• Nenhum resultado encontrado

2.4 OS APOSSAMENTOS EM ÁREAS DE ERVAIS

2.4.4 A Apropriação no Vale do Taquari

As terras do Vale do rio Taquari estão localizadas no centro leste da Província, a uma distância média de 150 km da Capital, Porto Alegre. Essas terras eram consideradas férteis, pois as inundações do rio permitiam o cultivo permanente nas lavouras, em uma época em que a exa- ustão do solo era marcante nas demais regiões160. Atraídas pelas excelentes terras, as companhias de colonização e os grandes proprietários promoveram negócios imobiliários e intensificaram as posses ilegais em áreas florestais, que pouco a pouco se valorizavam. O consequente aumento demográfico contribuiu para o avanço sobre as matas de ervais.

Um caso, por exemplo, de posse ilegal de terra em regiões de ervais no vale do Taquari foi praticado por Ignácio Teodoro de Godoy. Ele solicitou um pedido de legitimação de posse de 2.887 hectares de terra, em 1883, num lugar denominado Paredão, nos fundos da Colônia Nova Berlin localizada no município de Estrela. Para justificar seu pedido, o posseiro argumentou que as terras estavam repletas de acidentes geográficos, rios, matas e morros, e que por isso, necessi- tava de uma extensão que viabilizasse a agricultura e à pastagem161. Isso, segundo o posseiro, justificava a requisição de uma vasta área. Entretanto, o Godoy, na verdade, solicitou terras com extensos ervais públicos e pretendia explora-los comercialmente.

Casos de posses ilegais, como o retratado acima, sugerem que talvez fosse mais fácil e rendoso se apossar ilegalmente de terras públicas do que adquirir uma propriedade por meio do viés juridicamente legal. Outro fato que colabora com essa hipótese é a persistência de anúncios

159

Aldomar Ruckert. op. Cit. p, 72 160

Marcos Kreutz. O contexto ambiental e as primeiras ocupações humanas no Vale do Taquari/RS. (Dissertação de Mestrado em Ambiente e Desenvolvimento). Lajeado RS: Univates, 2008.

161

Cristiano Christillino. A Lei de Terras e a afirmação da grilagem no Rio Grande do Sul. Consultado em 18/06/2014. Saeculum: Revista de História n. 26. 2012

de vendas de terras encontrados nos jornais da época. A Figura 2.3 mostra a imagem de anúncio desse tipo. No Jornal do Commercio162, no período entre 10/06/1886 e 12/12/1886163, uma sessão de classificados anunciava a venda de um terreno no Vale do Taquari, em regiões de matos com ervais, com infraestrutura para o beneficiamento da erva-mate, galpões, fontes de água e bons potreiros.

Figura 2.3 – Imagem de anúncio de venda de terras164.

Esse anúncio foi publicado 35 vezes ao longo do período mencionado. Devido às ineren- tes limitações da busca em fontes primárias, não se sabe, com exatidão, por quanto tempo as refe- ridas terras foram anunciadas. Porém, os seis meses em que classificado perdurou são suficiente- mente eloquentes para conjecturar que a venda de terrenos, através de jornais, não era tão imedia- ta e que, portanto, um mercado imobiliário que se valesse apenas desses anúncios não deveria ser muito promissor. Entretanto, a quantidade de registros de posses datados do mesmo período reve-

162162 Tais informações foram retiradas do

Jornal do Commercio (1864-1911). Esse períódico esteve entre os mais importan- tes jornais impressos no Rio Grande do Sul. Com o maior formato impresso (49,5 cm x 70 cm) e publicado diariamente, ele circu- lou na cidade de Porto Alegre e demais cidades do interior.

163 Venda de Terras. Jornal do Commercio. Porto Alegre, n. 290, 12 dez. 1886, p. 3. 164

la uma forte expansão imobiliária, capitaneadas principalmente pelas Companhias de Coloniza- ção. Ou seja, é bem provável que a maior parte das possessões territoriais ocorria por meio de apossamento ilegal por falsa declaração, como todos os casos citados anteriormente, e não por meio de compra e venda convencional.

Além dos apossamentos ilegais de terras, o município de Taquari sofreu com curiosos casos de corrupção. De acordo com os registros encontrados, a fiscalização das terras públicas era tão precária que os órgãos municipais não conseguiam conter os abusos praticados por particula- res e, por conta disso, esses órgãos recorriam ao governador da Província. Em julho de 1864, por exemplo, a Câmara Municipal enviou ao governo provincial um oficio que solicitava a concessão pública de uma passagem entre os arroios Castelhano e Sampaio, que ligava Taquari a Santo Amaro. Segundo as denúncias, num local denominado Passo da Cruz, no arroio Castelhano, ter- ceiros cobravam uma espécie de pedágio e impediam a livre circulação pela estrada. Essa cobran- ça indevida afligia a população de ervateiros e de colonos com custos onerosos e enfraquecia a autoridade do município sobre as terras públicas165.

