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4 RELATOS DAS EXPERIÊNCIAS

4.1 IMAGENS VISUAIS COMO MATERIAL DE CRIAÇÃO

4.2.1 A exploração das imagens: da percepção à partitura de ações

39 David Campton (1924-2006) nasceu em Leicester/Inglaterra e começou a escrever para o teatro

em 1956. A maior parte de suas peças são de um único ato se caracterizam como comédias de costumes. Geralmente ele é apresentado como dramaturgo de ‘comédias sérias’; na década de 90 escreveu peças sobre a ameaça da bomba e sobre pessoas que vivem como fantoches, encurraladas em situações de pânico em seu próprio trabalho (Cabral 2004b, p. 2).

A dinâmica de exploração do material foi iniciada com a observação das imagens, seguida da materialização das imagens, ou de aspectos das imagens em formas corporais. Em outro momento, essas formas corporais foram organizadas em uma sequência direcionando o processo de exploração do material para construção de uma partitura de ações40.

As imagens foram observadas pelos participantes. Todos fizeram um percurso no espaço circundado pelas imagens, passando por todas elas. Em um segundo momento, esse percurso era interrompido pelo desejo de trazer uma imagem observada para o corpo, expressar-se através da imagem, materializá-la. Sentir a imagem no corpo e o corpo transformado por ela. As imagens foram materializadas em formas corporais. Em meio a tantas imagens por que algumas se sobressaem às outras e saltam aos olhos do observador?

A ideia de materialização está relacionada com a exploração sensorial do material e a busca por possibilidades expressivas através da relação com a imagem. É um processo de encontrar afectos que justifiquem a expressão: quando materializada, a imagem é sentida e tornada real, o que se opõe a uma simples reprodução, quando a imagem é produzida de novo, imitada e mostrada. A materialização indica transformação do que é sentido em linguagem simbólica corporal.

Em seguida, cada participante resgatou as formas corporais geradas pelas imagens que lhes tocaram, escolhendo as mais significativas para compor uma sequência. Essa sequência, ou o registro corporal dos afectos gerados pela imagem, foi desdobrado em ações físicas41.

Nesse processo de materialização da imagem em uma forma corporal, a emergência de singularidades pode ser observada pela diversidade de formas criadas a partir de uma mesma imagem. Cada participante compôs e apresentou para o grupo sua sequência de formas, onde foi possível notar estas qualidades

40 Para Pavis (2001, p. 279) o conceito de partitura foi extraído para o teatro da teoria musical, e

neste sentido ele representa uma linguagem de notação cênica através da qual é possível se fazer um levantamento de todos os dados de uma encenação. Neste trabalho, a partitura de ações é a decupagem ou a descrição das ações físicas e dos materiais a serem utilizados pelos atuantes tais como peças de figurino, objetos cênicos, fragmentos de texto etc.

41 As formas materializadas serviram como ponto de partida e referência nesse processo de

pesquisar expressões psicofísicas. A proposta foi de explorar as formas corporais descobrindo as possibilidades de ações a partir de cada uma delas; e depois escolher uma ação para cada forma. Como será explicado mais adiante a partitura foi um meio para registrar esse percurso sensorial de exploração do material.

expressivas diferenciadas. No final destas apresentações, os participantes também indicaram as imagens com as quais tinham se relacionado. Algumas imagens foram utilizadas por vários deles, mas o que foi construído a partir de um mesmo estímulo possuía peculiaridades e diferenças. Por outro lado, em alguns casos, foi possível identificar facilmente a imagem que originou a forma, o que pode nos indicar que a imagem não foi materializada, mas simplesmente reproduzida. A materialização leva à modificação da imagem, indica as ressonâncias da imagem no corpo de cada um e as peculiaridades que são atribuídas a elas.

As singularidades observadas, assim como a modificação da imagem, podem servir como exemplo para a influência da memória no processo criativo. Pela teoria da percepção-memória, os dados fornecidos pelos sentidos funcionam como signos destinados a evocar antigas lembranças e, como tal, estas lembranças podem inclusive deslocar a realidade da percepção. Isto significa que não existe uma percepção ideal, nem impessoal, ela é sempre influenciada por estes “acidentes individuais” do passado, conforme sugere Bergson (2010, p. 31).

Esses acidentes individuais que se inserem no percurso perceptivo, em relação ao processo de exploração do material de criação que aqui relatamos, podem ser vistos como elementos que levam à modificação e à transformação da imagem. A imagem observada se configura como um signo que desperta memórias e faz com que o estado perceptivo até então virtual, aos poucos seja materializado. Neste sentido, no trânsito criativo entre imagem e forma, o signo se transforma em símbolo. Nessa forma resultante estariam as qualidades subjetivas e os dados mnêmicos despertados pela imagem. O símbolo oculta as impressões sensoriais, ele representa a expressão indireta de um significado impossível de ser dado diretamente: aquilo que é sentido.

