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A FORMAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO DO COMPLEXO

Dez anos após a independência do Brasil, o então Imperador Dom Pedro I renunciou ao trono em favor de seu filho Dom Pedro de Alcântara, de apenas cinco anos. Essa renúncia origi- nou uma situação provisória pois o herdeiro não tinha idade para exercer o poder. Enquanto o novo imperador não atingiu a maioridade, o Brasil foi governado por regentes e, por isso, esse ínterim ficou conhecido historicamente como período regencial. Apesar de sua curta duração (1831-40), ele foi extremamente conturbado e marcado por intensas disputas políticas e sociais. A elite brasileira estava dividida em relação à aceitação do projeto de unificação nacional. Essa dis- cordância suscitou pequenos motins e as conhecidas revoltas da Balaiada no Maranhão, da Sabi- nada na Bahia, da Juliana em Santa Catarina e da Farroupilha em São Pedro do Rio Grande do Sul, esta última de especial interesse para esse estudo.

A Província de São Pedro era uma dentre as várias peças do mosaico brasileiro que ain- da não se ajustava à nova estrutura do Estado Imperial e tentava mudá-la55.Uma parcela da elite Rio-grandense estava inconformada com a Constituição Centralizadora de 1824 e com o Ato Adicional de 1834, políticas administrativas tomadas pela capital, o Rio de Janeiro. Além dessas duas motivações, a Farroupilha estava correlacionada com a subordinação econômica da Provín- cia, que era obrigada a pagar altos impostos56. Entretanto, nem todos os charqueadores e os es- tancieiros adeririam a essa revolta. Muitos continuaram leais ao governo imperial e demonstra- ram, com isso, que as motivações para a revolução não foram somente econômicas, mas também políticas. Ficavam a cargo do poder imperial a indicação e a nomeação dos presidentes das pro- víncias. Isso descontentava parte da elite, uma vez que o presidente nomeado podia ir contra os interesses de parcelas da burguesia local.

Com o acirramento das tensões, em 1835, a parcela descontente dessa elite regional se revoltou contra o governo. Essa revolta, em 1836, evoluiu e ganhou caráter separatista com a

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István Jancsó; João Paulo G. Pimenta. Peças de um mosaico (ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira). In: Carlos MOTA (Org.), Viagem incompleta: a experiência brasileira (1500- 200): formação: histórias. São Paulo. Senac: 2000. p. 174.

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formação da República Rio-grandense, que se manteve por cerca de nove anos. Durante esse pe- ríodo, a produção e a comercialização da erva-mate, de acordo com os documentos oficiais57 re- digidos por Domingos José de Almeida, então ministro dos negócios e da fazenda, tornaram-se importante fonte de recursos do “Novo Estado”, que criou fábricas de mate para corroborar com a manutenção da máquina administrativa e com o financiamento do exército. Como exemplo disso, logo em abril de 1836, após a vitória na batalha de Rio Pardo, o governo republicano se apossou dos ervais daquela região e, com os Decreto de 11 de novembro de 1836 e 05 de abril de 1837, estabeleceu a criação de uma fábrica de erva-mate, sob a administração de João José de Azambu- ja, no município de Taquari, com o objetivo de angariar recursos para a guerra58. A Figura 1.4 apresenta um mapa que destaca a localização dessa fábrica.

Figura 1.4 – Mapa da localização das fábricas de erva-mate59.

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Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Anais. Porto Alegre. V.2. 1978. p, 344. (CV – 311). 58

Jornal o Povo. Piratini. nº. 14. 17 de out. 1838. p, 57 e 58. 59

Outra medida que alavancou o comércio do mate foi o decreto de 11 de setembro de 1837 (publicado no jornal em 20 de outubro de 1838), que estipulou a taxação de 20% sobre as importações das bebidas espirituosas (alcóolicas, provavelmente) e de 10% sobre os demais gêne- ros comercializados com os países do Rio da Prata. Entretanto, tal lei não se aplicava à importa- ção de materiais bélicos, à moeda estrangeira e aos livros. A referida lei também isentava a ex- portação do mate de qualquer tributação60. Essa medida protecionista possivelmente objetivava incentivar a extração e a exportação dela, especialmente para os mercados de Entre Ríos, Corri- entes e Buenos Aires61. Segundo os documentos oficiais, ao longo desse período de isenção tribu- tária, ocorreu um aumento substancial das exportações. Porém, quando a erva se estabeleceu nes- se mercado platino, o governo, publicou em 26 de março de 1839, o decreto sancionado em 20 de março do mesmo ano, que após a data de 20 de Abril de 1839, estavam revogadas todas as leis sancionadas anteriormente e por considerar o mate um “importante ramo da riqueza pública” san- cionou que toda a erva de produção nacional, exportada para outros países, seria taxada em 160 réis por arroba62. Essa nova legislação possivelmente contribuiu para a arrecadação dos cofres públicos e ajudou a custear as despesas da guerra.

