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Poder de tributar, dever de contribuir e natureza da relação entre Estado e

CAPÍTULO I: FUNDAMENTOS DO PODER DE TRIBUTAR

1.4. Poder de tributar, dever de contribuir e natureza da relação entre Estado e

Faremos, neste passo, uma análise crítica das teorias parcialmente expostas, procurando, na medida do possível, colocá-las em confronto com o direito positivo brasileiro e com as figuras tributárias do nosso sistema.

De logo, é preciso deixar claro que as teses reproduzidas foram forjadas no direito estrangeiro e que, embora tenham conotação generalizante em muitas situações, noutras representam interpretação de normas precisas e próprias do ordenamento dos países de seus signatários.

Fixados esses esclarecimentos, começamos por constatar que o poder de tributar constitui uma manifestação do poder político que visa ao financiamento das atividades do Estado e expressa a soberania no sentido de que esse poder não está sujeito a outro que lhe é superior, embora seja passível de controle. Com foco no Estado de Direito que se instala no Brasil, parece ingressar com certa facilidade a concepção do poder de tributar como poder normativo do Estado e tem sido essa a posição mais difundida na versão de inexistência propriamente de um poder, mas sim de uma competência legislativa em matéria tributária.

Pensamos, contudo, que não há como negar o fenômeno do poder político, de onde se extrai o poder tributário que se manifesta na soberania exercida perante os que estão sob o seu domínio. A particularidade que detém a nossa Constituição Federal de estabelecer detalhadamente a competência para instituição de tributos e distribuí-la entre os entes de

direito público interno não invalida e nem elimina a parcela de poder que existe na criação de tributo. As razões são várias, mas cabe consignar algumas. Não obstante exista limitação para atuação do poder, não há deixar de considerar que implica decisão política do órgão competente, por exemplo: a) a criação de imposto ou contribuição na competência residual; b) a criação do tributo taxa que não está previamente delimitado para alguns fatos geradores listados textualmente; c) a majoração ou redução de tributos, especialmente de impostos; d) a criação de imposto novo ou contribuição diretamente pela Constituição, etc.

Reconhecida a existência do poder político, entendemos que ganha espaço a posição voltada para a concepção de poder tributário vinculado juridicamente.73 Recepcionamos essa vinculação como a que se relaciona ao direito positivo para defender que a sede do poder de tributar é a Constituição, assim como que esta também constitui a fonte dos direitos fundamentais. Significa uma espécie de ampliação da teoria da causa que tem o seu enfoque principal na capacidade contributiva, no instante em que a limitação abrange os demais princípios que foram declarados no texto constitucional como fundamentais.

Concebemos ainda que a mudança da relação de poder pautada na soberania para poder normativo do Estado faz acentuar o princípio da legalidade da tributação, que já existia na formulação de consentimento, mas não acresce critérios materiais de proteção para o contribuinte. Esses só aparecem com uma concepção material ligada à exigência de capacidade contributiva e mais adiante com os direitos fundamentais como limite.

No pertinente à natureza da imposição tributária, temos que as teorias contraprestacionais procuram vincular, da forma mais equânime possível, o pagamento do tributo com a contrapartida em serviços públicos por parte do Estado. Apesar de não ser adequada para justificar a generalidade dos tributos existentes em nosso sistema tributário, guarda pertinência com alguns deles, a exemplo da Taxa e da Contribuição de Melhoria, cuja justificação se dá em nome de um benefício ofertado em contrapartida ao tributo. Por outro

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Quanto ao poder, acreditamos com Dallari, que “assim como não se pode admiti-lo como estritamente político, não há também como sustentar que seja exclusivamente jurídico”. Sugere o autor, como forma de conciliar essa aparente contradição, a aceitação da existência de graus de juridicidade, teoria defendida por Edmond Picard, que implica evolução do direito, desde o estado potencial até o estado positivo variável. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 113.

ângulo, o imposto não está referenciado a uma prestação estatal e assim enquadra-se dentro de um dever geral de contribuir que coloca em foco não a contraprestação, mas a capacidade econômica para participar dos gastos públicos. A inexistência de contraprestação, no entanto, leva também a aproximar a justificação desse tributo de um vínculo de soberania por supremacia de fato, de mera sujeição, mesmo que juridicamente controlada.74

Com efeito, para justificar o pagamento de impostos, pensamos que guarda pertinência com o nosso sistema a teorização de dever fundamental. O dever de contribuir representa uma situação jurídica passiva decorrente do poder de tributar, juridicamente controlado, que está lastreado num Estado Fiscal que tem sua principal fonte de receita nos tributos e se apóia na liberdade de atividade econômica e no direito de propriedade, servindo esses direitos, por excelência, de limitação ao poder tributário. Esse dever não se acha definido expressamente na Constituição, mas consta implicitamente nas normas que detalham o Sistema Tributário nacional.

