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A especificidade dos direitos fundamentais para a interpretação

CAPÍTULO II: ASPECTOS ESSENCIAIS DA TEORIA DOS DIREITOS

2.8. Interpretação dos direitos fundamentais

2.8.2. A especificidade dos direitos fundamentais para a interpretação

Em relação às normas de Direito Constitucional, há uma constante impugnação doutrinária quanto ao emprego de métodos de interpretação tradicionais, de feição lógico- dedutiva, na tarefa de apreensão do sentido e alcance normativos a que se tem denominado de “método jurídico”. Tal método está normalmente amparado com exclusividade em normas escritas, sem levar em consideração os valores que elas transportam e ainda as situações de

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GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do direito. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 63.

192

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1987. p. 364 – 369, passim. 193

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Aplicabilidade e Interpretação das Normas Constitucionais. In:

Interpretação e Estudos da Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 1990. p. 14.

194

Hans Georg. Gadamer. Wahrkeit und Methode. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1975, p. 291, apud TORRES, Ricardo Lobo. Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário. 3.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 30/31.

fato para as quais está condicionada a sua incidência. Esse nível de contestação, porém, ganha maior dimensão quando o foco passa a ser a interpretação dos direitos fundamentais.195

A estrutura das normas de direitos fundamentais, em contrário à maioria das regras de direito privado, não possui regulação completa, detalhada, mas se conforma por princípios mais ou menos abstratos, com freqüente recurso a conceitos indeterminados, além de refletir programas de fins, ou seja, diretivas que fixam poucas indicações sobre os meios de concretização, levando a que a interpretação não represente a procura de uma vontade preexistente, mas em verdade signifique a resolução de problema normativo.196

Demais, as normas consagram valores básicos da comunidade que são reflexos de uma história de idéias filosóficas, políticas e de embates sociais que encampam posições às vezes contrapostas. Daí que para concretização e harmonização de seus preceitos haja a necessidade de recurso a considerações políticas, sociológicas e históricas e também a dados culturais e princípios de valor comunitário, isto é, “exigem que a descoberta das soluções jurídicas se efetue no contexto sociológico e espiritual e no momento em que as normas são aplicadas”.197

Essa especificidade constante nas normas de direitos fundamentais provoca uma acirrada discussão teórica que busca superar as dificuldades do método hermenêutico clássico na tarefa interpretativa. Segundo esse método, a Constituição deve ser interpretada da mesma forma que uma lei, aplicando-se os critérios desenvolvidos por Savigny, de interpretação sistemática, histórica, lógica e gramatical,198 já outros métodos procuram enfatizar essa insuficiência, oferecendo diferentes caminhos para o norte interpretativo, como é o caso do método orientado ao problema (tópico); da interpretação axiológica dos direitos fundamentais e da hermenêutica-concretizadora.

195

VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos Vieira de Andrade. Os direitos fundamentais na Constituição

Portuguesa de 1976. Coimbra: Livraria Almedina, 1998. p. 118, passim.

196

VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos Vieira de Andrade. Os direitos fundamentais na Constituição

Portuguesa de 1976. Coimbra: Livraria Almedina, 1998. p. 120/122, passim.

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VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos Vieira de Andrade. Os direitos fundamentais na Constituição

Portuguesa de 1976. Coimbra: Livraria Almedina, 1998. p. 122.

198

BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. Los métodos de la interpretación constitucional – inventario y critica. In:

Escritos sobre Derechos Fundamentales. Trad. De Igmnacio Villaverde Menéndez. Baden – Baden:

O método tópico-problemático pressupõe um processo aberto de argumentação entre os participantes com a finalidade de adequar a norma constitucional a um problema concreto, numa visualização a partir do problema e com a utilização de tópoi, pontos de vista, sujeitos à prova das opiniões contrárias e a favor, que afinal conduzirão à solução do caso pela interpretação mais adequada ou conveniente, diante das possibilidades derivadas da polissemia de sentido dos textos.199