Ao optar por esta metodologia de exploração do material de criação em etapas, procuramos desenvolver um percurso perceptivo em que as afecções encontradas e atribuídas às imagens constituísse o ponto de partida para o trabalho com as ações. Nosso receio era de que as imagens fossem simplesmente reproduzidas e que as ações fossem um reflexo dessa reprodução. Isso aconteceu com vários participantes. Como a oficina se desenvolveu em vários encontros, houve tempo suficiente para que os participantes pudessem identificar a distinção entre reprodução e criação.

A metodologia de exploração do material por etapas também permitiu identificar e trabalhar sobre uma questão que ficou evidente: a predisposição para a reprodução das imagens nas formas e das formas nas ações. Acredito que essa predisposição foi devido ao fato de muitos dos participantes estarem realizando seus primeiros contatos com técnicas, especificidades e peculiaridades da linguagem teatral, com algumas exceções (o grupo era formado em sua maior parte – 60% – por alunos da primeira fase do curso de Artes Cênicas da Udesc). Assim, reiterei a ideia da modificação das imagens pelas peculiaridades que são atribuídas a elas no momento em que elas são materializadas e também em relação às ações. Neste sentido, foram discutidas algumas questões como: a presença de objetos imaginários (são necessários?); expressões faciais iguais às da imagem (são necessárias, se modificam?, como se dá a relação entre expressão facial e ação?); emissão de sons etc.

A exploração do material de criação foi finalizada com a elaboração da partitura de ações. Em relação a essa etapa do trabalho, consideramos importante referenciar o Método das Ações Físicas, formulado por Stanislavski, na segunda fase de seu trabalho. Desde a primeira etapa de suas pesquisas, cujo modelo é conhecido como a Linha de Forças Motivas42, o trabalho do ator foi estruturado sobre a questão do desencadeamento de processos interiores. Se, na primeira fase estes processos eram guiados pela memória emotiva, na segunda, a ação passa a ocupar o centro do processo de criação. Nestas condições, a ação, não dependendo de ocorrências como a vontade do ator e os sentimentos evocados, pode ser reproduzida, controlada e fixada, “e ela se torna psicofísica à medida que, se reproduzida de forma precisa, passa a ser uma “isca” dos processos interiores” (Bonfitto, 2006, p. 80). A ação fica assim nomeada como psicofísica; terminologia que ainda a associa aos processos interiores, com a diferença de que estes processos passam a ser entendidos como catalisados no momento da execução da ação, ao invés de motivados anteriormente a ela.

Neste estudo pretendemos associar a ação física, conforme pensada por Stanislavski, a alguns aspectos teóricos desenvolvidos por Bergson, buscando investigar as relações da memória com o processo criativo. Esta associação

42 Através deste modelo, Stanislavski, acreditava que elementos como Sentimento, Mente e Vontade,

eram fundamentais para o desencadeamento do processo criativo do ator. O trabalho do ator dependia da motivação dos sentimentos, não podia se iniciar sem que os sentimentos fossem motivados, função esta desempenhada pela Mente e pela Vontade (Bonfitto, 2006, p. 24).

funcionará como base para refletir sobre o desencadeamento dos processos interiores no corpo do atuante durante a execução de ações. Por sua vez, essa reflexão funcionará como base para a nossa ideia de uso da partitura de ações como um meio de registro da etapa de exploração sensorial das imagens.

A ação, para Bergson tem uma relação direta com o fenômeno percepção- memória. A ação indica nossa capacidade de se relacionar e operar mudanças nas coisas que nos rodeia. A percepção sofre influência da memória e é o ponto de partida para a ação do corpo; é um elemento deflagrador de um sistema através do qual o corpo recebe estímulos do meio externo e reage a estes estímulos. Logo, se a percepção corresponde às possibilidades de ação do corpo sobre a materialidade que o envolve, a memória e as afecções que a acompanham, correspondem ao que se sente e ao que se faz em relação àquilo que é percebido. Os dados do passado que vêm à tona pela percepção estão impregnados de afecções que determinam nossas escolhas e nos levam à ação. O passado, desta forma, é recriado pela memória através da ação.

Para Bergson (2010, p. 68), se o corpo recebe estímulos e reage, a escolha da reação não se opera ao acaso: “essa escolha se inspira, sem dúvida nenhuma, em experiências passadas, e a reação não se faz sem um apelo à lembrança que situações análogas foram capazes de deixar atrás delas”. Nestas condições, a memória está ligada à experiência do espaço e do corpo. Tudo que vivemos fica armazenado em arquivos e os conteúdos destes arquivos são revistos constantemente, o que revela a utilidade da memória para a ação e também para a vida, pelo processo de atualização contínua da experiência.

A memória foi um elemento recorrente nas pesquisas de Stanislavski. Se, na primeira fase de seu trabalho, as emoções estavam ligadas à memória e deveriam ser resgatadas do repertório pessoal do ator, na segunda fase, ele reavaliou a questão da fixação de vontades e sentimentos; ou seja, a dificuldade de acessar com o esforço da vontade essas memórias pessoais. Em contrapartida, ele reconheceu a facilidade em fixar e recordar ações físicas, que, por sua vez, evocam a memória das emoções e também das sensações e dos sentidos.