Ponderamos antes que o poder de tributar decorre do poder político e está juridicamente vinculado. Quando se coloca o foco na relação que se estabelece entre o Estado e o contribuinte, depois de criado o tributo, essa posição se mostra acentuada pelo elevado grau de juridicização que acompanha a discriminação da obrigação tributária em nosso ordenamento, o que a destaca como uma relação jurídica. Ambos os sujeitos da relação, Estado e contribuinte, estão limitados pelas regras de direito previamente estabelecidas, tendo como ponto central o fato gerador, expressamente consignado na lei que substitui a vontade das partes e observa o modelo obrigacional civil.

Saindo da feição estática da relação de tributação e passando para a dinâmica, é de se reconhecer que, apesar de boa parte dos deveres tributários instrumentais estar prevista na lei, ela própria denota a desigualdade existente na relação do Estado com os contribuintes, atribuindo poderes ampliados de atuação administrativa, inclusive para aplicar sanção, além de deixar espaço aberto para o poder geral não previamente delimitado da administração, ou seja, aquele em que apenas se apresenta o princípio da legalidade relativa pela preeminência

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As Contribuições, por constituírem espécie diferenciada de tributos, não estão sendo diretamente consideradas nas análises, mesmo que não se dispense a aplicação de alguns dos conceitos adotados. Deixaremos, para um próximo trabalho, o estudo das contribuições e suas respectivas justificações.

de lei, mas não por delimitação de toda atuação da administração. Acrescendo-se ainda a atuação da administração na concretização dos conceitos indeterminados tão presentes na área administrativa e que faz surgir decisões que expressam nítida desigualdade.

Tanto na compreensão da relação tributária do ponto de vista estático, como na versão dinâmica pelo procedimento em que mais está presente o lançamento, mas também existentes outros atos tributários, o reconhecimento de uma parcela de poder de decisão política não importa na ausência de controle de legalidade e constitucionalidade, visto que se constitui num poder juridicamente delimitado.75

É preciso enaltecer, portanto, que o controle de legalidade já foi efetivamente ampliado para um sentido amplo de juridicidade e de reserva legal proporcional que envolve a sindicabilidade de exigências tributárias pela observância não apenas da lei, mas dos princípios constitucionais implícitos e explícitos, o que faz permitir o cotejamento das decisões que de início são compostas de um forte teor político ou de aparente discricionariedade administrativa, como representação do exercício de poder, mas que, quando produzidas em concreto, guardam uma formatação jurídica e fornecem o substrato para controle num estado de direito, especialmente o de modelo jurisdicional.

O componente jurídico, assim, aparece com maior nitidez quando a relação de tributação se projeta na forma de obrigação tributária, inspirada na obrigação civil, e que o nosso Código Tributário encampou ao permitir uma precisa vinculação à lei e à obediência por ambas as partes, credor e devedor, além dos limites formais e materiais contidos na Constituição, na condição de direitos e garantias que limitam o exercício do poder tributário. Na parte procedimental, o controle advém com a possibilidade de intervenção do contribuinte para correção do ato administrativo pela impugnação do lançamento e outros atos, somada a exigência de um órgão imparcial para julgamento da controvérsia, além, por evidente, de se poder invocar o judiciário para exame dos conflitos persistentes.

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A relação entre política e direito configura questão complexa de interdependência recíproca, na medida em que se considera o direito como um conjunto de normas ou ordem normativa perante a qual se desenvolve um grupo organizado. A ordem jurídica é produto do poder político e dele depende para fazer valer a força de suas decisões. No entanto, a legitimidade desse poder político acaba por aferir-se pelo direito que o delimita e o transporta de uma relação de força para uma relação jurídica. É dizer, com Bobbio, que só “a referência a um princípio de legitimidade transforma em direito o poder de impor obrigações e um dever de obediência dos destinatários da imposição; só ela transforma uma relação de mera força em relação jurídica”. BOBBIO, Norberto. O filósofo e a política. Tradução de César Benjamin. Rio de Janeiro: Contraponto, 2003. p. 153.

O poder tributário no nosso sistema, em conclusão, deflui de função tipicamente política do Estado, tem sede na Constituição Tributária e está especialmente limitado pelos direitos fundamentais dos contribuintes. Tal poder projeta para o lado do cidadão um dever de pagar tributos que também se limita pelos direitos postos na Constituição, no que se pode aferir, portanto, que a relação entre Estado e contribuinte guarda pertinência com a atuação de um poder juridicamente limitado, permitindo a solução de controvérsias dentro de um nível razoável de equilíbrio de forças.

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