Diante desse desenvolvimento do setor ervateiro, as relações sociais de trabalho se ade- quaram à conjuntura do período. Portanto, durante a Revolução Farroupilha, a mão-de-obra em- pregada nas fábricas de erva-mate foi exclusivamente escrava63. Em uma época em que a maioria dos homens livres disputava as batalhas, os trabalhadores cativos foram essenciais à manutenção do processo produtivo. Na fábrica de Taquari, por exemplo, cerca de 40 funcionários (escravos) eram os responsáveis pela colheita e pelo beneficiamento64. Devido ao sucesso desse empreendi- mento, as regiões dos Vales do Taquari e do Rio Pardo se tornaram o primeiro centro ervateiro da Província. Também no ano de 1836, a região do município de Cruz Alta se tornou o segundo cen- tro fornecedor de mate, com a construção de uma fábrica sob a administração do major Athana- gildo Pinto Martins65. No ano de 1840, Antônio Vicente da Fontoura informou ao ministro da fazenda sobre a contratação, em nome do estado, de duas fábricas de erva que, até agosto do

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Fábricas. Jornal O Povo. Piratini, nº 15, 20 out. 1838, p. 59. 61

Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Anais. Porto Alegre, V. 5. 1981, p, 37 (CV- 2811) 62

Jornal O Povo. Caçapava. P. 208, nº 51. Em 26 de março de 1839. 63

Jornal o Povo. Piratini. nº. 14. 17 de out. 1838. p, 57 e 58. 64

Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Anais. Porto Alegre.V2. 1978, p, 243 (CV-310). 65

Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Anais. Os Segredos do Jarau: Documentos sobre a Revolução Farroupilha. Porto Alegre. Edipurcs. 2009. V 18. (CV7781).

mesmo ano, deveriam render 4000 arrobas66. Contudo, nos documentos pesquisados, não foram encontradas maiores informações a respeito da organização e das forças produtivas dessas fábri- cas de Cruz Alta67.

De modo geral, durante a Farroupilha, a estimulação da produção ervateira ocorreu por- que a erva serviu como moeda de troca entre a República Rio-grandense e os Estados Nacionais vizinhos, especialmente o Uruguai e a Argentina. A República exportava, além da erva-mate, o charque, o couro e o rebanho bovino. Em contrapartida, ela recebia armas, pólvora, ferros, remé- dios, cavalos e tecidos, de acordo com a necessidade da população e das tropas. Esse comércio foi tão intenso que propiciou o crescimento econômico de algumas cidades uruguaias, como Sal- to, Montevidéu e Paissandu68. Em algumas correspondências oficiais do Governo Republicano, encontram-se relatos acerca dessas transações comerciais. Uma delas, redigida pelo ministro da fazenda do governo farroupilha, Domingo José de Almeida, exemplifica a importância comercial do mate como escambo.

Exmo. Amigo Sr. Matos.

Para consolidar-se o negócio feito por Behel com Guasch, a fim de não perder mais que as 1100 arrobas de ervas adiantadas, visto que fruto é quem há figura- do, e por isso poderá pegar algum petardo, vai ao Salto o Major Simão e como por ele tenho que responder a Munõs, e mesmo pedir a D. Nicanor Costa algu- mas fazendas, caso não venha as de Guasch, diga-me se igualmente devo fazer vir de Montevidéu a Tipografia, as 100 arrobas de pólvora e 200 de chumbo en- comendadas, os remédios que se acham prontos como diz, e alguma coisa mais que convier, pois apesar de precisarmos de tudo, nosso estado atual parece acon- selhar a suspensão de tais artigos pelo risco da viagem e de sua conservação em qualquer ponto da República, se bem sejam da primeira necessidade. (....)

(a) Almeida69

Nessa sociedade, além da importância econômica, a erva-mate também esteve ligada às questões culturais e sociais, a erva-mate estava presente nos símbolos oficiais, como no brasão

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Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Anais. Porto Alegre. 1984. V.8 (CV 4816). 67

Parte dessas informações foram pesquisadas no jornal O Povo. Esse jornal nasceu em 1838 e “morreu” em 1840. Esse periódico foi criado para fins políticos, econômicos, literários e ministeriais da República Rio-Grandense. Considerado o periódico oficial da jovem República, sua principal função foi servir como meio para a publicação das correspondências oficiais das secretarias do Estado (fazenda, agricultura, interior...), os decretos assinados no contexto da Revolução Farroupilha e as Correspondências ofici- ais entre os generais e comandantes da força do exército Republicanos. Há 160 exemplares, dos quais 45 foram publicadas no município de Piratini e os demais (115) publicados em Caçapava, município que também sediou o palácio do governo Farroupilha no ano de 1839.

