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CAPÍTULO III: DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS CONTRIBUINTES COMO

3.7. Direitos de liberdade

3.7.1. Imunidade recíproca

A Constituição, inaugurando a proteção das liberdades no sentido adotado neste trabalho, descreve que é "vedado à União, Estados, Distrito Federal e Municípios, instituir impostos sobre patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros".516

A restrição à atuação do poder tributário tem raízes na jurisprudência americana que foi transposta para o constitucionalismo brasileiro. O tema está ligado à tributação dos títulos da dívida pública e vencimentos dos servidores públicos, tópico em que fizemos referência a uma breve evolução histórica. O fato é que a discussão originou-se nos Estados Unidos por causa do choque de competências entre União e Estados, na tributação de entes públicos, onde, numa primeira via, se concedeu interpretação ampliativa da proteção da União, chegando até a impedir a tributação de rendimentos de servidores públicos, sendo depois restringida para alcançar apenas aquelas atividades essencialmente ligadas aos entes públicos.

Aliomar Baleeiro alerta que se tenha cuidado na transposição para o Brasil da experiência americana, em razão da diferença de regimes jurídicos, dentre outros argumentos, pela autonomia concedida aos Municípios em nossa Federação e rígida discriminação de receitas criadas para eliminar ao máximo o choque de competências entre as entidades

515

Como é o caso da alíquota de ICMS na ordem de 7%, quando a mercadoria for enviada de Estados da Região Sudeste para o Nordeste. O contribuinte que adquire a mercadoria se credita dos 7% e, quando vender, vai debitar-se em 17%. A diferença de 10% ficará no Estado destinatário ou consumidor.

tributantes, que lá não existiriam.517 De fato, em nosso direito, a discriminação constitucional das competências tributárias reduz acentuadamente o atrito, deixando margem para controvérsias apenas quanto ao alcance da proteção na interpretação dos limites objetivos traçados.

A imunidade recíproca é de ordem subjetiva, tendo por finalidade a proteção de determinadas pessoas políticas, a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios, suas respectivas autarquias e fundações mantidas pelo poder público, contra a imposição de impostos sobre o patrimônio, rendas ou serviços, de forma recíproca, o que significa dizer que os entes políticos não podem estabelecer esses impostos entre si. Restringe-se, entretanto, a tais organismos de natureza intrínseca do poder público, sem extensões para outras instrumentalidades como as concessionárias de serviços públicos, sociedades de economia mista e empresas públicas.

Para delimitar o alcance da imunidade, a Constituição estabelece alguns aspectos objetivos pela referência a imposto, não tributos em geral, e, mais especificamente, a impostos sobre patrimônio, rendas ou serviços. Depois vincula a vedação às finalidades essenciais dos organismos públicos subjetivamente protegidos.

A imunidade visa preservar a eficiência do serviço público, a harmonização da Federação e a liberdade individual, na medida em que esta seria se o equilíbrio federativo fosse desfeito pelas incidências fiscais mútuas dos diversos entes públicos.518

A doutrina também tem buscado justificar a imunidade recíproca em bases diferentes, como a isonomia política dos entes políticos519 e a ausência de capacidade contributiva de tais organismos estatais. Nesse último caso acentua-se que o fato gerador do imposto consiste numa atividade ou situação de natureza econômica que revele capacidade contributiva para fazer face aos gastos públicos. Sendo assim, as atividades das entidades

517

BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 241/242.

518

TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário. (Os direitos humanos e a tributação: imunidades e isonomia). Rio de Janeiro: Renovar, v. 3, 1999. p. 222-224, passim. É também um direito que decorre do regime e dos princípios adotados pela Constituição.

