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3 OS ELEMENTOS ESTRUTURAIS DO DRAMA: CONTEXTO DE FICÇÃO,

3.5 A PARCERIA PROFESSOR-PARTICIPANTE

3.5.1 O professor-dramaturg

Enquanto dramaturg36, o professor intervém nas cenas que estão sendo criadas pelo grupo. Esta interferência ocorre de forma direta quando se dá no nível da estrutura dramática, na medida em que propõe ações, dirige o foco para determinadas opções dos atores e identifica ou seleciona aspectos do texto em construção. Através da intervenção indireta, o professor procura articular aspectos da ficção fornecidos pelo pré-texto com o contexto real dos participantes (Cabral, 2007, p. 48).

Antes de a prática de Dorothy Heathcote tornar-se conhecida, o desenvolvimento da atividade dramática estava normalmente focado sobre o enredo. Ao advertir que a abordagem centrada no enredo traz consigo o risco de o drama tornar-se uma mera série de incidentes, O’Neill define a estrutura do processo como primordial ao enredo (Bolton, 2006, p. 42).

A estrutura contém as diretrizes para o desenvolvimento do processo, relacionando as estratégias que serão utilizadas pelo professor, os focos dramáticos de investigação e o esboço das situações que serão desenvolvidas em cada episódio, funcionando como um arcabouço que será preenchido pelo trabalho dos participantes. Apenas um esboço do enredo, portanto, está contido na estrutura do

36No contexto inglês, a expressão teacher as playwriter é utilizada para referir-se ao professor de

drama que se identifica com maior ênfase na construção da narrativa, trabalhando como dramaturgo no processo. O termo foi traduzido por Cabral (2007) como professor-dramaturg. O termo dramaturgo, tradução direta de playwriter, está relacionado à escrita de um texto dramático (Vasconcellos, 2009, p. 102), o que não acontece normalmente no processo de construção de uma narrativa teatral através do drama, apontando para um problema de nomenclatura. Para Vasconcellos (2009, p. 101) o termo dramaturgista seria a tradução adequada para a palavra alemã dramaturg. O dramaturgista é, segundo este autor, uma espécie de conselheiro literário das companhias de teatro. Dentre as suas funções, inclui a seleção de peças para serem produzidas, a tradução e adaptação destes textos, muitas vezes, num trabalho conjunto com os autores. Nos termos desta pesquisa, o professor- dramaturg é aquele que escreve as cenas, interferindo nas mesmas, na medida em que elas desenvolvem-se no trabalho coletivo.

processo. A própria ideia de processo, de algo que não é estático, mas que se mantém em curso, reforça este caráter de esboço, de projeto; e indica que ele está sujeito a modificações. A estrutura é uma organização preliminar que aponta possibilidades de exploração temática e de atuação, mas que pode ser modificada em função do processo. Embora os termos dramaturgo e enredo estejam fortemente associados, a premissa de trabalho do professor como dramaturg não é através do enfoque sobre o enredo, mas sobre os materiais que emergem no trabalho coletivo. Desta forma, é mais importante a maneira como o grupo relaciona-se com o enredo, o que constrói a partir dele, do que o enredo em si.

O’Neill e Lambert, ao enfocarem este tipo de abordagem do professor, consideram que, em drama, as pessoas não são apenas criadores, mas o meio pelo qual o drama é criado. Para os autores, “os participantes podem ser vistos como ferramentas e materiais que podem ser manipulados e que possuem suas próprias qualidades essenciais” (O’Neill e Lambert, 2006, p. 54). Desta forma, o professor-

dramaturg compartilha os impulsos criativos do grupo, elaborando estes materiais na

tessitura da narrativa.

O impulso criativo depende das relações da imaginação com as circunstâncias de ficção e o contexto criado e de suas ressonâncias ao contexto sócio-cultural de cada integrante. O envolvimento na atividade possibilita a emergência das individualidades em cena, e deste modo, nas palavras de Cabral, “o drama se configura como espaço privilegiado para a imersão e o jogo entre o individual e o coletivo” (2010 , p. 95).