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Moacyr Flores. Op. Cit. p, 159 69

das armas70. Além desse uso, ela enfeitava as vestimentas, os lenços e demais acessórios utiliza- dos por homens e mulheres. Ela também era considerada como gênero de primeira necessidade para as tropas do exército farroupilha. Nos Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul onde foram publicados documentos da Coleção Varela71, encontram-se várias correspondências entre os órgãos superiores do exército, nas quais solicitavam mantimentos às suas tropas. Entre esses víveres normalmente o mate era frequente72. Em maio de 1840, os Republicanos perderam, para os Imperiais, o domínio do território de Taquari e de Rio Pardo e, com isso, o controle da fábrica de erva-mate instalada nessa região. Para tentar suprir parte desse prejuízo e continuar o fornecimento para o exército, uma nova fábrica foi construída no município de Caçapava. Porém, dos 40 cativos que trabalhavam anteriormente, a nova instalação empregava de início somente quatro escravos73, doação de José de Almeida74.

À medida que o conflito se prolongou, e especialmente a partir de 1841, a República Rio-grandense enfrentou crises de abastecimento e carência de homens para incorporar as tropas do exército. Para suprir a falta de mantimentos, ela enviava soldados para intermediar transações comerciais. Por exemplo, no dia 11 de julho de 1841, em Cruz Alta, o Tenente Coronel farroupi- lha, Francisco Pedro de Abreu, comprou do comerciante Miller cinco carretas com sal, farinha de trigo, 180 arrobas de erva-mate e 100 alqueires de farinha de mandioca. No caso dessa transação, o exército farroupilha teve dificuldades para transportar a referida carga devido a um cerco reali- zado pelo exército Imperial na região de Taquari e de Rio Pardo75. Um segundo e último exemplo dessas transações que envolveram o exército ocorreu em julho de 1841. O Capitão João Antônio Dutra comprou do comerciante Antônio José Dias, para o Corpo dos Lanceiros Negros,76 nove arrobas de erva-mate no valor de 43$200 Rs. Além desta, nessa ocasião, também foram compra-

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Barbosa Lessa, Op. Cit. p. 36 71

A Coleção Varela possui aproximadamente treze mil documentos que vem sendo publicados nos Anais do Arquivo Histórico do RS desde 1978. Essa coleção teve origem nos documentos reunidos pelo historiador Domingos José de Almeida (dirigente da República Rio-grandense) e posteriormente acrescidos aos documentos de Alfredo Varela. A produção de tais documentos teve início durante o decênio da Revolução Farroupilha, sendo assim, uma fonte documental relevante à essa Pesquisa. Para saber mais sobre a história da Coleção Varela Ver: ARCE, Ana Ines, Os verendos restos da sublime geração farroupilha, que andei a recolher de entre o pó das idades: Uma história arquivística da Coleção Varela. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Trabalho de conclusão de curso. 2011.

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Exemplos dessas solicitações podem ser encontrados nos seguintes documentos: Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Anais. Porto Alegre, (CV-3358); Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Anais. Porto Alegre, 1978. p, 57, (CV-60); Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Anais. Porto Alegre, (CV- 7997); Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Anais. Porto Alegre, (CV-7782)

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Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Anais. Porto Alegre, V. 3, 1978. p, 360 (CV – 1401). 74

Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Anais. Porto Alegre, V.3, 1978. p, 360 (CV – 1401) 75

Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Anais. Porto Alegre, V.2 .1978, p, 61 (CV – 68) 76

O Corpo dos Lanceiros Negros era formado por escravos que foram incorporados ao exército Farroupilha com a promessa de liberdade após o término da guerra.

das roupas para dois dos soldados, que estavam nus77. Através do relato dessa compra nota-se as conturbadas condições em que se encontravam os negros do exército farroupilha e também nota- se, de certo modo, as dificuldades enfrentadas pelos Republicanos, que desde 1840 sofriam com as retaliações imperiais. A partir de 1842, as ações do exército Imperial foram incisivas contra os Farroupilhas, que, já sem condições econômicas para continuar o conflito, acordaram e assinaram um tratado de paz em março de 1845.

A Revolução Farroupilha foi o conflito de maior duração ocorrido no Brasil Império – 10 anos. Uma hipótese é que esse prolongamento só foi possível devido às políticas administrati- vas da República, tais como a construção dos dois centros ervateiros mencionados, o de Cruz Alta e o dos vales do Taquari e do Rio Pardo. Neles produzia-se a erva-mate destinada à exporta- ção, que contribuiu com as divisas e com as mercadorias para a sustentação da guerra por esse longo tempo. Além disso, as medidas governamentais, durante o conflito, corroboraram com a expansão e consolidação desse produto no mercado platino. O fomento à exportação de erva tam- bém incentivou uma parcela da população, nativa e despossuída de bens materiais, a migrarem às regiões ervateiras e a se dedicarem quase que exclusivamente ao seu extrativismo e à sua fabrica- ção. Na segunda metade do século XIX, essa parcela da população foi a grande massa trabalhado- ra dos ervais e, nestes, também desenvolveu uma agricultura de subsistência consorciada à extra- ção do mate. Todos esses elementos retratados, com o passar dos anos, constituíram parte do “complexo ervateiro”. Por fim, essa mesma população foi protagonista dos conflitos territoriais nas áreas de ervais, em consequência da Lei de Terras de 1850, desdobramentos trabalhados em detalhe ao longo dos próximos capítulos.