519

DERZI, Misabel. In: BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar . 7.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 295.

públicas em regra não representam capacidade contributiva, já que se direcionam para finalidades públicas, salvo quando equiparáveis normativamente às atividades privadas. 520

Apesar da referência literal do texto da Constituição,521 sobressai questionamento quanto à extensão da imunidade para tributos e não apenas a impostos nos ditames previstos. Paulo de Barros defende a compatibilidade da imunidade recíproca para a sistemática das taxas e contribuições de melhoria, ao citar exemplos do próprio texto constitucional que se referem às taxas (art. 5º, XXXIV, a e b) e a Contribuições para a Seguridade Social (art. 195, § 7°).522

Por outra face, quem liga as imunidades aos direitos fundamentais defende que o preceito engloba exclusivamente os impostos e seus adicionais, pois os demais não ofendem a liberdade individual.523

Outro problema que invoca a vedação constitucional atine com a definição do que sejam impostos sobre patrimônio, rendas ou serviços. Um primeiro indicativo advém de classificação operada pelo Código Tributário Nacional, outro de posições judiciais que têm fornecido interpretação mais ampla com base na dicção constitucional.

A diretriz que advém do Código Tributário Nacional é que, no conceito de impostos sobre o patrimônio, estão inseridos o Imposto sobre a propriedade territorial rural - ITR, o Imposto sobre transmissão inter vivos de bens imóveis - ITBI, o Imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana - IPTU e o Imposto sobre Transmissão causa mortis e doações de quaisquer bens ou direitos - ITCD; no conceito de renda está o Imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza – IR e no conceito de serviços encontra-se o Imposto sobre serviços de qualquer natureza – ISS.524

Há algum tempo atrás o judiciário enfrentou controvérsia que envolveu a discussão sobre a aplicação da imunidade recíproca em relação ao Imposto sobre operações financeiras – IOF, que, no Código Tributário Nacional, consta na classificação de imposto sobre a produção e circulação.

520

JARACH, Dino. O fato imponível. Tradução de Dejalma de Campos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989. p. 178/179.

521

Art. 150, VI, da Constituição Federal. 522

CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 13.ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 176. 523

TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário. (Os direitos humanos e a tributação: imunidades e isonomia). Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 229.

Tratou-se da exigência do IOF motivada por aplicações no mercado financeiro. As interpretações esposadas nas decisões judiciais seguiram duas correntes diversas: uma, empregando interpretação restritiva para entender que a imunidade não se aplica em face da classificação contida no Código Tributário Nacional que não comporta o IOF entre impostos sobre o patrimônio, mas circulação e produção, e assumindo o diploma normativo a condição de lei ordinária com estatura de lei complementar, estaria a regular limitação ao poder de tributar, tarefa que lhe compete por força do art. 146, II, da Constituição Federal;525 e outra corrente que aludiu a uma interpretação extensiva do conceito de patrimônio e renda para entender que o rendimento decorrente de operação no mercado financeiro por ente dotado de imunidade subjetiva, inclui-se no conceito de renda526 e que a proteção contra os efeitos da inflação buscada nas aplicações reverte de forma vinculada às “atividades essenciais” do órgão público.527

De forma mais incisiva, o Supremo Tribunal Federal, em julgamento que enfrentou a incidência do ICMS na importação de bem por instituição de educação sem fins lucrativos, proclamou que “não cabe invocar, para o fim de ser restringida a aplicação da imunidade, critérios de classificação dos impostos adotados por normas infraconstitucionais, mesmo porque não é adequado distinguir entre bens e patrimônio, dado que este se constitui do conjunto daqueles. O que cumpre perquirir, portanto, é se o bem adquirido, no mercado interno ou externo, integra o patrimônio da entidade abrangida pela imunidade”.528 O Supremo concedeu interpretação extensiva do conceito de patrimônio contido na Constituição.

A extensão interpretativa citada oferece argumentos não apenas para o problema da definição dos conceitos de patrimônio e renda, mas também para o que se reporta à aplicação da imunidade recíproca em relação aos impostos indiretos, a exemplo do ICMS e do IPI, o que consiste em verificar se eles atingem o patrimônio dos entes políticos.

Diante desse quadro, colocam-se duas posições. A primeira na vertente de que a imunidade aplica-se aos impostos indiretos. É como defendia Aliomar Baleeiro ao argumentar, em linhas gerais, que na hipótese da imunidade recíproca o importante é

525

Nesse sentido: Ac. Un. a 1ª T. do TRF DA 5ª R. – AMS 2625-CE – Rel. Juiz Manoel Erhardt – j. 12.3.92, in RJIOB 1/5120 E Ac. da 1ª T. do TRF DA 5ª R. – MV – ac 9680-RN – Rel. Juiz Castro Meira – j. 29.8.91, in RJIOB 1/4558.

