsatto. Ocupação, valorização e comércio de terras no norte do Rio Grande do Sul -séculos 19 e 20, in: Dos- sier: Los mercados de tierras em Argentina y Brasil durante el siglo XIX. 2009, no. 35, p, 05

uma queda d’água, uma árvore torta, entre outros. Essa prática, embasada pelo parágrafo 1º do artigo 5º da Lei de Terras, possibilitava o apossamento eficiente de áreas imensas.

Matheus Ferreira, por exemplo, em 1856, registrou na Paroquia de Cruz Alta a posse de campos e matos no Rincão de Nossa Senhora, distrito do município, adquiridos, segundo ele, em 1839. No entanto, a declaração de posse não discriminava a extensão e as divisas da propriedade. De acordo com o documento, (...) “o terreno principiava em uma quebrada onde tem um marco na estrada que vem dos hervaes, cujo mesmo marco é divisa do mesmo vendedor ”(....)142

. Outro exemplo de registro paroquial impregnado de imprecisões documentais, datado de 1867 e decla- rado por Joaquim Antonio Cardoso do distrito de Boticarahy, relata uma propriedade na Serra “onde tem um estabelecimento de posse desde 1836 e cujo lugar é conhecido como herval limpo, tendo de fundo um quarto e meio de legua e de frente mais ou menos”143

. Essas duas fontes pri- márias, consideradas documentos oficiais de posse, revelam, de maneira indubitável, o descuido na oficialização de terrenos e, dada a evidente falta de critério na regulamentação e elaboração desses registros, sugerem a viabilidade para a possessão fraudulenta de terras devolutas. Essa forma descuidada de registrar os empossamentos facilitava a expansão territorial e evitava possí- veis contestações judiciais, em parte porque dificultava a localização, as metragens e as frontei- ras dos terrenos, apresentadas na maioria dos casos com sentenças do tipo “mais ou menos” ou “três quartos de frente”, e em parte porque não questionava a veracidade de declarações que não precisavam de comprovação.

Além da imprecisão documental, outro registro paroquial expõe um caso de falsificação explícita para assegurar a posse de terrenos. O cidadão Thomas Rodrigues Gonçalves declarou, em 1855, a aquisição, próximo à estrada de Santa Cruz, de 5.445 hectares de campos e matos144. Nesse caso, a declaração indica um apossamento cinco anos após o advento da Lei de Terras (1850), que garantia o direito a propriedades empossadas somente até a data de sansão da Lei. Ou seja, esse registro paroquial contrariava uma Lei Imperial e, ao mesmo tempo, legitimava uma posse indevida.

A decisão imperial, através do artigo primeiro da lei de terras de 1850, transformou to- dos os posseiros, que ocupavam as áreas vazias, em transgressores da lei. No entanto, essa juris-

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RIO GRANDE DO SUL. (Estado). Arquivo Público. Registro Paroquial de Terras da Freguesia de Cruz Alta. N.º 578, de 19 de junho de 1856.

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RIO GRANDE DO SUL. (Estado). Arquivo Público. Registro Paroquial de Terras da Freguesia de Cruz Alta. N.º 813, de 02 de abril de 1857.

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Luís Cristiano Cristillino. Litígios ao Sul do Império: A Leis de Terras e a consolidação política da Coroa no Rio Grande do Sul. Tese apresentada na Universidade de Niterói.

dição logo começou a ser questionada e colocada em dúvida. Enquanto o governo Imperial tentou definir as novas posses como ilegais, a elite agrária, que exercia alguma influência social, eco- nômica e política, resistiu a essa legislação. Com o tempo, eles também ganharam o apoio de uma parcela de juristas e políticos influentes. Esse apoio aos grandes proprietários, por consequência, pressionou algumas decisões do governo imperial, que em vários casos se viu obrigado a realizar concessões como tentativa de salvaguardar as autoridades provinciais que constantemente eram desafiadas145. Diante de tantos casos de posses, o governo não conseguiu pôr fim a essa forma de aquisição da terra e, ao mesmo tempo, não conseguiu descobrir quais eram de fato as áreas ainda devolutas. Na tentativa de resolver essa questão da ilegalidade territorial, que aumentava cada vez mais, em 04 de outubro de 1873, o governo Imperial expediu una nota que concedia aos posseiros o direito de comprar as terras que foram ocupadas após 1854146. Entretanto, essa nota também não surtiu o desejado efeito e os apossamentos ilegais continuaram.