No denominado método científico-espiritual, a interpretação deve observar as bases de valoração da Constituição, os valores primários e superiores do ordenamento estatal, a exemplo dos direitos fundamentais, importando em que o sentido e a realidade da Constituição passam a constituir elemento do processo de concretização.200 “O intérprete constitucional deve prender-se sempre à realidade da vida, à ‘concretude’ da existência, compreendida esta sobretudo pelo que tem de espiritual, enquanto processo unitário e renovador da própria realidade, submetida à lei de sua integração”.201

K. Hesse, a quem se atribui a teorização fundamental quanto ao método hermenêutico concretizador, trata da interpretação constitucional num sentido estrito para afirmar que ela torna-se necessária quando existe uma questão jurídica constitucional a ser respondida e que não encontra resposta unívoca a partir da própria Constituição. Segundo pensa, para compreensão da Constituição moderna, a interpretação constitucional não pode utilizar como sustentação apenas a averiguação de uma “vontade” objetiva ou subjetiva disposta na Constituição, notadamente naqueles casos em que o texto não fornece critérios unívocos para a decisão, onde se faz necessária a interpretação constitucional, pois a Constituição ou o legislador constituinte na verdade não promoveram desde logo uma decisão, mas fixaram diretrizes de maior ou menor porte para a decisão. Assim, a interpretação constitucional importa em concretização do conteúdo da Constituição onde não houve fixação de critério unívoco para decisão de questão jurídica, devendo ser preenchido com referência na “realidade” a ser regulada, o que nesse aspecto faz revelar um caráter de criação. O procedimento de concretização da norma constitucional envolve a “vinculação da

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CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4.ed. Coimbra: Almedina, 1997. p. 1175.

200

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4.ed. Coimbra: Almedina., 1997. p. 1177, passim.

interpretação à norma a ser concretizada”, a “pré-compreensão do intérprete” e o “problema concreto a ser resolvido”.202

A metódica jurídica normativo-estruturante parte da concepção de que não há identidade entre o texto da Constituição e a norma, embora aquele seja elemento primário para o passo inicial da tarefa hermenêutica realizada pela mediação que atribui significado aos enunciados lingüísticos, com atenção a elementos de concretização referentes ao caso a resolver. Constituem elementos da norma o programa normativo e o domínio normativo. O primeiro elemento, o programa normativo, configura o resultado parcial de concretização voltado para a interpretação do texto, considerando a sua introdução no sistema, a genética, a história, a teleologia, além da função pragmática na dimensão comunicativa que remete para uma realidade exterior ao texto. O segundo elemento, o domínio normativo, reflete um segundo processo parcial de concretização focado na análise de dados da realidade, recortados no texto normativo, de teor econômico, sociológico, ou de outro matiz, que se orienta de acordo com a determinação do texto, seja em menor grau quando o imperativo lingüístico é de alta determinação (prazos, normas de organização), ou de menor determinação nas hipóteses de conceitos vagos e envios para critérios não-jurídicos (setores básicos da economia, dignidade humana). Como resultado da mediação do conteúdo lingüístico do texto constitucional e da seleção dos dados reais componentes do universo exterior, abrangidos pelo programa da norma, se tem uma primeira versão de norma jurídica no nível de regra geral e abstrata. O processo de concretização só se completa quando se decide um caso jurídico mediante a criação de uma disciplina regulamentadora (concretização legislativa); pela sentença ou decisão judicial (concretização judicial) e pela prática de atos individuais das autoridades (concretização administrativa), que é quando uma norma jurídica adquire verdadeira normatividade.203

Böckenförde apresenta a crítica de que todos os métodos interpretativos tratados produzem como resultado a degradação da normatividade constitucional, salvo talvez a metódica normativo-estruturante de F. Müller. O ponto de partida é a indeterminação material das normas constitucionais, porém, esses métodos de interpretação não limitam essa

202

HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Trad. de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1988. p. 53, 57, 61 e 63, passim.