526

Ac. Un. a 2ª T. do TRF DA 5ª R. AMS 4233-PE – Rel. Juiz Araken Mariz – J. 29.10.91, in RJIOB 1/4884. 527

Ac. Un. a 1ª T. do TRF DA 2ª R. AMS 91.12.18523 –7/ES, in RJIOB 1/5509.

identificar quem vai ter o patrimônio mutilado pelo imposto, mesmo na condição de contribuinte de fato. Essa figura não é estranha à relação jurídica fiscal, pois a realidade econômica pode ser oposta à forma jurídica. Como referência normativa, aponta a situação da repetição do indébito em que o encargo financeiro é transferido para terceiro (art. 166 do Código Tributário Nacional); a incidência do imposto de transmissão pelo compromitente comprador de imóvel pertencente à entidade pública529 e a imposição da incidência de ICMS na venda de mercadorias a particulares por órgão público que visa atingir o adquirente. 530

Noutra vertente, colhe-se entendimento pela inaplicabilidade da imunidade com referência à Súmula n.º 591 do STF: “A imunidade ou a isenção tributária do comprador não se estende ao produtor, contribuinte do imposto sobre produtos industrializados”.531

Em verdade, a interpretação da imunidade impõe que ela “não aproveite a particulares, mas apenas pessoas jurídicas de direito público, no exercício de suas atividades essenciais”.532 Esse reflexo já vem da evolução da jurisprudência americana onde teve origem.

Embora se cuide de uma questão de difícil deslinde, nos parece que uma proposta razoável seria a de admitir a aplicação da imunidade na hipótese em que o ICMS incide diretamente contra o consumidor final e este figura no pólo passivo, na condição de contribuinte direto ou de direito, como no exemplo da importação acatada na decisão do Supremo Tribunal Federal,533 onde a entidade beneficiada suporta o encargo financeiro do tributo sob os pontos de vista econômico e jurídico.

Por outro lado, a inaplicação da norma imunizante se daria nos casos de aquisição de mercadorias em operações internas e interestaduais, nas quais o ente detentor da imunidade assumiria a condição de contribuinte de fato ou indireto, a sofrer a carga tributária apenas por repercussão econômica. Entendimento, inclusive, que compatibiliza a concepção que a doutrina majoritária vem imprimindo quanto à repetição do indébito nos tributos indiretos, ao

529

Art. 19, § 1º, da Constituição Federal de 1969. Equivalente ao art. 150, § 3º, in fine, da Constituição Federal de 1988.

530

BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 285 - 288.

531

TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário. (Os direitos humanos e a tributação: imunidades e isonomia). Rio de Janeiro: Renovar, v. 3, 1999. p. 233.

532

DERZI, Misabel. In: BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar . 7.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 301.

conceder relevância apenas para a transferência jurídica do encargo financeiro e não para a meramente econômica.534

Outro foco de controvérsias diz respeito ao significado das “finalidades essenciais” que se exige por força de norma constitucional topograficamente relacionada às autarquias e fundações mantidas pelo poder público (art. 150, § 2º) e que também se pode inferir das exceções formalmente colocadas no texto constitucional (art. 150, § 3º).

Com relação aos serviços, o Código Tributário Nacional procura delimitar o conceito para enfatizar que são aqueles diretamente relacionados com os objetivos institucionais das entidades, expostos nos estatutos ou atos constitutivos.535 Nessa temática, o Supremo Tribunal Federal enfrentou questão em que entidade de assistência social (hospital) explorava estacionamento de veículos em seu pátio interno e estava sendo exigido o pagamento do ISS, sob o argumento de que a atividade remunerada não constituía finalidade essencial do ente protegido constitucionalmente e que, por isso, haveria incidência do imposto. A interpretação foi no sentido de que a renda obtida é aproveitada nas finalidades essenciais da entidade e estão amparadas pela imunidade.536 Mais uma vez o Supremo direciona a interpretação das imunidades para uma linha de ampliação.

A imunidade recíproca, assim, protege as entidades públicas contra impostos sobre patrimônio, rendas ou serviços, sendo que a definição sobre tais categorias de impostos deve ser aferida da própria Constituição e não da classificação operada pelo Código Tributário Nacional.

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