A importância dos atos físicos nos momentos extremamente trágicos ou dramáticos reside no fato de que quanto mais simples forem, mais fácil será apreendê-los e mais fácil será permitir que eles conduzam vocês ao seu verdadeiro objetivo. Abordando assim a emoção, vocês poderão evitar uma interpretação forçada, e terão como resultado algo natural, intuitivo e completo (Stanislavski, 1989, p. 2).

Em decorrência do reconhecimento da dificuldade de fixação de sentimentos, esse diretor recomenda, então, ao ator transferir sua atenção do problema psicológico do papel para uma esfera totalmente diferente, a da lógica das ações, em que o problema pode se resolver de uma maneira puramente prática e não científica, com a ajuda da natureza humana do ator, seu instinto, sua sensibilidade, seu subconsciente: “ao criar uma linha externa de ações físicas, [...] paralela a esta linha se cria dentro de nós a linha da sequência lógica de nossos sentimentos e sensações. Isto é obvio, porque estes sentimentos internos desconhecidos por nós dão origem a ações e estão inseparavelmente ligados à sua vida” (Stanislavski, 1990, p. 56).

O processo de execução de uma ação física, para Stanislavski, envolve ainda a necessidade do ator justificá-la ou preenchê-la, fato que está diretamente relacionado com os processos interiores. Para ele (1989, pp. 2-3), as ações físicas exteriores devem estar entremeadas com os elementos interiores essenciais: “a ação exterior alcança seu significado e intensidade interiores através do sentimento interior, e este último encontra sua expressão em termos físicos”. Esses elementos interiores são entendidos, aqui, pela perspectiva bergsoniana, como as afecções e emoções desencadeadas pela memória.

Para Bergson, o fenômeno perceptivo é caracterizado pela ocorrência de afecções, que são geradas entre os estímulos externos ao corpo e as ações realizadas em resposta a estes estímulos. Para ele (2010, p. 54), não há percepção que não possa, por um crescimento da ação de seu objeto sobre nosso corpo, tornar-se afecção.

A afecção é o que misturamos do interior do nosso corpo à imagem dos corpos exteriores, ou seja, ela vai corresponder à representação que engendramos das coisas que estão fora de nós. O modo como um objeto nos afeta está ligado ao modo como percebemos esse objeto. A profusão de imagens mnêmicas e afectos, surgidas no momento em que nos relacionamos com um objeto ou uma situação, influenciam a maneira como percebemos e agimos sobre esse objeto ou situação.

A partir desta compreensão, é possível pensar, que, se as memórias estão relacionadas aos processos interiores tal como abordado por Stanislavski, as afecções e as emoções associadas a estas memórias poderiam ser o elemento que confere organicidade à execução das ações:

Não há ações dissociadas de algum desejo, de algum esforço voltado para alguma coisa, de algum objetivo, sem que se sinta, interiormente, algo que as justifique; não há uma única situação imaginária que não contenha um certo grau de ação ou pensamento; nenhuma ação física deve ser criada sem que se acredite em sua realidade, e consequentemente, sem que haja um senso de autenticidade [...] (Stanislavski, 1989, p. 2).

Organicidade é sinônimo de autenticidade e corresponde à materialização das reações, dos sentimentos e das emoções do ator. É através da materialização que o ator pode transmitir estes sentimentos. Para Peter Brook (2008, p. 8): “qualquer ideia tem que se materializar em carne, sangue e realidade emocional: tem que ir além da imitação, para que a vida inventada seja também uma vida paralela, que não se possa distinguir da realidade em nível algum”. Do ponto de vista da ação, as experiências do ator, guardadas na memória, podem ser traduzidas na intensidade da ação, nas afecções e nas emoções desencadeadas pela ação.

No processo que aqui descrevemos, as ações foram elaboradas a partir das formas corporais. Foi um processo de explorar a capacidade das formas catalisar processos interiores, que seriam as lembranças, as afecções e as emoções que vêm à tona através da memória. Como já colocamos anteriormente, a proposta levada ao grupo foi de exploração sensorial, de sentir e expressar-se desde então, de encontrar momentos prenhes de ressonâncias corporais dos estímulos através da ação. Neste processo, existe um espaço para a experiência, para o despertar de memórias esquecidas e o devir de afectos e de emoções. A ideia era que as ações não fossem definidas a priori, mas descobertas na experimentação dos estímulos. A exploração do material traz possibilidades de experiências desde que o ator se permita a trilhar um caminho em busca daquilo que não é sabido, em busca do que está oculto. O material é o meio através do qual o ator pode lançar-se sobre si em busca de tocar uma qualidade de memória que amplia a percepção de si mesmo.

No processo, na fase de materialização da imagem em forma corporal, a transformação da imagem foi observada como uma interferência de estados sensíveis de quem a percebeu e como a percebeu. Na fase da partitura esta transformação foi ainda mais evidente, pois através da ação o participante tem maiores possibilidades de escavar o material e transformá-lo. Nesse processo, tanto a forma como a ação podem ser observadas como símbolos, que abrigam as subjetividades e também o signo, ou o elemento inicial a partir do qual ele se transformou.