Todos os casos analisados sugerem que os dispositivos impostos pela Lei de 1850, que pretendia regulamentar a questão das terras no Império, na prática, foram subvertidos pela elite fundiária rio-grandense, que utilizou de vários mecanismos, legais e ilegais, para tomar os terre- nos devolutos e, com isso, garantir o aumento de seus territórios. Esses apossamentos causaram inúmeros conflitos entre os órgãos públicos, as elites locais e a população menos privilegiada, em sua grande maioria, pequenos posseiros que sobreviviam da produção ervateira e da agricultura de subsistência. No entanto, não se pode atribuir a eclosão desses conflitos unicamente à sanção da lei de terras de 1850. Existia uma série de outros agentes que tornavam essa questão mais complexa. Como visto nos tópicos anteriores, ao longo do século XIX, ocorreu uma série de transformações econômicas e sociais que moldavam a sociedade oitocentista e, nesse sentido, a própria sanção da Lei foi parte desse processo de mudança. Além disso, como visto no capítulo 1, a erva-mate se tornou um produto de exportação e, com isso, atraiu um fluxo migratório para as regiões onde existia a planta. É provável que esse aumento demográfico também tenha contribuí- do para a eclosão das disputas territoriais. Diante disso, boa parte dos conflitos já existentes, so- mados a dubiedade da Lei de Terras e por não contar com a boa vontade das classes dominantes, e também não contar com o empenho do Estado em cumpri-la, não foram sanados. No caso das

165

RIO GRANDE DO SUL (Estado). Memorial do Rio Grande do Sul. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Correspondên- cia da Câmara Municipal de Taquari. N. 14. Maço 278, Lata 95, Cx 152, de 22 de julho de 1864.

regiões ervateiras, portanto, a sanção dessa lei, além de incitar novas disputas, também colaborou para a intensificação dos conflitos agrários antecedentes.

A partir de meados do século XIX, por conta da Lei, as terras começaram a ser mercanti- lizadas. Excepcionalmente, alguns caboclos conseguiram adquirir ou regulamentar suas terras. A grande beneficiária da Lei, entretanto, foi a elite local, integrada pelos grandes latifundiários, que puderam regulamentar e estender suas propriedades. Segundo José A. Morais de Nascimento, por exemplo, que estudou a intervenção do poder público no processo de apropriação da terra no nor- te do Rio Grande do Sul, após meados do século XIX, “os grandes proprietários se espalharam e incorporaram a maior parte dos ervais e das novas terras, o que obrigou os trabalhadores nacio- nais – por serem posseiros e não terem propriedade e nem condições financeiras de solicitá-las – a se subjugarem a elite latifundiária local166”. Esse processo de expropriação governamental e a subsequente apropriação latifundiária se tornou cada vez mais frequente a partir de 1860.

Muitos negociantes se estabeleceram próximo às áreas de exploração de erva- mate, onde estava concentrado um grande número de trabalhadores. Eles geral- mente possuíam uma casa de comércio e aceitavam a erva-mate produzida nos carijos próximos como moeda de troca para as suas mercadorias. Outros atua- vam diretamente no agenciamento do produto propiciando a acumulação de grandes fortunas aos negociantes167.

Esses novos proprietários, negociantes que simplesmente se apropriavam de áreas de er- vais de domínio público, utilizavam o trabalho dos caboclos, que ocupavam a região anteriormen- te, como mão-de-obra barata para trabalhar em seus recentes ervais particulares. Esse domínio foi importante para que a aristocracia garantisse a posse das novas terras. A tomada dessas áreas foi uma maneira de exercer o controle sobre os homens livres e pobres que nelas atuavam”168

e, além disso, criou “uma região de homens despossuídos, em meio à imensidão de terras, numa região com alta concentração fundiária”169

. A polarização das forças entre esses extratos sociais gerou um clima de belicosidade por interesses diversos, que se manifestou ao longo de distintos mo- mentos históricos. Em consonância com esses fatos, a próxima sessão analisa os reflexos sociais e econômicos decorrentes da colonização e dos apossamentos nas regiões ervateiras.

166

José Antônio Morais do Nascimento. Derrubando Florestas e plantando povoados: A intervenção do poder público no proces- so de apropriação da terra no norte do Rio grande do Sul. Porto Alegre. Puc. Tese de doutorado. 2007.

167

José Antônio Morais do Nascimento. Op.cit. p, 97 168

José Antônio Morais do Nascimento Op. Cit. p, 98 169