203

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4.ed. Coimbra: Almedina, 1997. p. 1178-1186, passim.

indeterminação; ao contrário, as intensificam com um desenvolvimento casuístico da Constituição.204

Não obstante a crítica exposta aos métodos hermenêuticos, pensamos que a indeterminação da norma, em nível abstrato, faz parte do direito e especialmente da parcela que trata dos direitos fundamentais, não havendo método de interpretação ou recurso à teoria da Constituição que elimine esse aspecto em maior ou menor medida. Em verdade, o nível abstrato em que se colocam as normas e o contato necessário com a realidade para qual está direcionada, impõe sempre uma mediação que se opera pela interpretação e aplicação fornecida pelos órgãos competentes e que caminha para um pluralismo metodológico ao atribuir-se relevância ao texto da norma, aos valores que expressa e à relação com o caso em decisão.

Assim, apesar da abertura e indeterminação das normas escritas que asseguram os direitos e garantias fundamentais, elas configuram o ponto de partida e a base para a descoberta das soluções jurídicas. É que o programa normativo expresso no texto constitucional torna insuficiente o método tradicional de interpretação, porque o processo de concretização implica permissão de uma atividade criadora do intérprete que, para obter uma

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Para este autor os métodos partem da atribuição da Constituição com função de lei, de modo a que dela podem ser resolvidos casos jurídicos concretos. Assim, a necessidade de criar solução jurídica para o problema concreto a partir da Constituição forma o conceito base para o problema da interpretação, visto que a maioria das normas constitucionais possui insuficiente estrutura normativa para essa finalidade. Daí que as novas vias de interpretação tencionam remediar a situação e assegurar essa pressuposta função de lei da Constituição com o reconhecimento de uma atividade concretizadora onde cabível a complementação e criação do direito, excedendo o sentido comum e tradicional da interpretação. Defende a tese, em seqüência, de que existe uma conexão entre o método de interpretação constitucional e a teoria ou conceito de Constituição que lhe serve de base. Em face disso, uma discussão metodológica sobre interpretação constitucional também é ao mesmo tempo uma discussão sobre o conceito de Constituição e não pode ser desligada disso. De outro lado, esclarece que para um fortalecimento ou recuperação da normatividade da Constituição o ponto decisivo não está na meditação metodológica dos passos interpretativos, por mais importantes que sejam, mas radica na orientação da interpretação para um conceito de Constituição ou mais exatamente para uma teoria da constituição que seja capaz de consignar a linha orientadora e pontos estruturais para a interpretação. Essa teoria da Constituição de caráter vinculante não pode fazer parte de uma pré-compreensão subjetiva ou de um consenso político, pois deve estar contida explícita ou implicitamente na Constituição com extração de seu texto e de sua gênese. BÖCKENFÖRDE, Ernst Wolfgang. Los métodos de la interpretación constitucional – inventario y critica. In: Escritos sobre Derechos Fundamentales. Trad. de Igmnacio Villaverde Menéndez. Baden – Baden: Nomos Verlagsgesellschaft. p. 36/7/8.

Parece-nos que Böckenförde com a exigência de que a interpretação esteja atrelada a um conceito de Constituição, busca estabelecer uma ligação formal com o texto e uma ligação material atrelada à gênese, demonstrando preocupação especial com os métodos tópicos e de valor, na medida em que identifica uma degradação da normatividade movida pelo subjetivismo ou pelo consenso exigidos no ato de concretização. Chega a interrogar, inclusive, se não seria uma sobrecarga para a Constituição entendê-la pela função de lei da qual se extrairia normas de decisão e também se não seria de retornar a competência em matéria de direitos fundamentais apenas para o poder legislativo ao invés da concorrência com o poder judicial. Com a vinculação da interpretação à teoria da Constituição, ao que indica, o autor tenta introduzir uma forma maior de controle do ato interpretativo pelo seu ponto de partida que não existiria nos métodos que critica.

norma de decisão do caso, faz uso de princípios gerais que explicitam valores ou de elementos da realidade jurídica, política, econômica e social.205

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