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3 OS ELEMENTOS ESTRUTURAIS DO DRAMA: CONTEXTO DE FICÇÃO,

3.1 O CONTEXTO DE FICÇÃO

Um processo de drama normalmente parte da identificação e delimitação do contexto de ficção. O contexto ficcional permite a exploração de temas e assuntos relativos a um outro lugar, diferente de nosso cotidiano. A delimitação do contexto propicia que os participantes sejam transportados metaforicamente para esse outro

lugar, onde as investigações acontecem. O tema a ser explorado é desdobrado, ao

longo do processo, em situações e circunstâncias dramáticas que compõem os episódios, levando à construção de uma narrativa teatral.

Na perspectiva do drama, assim como outros eventos teatrais, a narrativa pode ser vista como um meio privilegiado de encontrar e compreender o outro e de atribuir sentido à experiência vivida.

A necessidade de relacionar-se com narrativas parece ser inerente à condição humana. Estamos sempre construindo histórias e narrativas, elas cercam- nos por toda parte, estão nos livros, nos filmes, em programas de TV, estão presentes em nosso dia a dia. Nosso envolvimento com elas ocorre espontaneamente uma vez que as histórias interagem diretamente com as experiências de vida tanto daqueles que as transmitem como daqueles que as recebem.

Segundo John Somers (2010, p. 176), a criação de narrativas é um aspecto indispensável da experiência humana, é um ato fundamental da mente transferido da vida para a arte. Para ele, sem as perspectivas de enquadramento das histórias, nós seríamos incapazes de existir além do momento da experiência.

Essa afirmação de Somers leva-nos a pensar no potencial das histórias propostas pela atividade teatral em atribuir sentido e significado à vida. Assim sendo, a experimentação de situações dramáticas dentro de um contexto ficcional permite- nos tratar de assuntos, eventualidades e necessidades humanas semelhantes aos da vida real em um ambiente lúdico como personagens de uma história; o que pode oferecer-nos satisfação e gerar aprendizado.

No drama, essa historia começa a ser criada com a delimitação do contexto de ficção. O tema que define o contexto e a estrutura do processo normalmente é escolhido pelo professor, mas pode ser negociado com os participantes. Os assuntos a serem abordados podem ser inspirados por textos dramáticos ou não dramáticos, por histórias reais ou acontecimentos que tenham ressonância com o contexto local, onde o processo é desenvolvido.

O contexto de ficção permitirá o enquadramento de diversas situações dramáticas, solicitando ao participante disponibilidade para desempenhar papéis e interagir em grupo. De acordo com Cabral (2006, p. 12), a delimitação do contexto de ficção permite a entrada em uma situação imaginária, e “a aprendizagem decorrente emerge desta situação e do fato de termos de responder a ela, realizar ações e assumir atitudes nem sempre presentes em nosso cotidiano”.

A criação do contexto depende, inicialmente, do professor, mas a colaboração dos participantes com ações e atitudes é importante para sustentá-lo ao longo do processo. Nestas condições, o drama caracteriza-se como um envolvimento com o “fazer”: quando envolvido com a ficção, o participante entra nesse mundo imaginário, reage a ele, contribuindo, assim, para a sua manutenção e desenvolvimento.

Nesta perspectiva, a introdução do contexto e o estabelecimento de situações a serem investigadas são atividades que, se associadas a habilidades de atuação, dramaturgia e ambientação cênica do professor, podem facilitar o envolvimento do participante com o processo. O professor pode assumir um papel ou interpretar um personagem, utilizar músicas ou objetos cênicos, criar uma fala, fazer um discurso, trabalhar com iluminação, utilizar e introduzir outros procedimentos que potencializam a teatralidade. O objetivo é delimitar um espaço e criar uma atmosfera

que possa atrair e seduzir o aluno a entrar no ambiente de ficção, interagir com as propostas e a participar da história a ser desenvolvida.