John O’Toole (1992, p. 4), por sua vez, ao definir o drama como negociação e renegociação de elementos da forma dramática através de um contexto e das propostas dos participantes, refere-se explicitamente à relação entre jogo e as características processuais da atividade dramática. A ideia de um trabalho dinâmico e que se mantém em curso é subsidiada pelo estabelecimento de um espaço de trocas constantes entre todo o grupo.

O jogo instala-se além da realidade de cada dia, estabelecendo um mundo temporário que coexiste dentro do mundo diário. De acordo com O’Neill (1995, p. 45), este mundo temporário é dedicado à realização de atos à parte e uma vez que estes mundos e atos são generalizados eles persistem como criações da mente, como tesouros da memória.

Assim, questões relativas à identidade e diferenças podem ser exploradas. O intercurso entre memórias pessoais, contextos e circunstâncias ficcionais caracteriza-se como processos de individuação que trazem à tona mobilidade de significação. Diferenças e singularidades podem ter o seu espaço no desenvolvimento dos processos de drama. Sendo um trabalho coletivo e colaborativo, o drama dá voz aos seus participantes. Colaborar, neste sentido, não significa efetivamente concordar, pelo contrário, concordância em excesso poderia indicar falta de vitalidade e envolvimento com a situação. Assim, não é apenas evidente que diferenças existam entre as distintas pessoas envolvidas, é significativo para o desenvolvimento do processo que estas diferenças venham à tona, pois poderão demonstrar a vitalidade e o envolvimento do grupo com o trabalho.

Em drama, discussão, confronto e discordância fazem parte do processo. Embates e oposições oferecerão alternativas e escolhas. Construir coletivamente demanda negociações: a)entre as relações individuais com o contexto e outros elementos; b) entre as relações individuais com o grupo; c) nas relações entre os diferentes grupos. Neste sentido, Cabral escreve que “o uso de cerimônias, rituais e confrontos articula situações onde a textualidade da cena se abre à singularidade das expressões individuais” (2010b, p. 96).

A autora, ao aplicar ao drama noções de consenso e dissenso baseadas na ideia da partilha do sensível proposta por Jacques Rancière, propõe uma estética do dissenso para o desenvolvimento de processos coletivos. O consenso, compreendido como um acordo de um grupo de pessoas sobre a forma de executar uma ação ou resolver um problema, anula as diferenças, atenua as desigualdades e nivela as especificidades individuais. O dissenso, por sua vez, como desacordo e confronto de pontos de vista distintos, introduz as diferenças entre grupos com interesses e propostas conflitantes37.

Sendo assim, um trabalho que focaliza distintas manifestações entre os componentes do grupo, revela o dissenso e abre espaço para identificação e questionamento das diferenças, com a intenção de percebê-las e entendê-las. O professor pode introduzir materiais e questionamentos que levam a múltiplas

37 Segundo Cabral (2010b, p. 98), Ranciére focaliza o dissenso no campo da política e da estética,

afirmando que se o consenso tem como objetivo o entendimento dos homens para o bem comum, a base da política e da estética não é o acordo, e sim o conflito, o próprio desentendimento. A partilha do sensível considera o que é comum na convivência social, a separação entre as vozes conscientes ou não, que se manifestam no cotidiano; e como tal, explicita as dicotomias subjacentes às relações de poder.

interpretações, proporcionando aos participantes uma experiência que é intercambiada por memórias e pontos de vista. A observação das diferenças permite a cada indivíduo ampliar as suas próprias referências intelectuais e afectivas. Os discursos e os posicionamentos, as contraposições e os confrontos de ideias promovem a construção do texto, pois é exatamente nos momentos de acordo e desacordo que o desenvolvimento do processo ganha impulso. Neste sentido, se “o teatro focaliza conflitos, engajamento emocional e escolha individual, a educação estética é uma forma de dar visibilidade e acesso aos dilemas morais” (Cabral, 2010b, p. 99).

Dentro desta perspectiva, situações de consenso e dissenso podem ser incorporadas pelo professor-dramaturg à tessitura da narrativa, permitindo a negociação de diferenças ao invés da afirmação de identidades, privilegiando as vozes dos indivíduos, dos grupos e do grande grupo, tornando possível a visualização da mobilidade de significação (Cabral, 2010, p. 105).