3.1.1 Tensão dramática, manifestação dos sentidos e significados

Através da tensão dramática, o professor cria expectativas que desafiam os participantes favorecendo o seu envolvimento com os processos investigativos. Quando destacada e intensificada no decorrer do processo, a tensão torna-se um recurso para a imersão. Segundo Cabral (2010a, p. 1), a tensão está diretamente relacionada com a imersão, na medida em que mobiliza os sentimentos e o intelecto dos participantes na busca pela compreensão dos significados e implicações dos conteúdos do processo.

A tensão também está diretamente associada à questão da experiência, neste sentido de mobilizar o participante, de promover o envolvimento sensível do sujeito com o que está sendo investigado e consigo mesmo. A tensão decorrente da imposição deliberada de limitações gera energia para o jogo, desperta o desejo da investigação no participante e, por conseguinte, da ação. Mobilizado, o participante age, atua. Mobilizado, o atuante interage com os fatos, com os outros atuantes e com os materiais introduzidos. Essas interações são possíveis através do jogo com o outro, com o espaço e com a situação; jogo que, conforme Cabral (2010b, p. 95), se dá entre a identidade (do sujeito e do grupo)30 e a persuasão (do professor e do texto).

A tensão é o pivô crítico que gera a energia do jogo e do drama; sem ela eles não acontecem. No jogo, o relacionamento estrutural que implica tensão, está geralmente explícito: a indefinição entre recompensa e punição, a necessidade de tomar uma decisão que envolva risco, a espera, as barreiras, os enigmas, os dilemas (Cabral, 2010b, p. 95).

Sob tal ótica, quais seriam as motivações ocultas que estão por trás de atitudes tomadas e de ações realizadas? Qual seria a relação entre sentido, significado e experiência?

A experiência é aquilo que nos toca e acontece, está ligada às particularidades do sujeito que estão ocultas nas regiões mais profundas da psique

30 A noção de identidade, como colocada anteriormente (segunda parte do primeiro capítulo), é

entendida não como uma entidade ou categoria estabelecida, mas como processos de identificação que estão em constante reestruturação e reorganização.

ou às memórias que não estão nas camadas mais superficiais da consciência. Quando tocadas no contexto da ficção, essas formações psíquicas ou imagens mnêmicas inconscientes provocam o aluno a empreender uma atitude interpretativa, buscando os significados das situações experimentadas na ficção; significados que são atribuídos a partir do chocar os ovos da experiência31, a partir da visão de

mundo do sujeito.

O resultado da investigação de uma situação em drama reflete os significados que essa situação teve para os envolvidos. Para Dorothy Heathcote (apud Bolton, 1998, p. 177), não é suficiente colocar os alunos em uma situação de tensão, eles devem ser desafiados a compreender esta situação e, na medida do possível, resolvê-la. A natureza da ação dramática, de acordo com Heathcote, está subordinada à noção de significado. Para ela, fazer drama é indicar, buscar, encontrar e criar significados.

Na abordagem de Heathcote, a tensão adquire a forma de um problema, uma ameaça, uma suspeita, uma curiosidade, uma resignação (Bolton 1998, p. 179). A delimitação do contexto e a ativação da tensão criam condições para o participante

viver32 as situações e também compreender os seus efeitos, engendrando uma resposta ao mesmo tempo cognitiva e afectiva.

No entanto, aquelas imagens ou formações psíquicas ocultas que são tocadas pelo momento da experiência e que nos levam a interpretar, decodificar fatos, relacionar ideias, também nos levam à ação e a atitudes sensíveis em função do momento presente. Neste sentido, essas imagens ou formações psíquicas são reelaboradas através da ação.

O que pretendemos, aqui, é considerar esse outro momento da experiência, esse instante de jogo, de interação direta do atuante com o professor, com os outros alunos, com os materiais introduzidos; esse instante efêmero, em que estão em jogo as particularidades do sujeito que o induzem à ação, a uma resposta espontânea e imediata, um instante prenhe de sentido.

31 Alegoria utilizada por Benjamin (1994b) em referência à relação do sujeito com o objeto estético

(Desgranges, 2006, p. 24).

32 A abordagem de drama de Dorothy Heathcote (1926-2011) ficou caracterizada pela expressão

living through drama. Em seu trabalho, ela não se preocupou com realizações altamente sofisticadas e técnicas, mas em fazer com que a imaginação, a sensibilidade e a experiência dos alunos com a atividade dramática proporcionasse que cada aluno cumprisse com o potencial de seu próprio instinto criativo, visando seu progresso e desenvolvimento pessoal (Lewicki, 1996, p. 68).

Sobre esta questão, algumas considerações de Ryngaert parecem-nos oportunas, pois, através delas, podemos relacionar a manifestação de sentido a esse outro instante da experiência. Para ele, (2009, p. 198), o sentido nasce em função de elementos imediatos dados pela situação vivida, no momento da ficção. Os indutores exteriores de jogo (que, na perspectiva do drama, seriam as informações trazidas pela intervenção do professor e os materiais introduzidos), por maior que seja a sua força, nunca neutralizam completamente o peso do aqui-agora:

Inevitavelmente tomados por este estado presente, os jogadores incorporam-no ao alhures que estão construindo. Sabe-se que este presente funda o fenômeno teatral, que não existe senão no momento da representação, no instante mesmo que ela convoca um alhures e uma outra coisa. A combinação destes elementos constitui esse real que se torna signo, união de um significante com um significado que remete a um referente real. Nos jogos improvisados a composição alquímica tende a se inverter. Enquanto a representação tradicional privilegia a construção de um referente e não considera, senão parcialmente, a situação real cujas resistências eventuais devem ceder diante da força do que foi previsto e ensaiado, as práticas de improvisação absorvem como uma esponja a realidade imediata e constroem um referente a partir da experiência instantânea dos jogadores e de sua percepção da situação (Ryngaert, 2009, pp. 198- 9).

O sentido revela a maneira como texto, discursos, imagens são percebidos por si mesmos e também em relação à situação dramática. O sentido gera ações e atitudes caracterizadas por um fluxo de afecções em resposta aos estímulos perceptivos do instante do fazer. Uma ação como resposta espontânea a uma fala do professor ou de outro atuante, ou a escolha por um objeto ou fragmento de texto, por exemplo, são ações que se situam mais no polo de sentido que de significado. O significado seria um desdobramento individual ou coletivo do sentido, está relacionado à dimensão semântica; é a possibilidade de um signo referir-se ao seu objeto33. O significado tem maior relação com a consciência, está ligado à reflexão. Tomar uma decisão envolve significados, envolve avaliar os prós e os contras. O significado está relacionado ao pensamento crítico, surge no coletivo, mas também individualmente na medida em que um atuante percebe a ação e a opinião dos outros, na medida em que constata diferenças. O significado envolve aspectos cognitivos que partem de condições perceptivas e afectivas. Significado e sentido

33 Segundo Abbagnano, entende-se por significado a dimensão semântica do procedimento

semiológico, ou seja, a possibilidade de um signo referir-se ao seu objeto (p. 1055). Sentido: faculdade de sentir, de sofrer alterações por obra de objetos exteriores ou interiores; o sentido compreende tanto a capacidade de receber sensações quanto à consciência que se tem das sensações e, em geral, das próprias ações.

não são entendidos, aqui, como opostos que se excluem, mas como polaridades que se inter-relacionam e que revelam possibilidades expressivas e de discurso.

Ante o exposto, podemos concluir que se tensão favorece o envolvimento sensível com o processo de investigação, ela indica possibilidades de experiências, ao desvelar sentidos e gerar significados. Em conformidade com Cabral (2010a, p. 1), “a atividade dramática requer que o participante adote conscientemente um ‘como se’ simultaneamente mantendo dois mundos em mente, o presente ou real e o ausente ou fictício”. A experiência corresponde à projeção física, emocional e intelectual do participante nas situações, corresponde a experimentar a ficção, o que traz à tona questões referentes a histórias de vida e memórias, afectos e emoções, através da manifestação dos sentidos e dos significados.