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4 RELATOS DAS EXPERIÊNCIAS

4.1 IMAGENS VISUAIS COMO MATERIAL DE CRIAÇÃO

4.3.5 Quarto episódio: O Balcão é sitiado As máscaras caem?!

Esse episódio foi desenvolvido em três quadros. O objetivo foi explorar, nas relações entre arte, estética e política, questões relativas aos limites entre o público e o privado, às relações entre realidade e fantasias, ao engajamento em causas revolucionárias; e trabalhar com as figuras do Bispo, do General e do Juiz discutindo e investigando-as enquanto alegorias do poder estabelecido.

Quadro 1: O Balcão é sitiado.

Os alunos foram recebidos com música pelo assistente, que prestativo e acolhedor deu as boas vindas a todos, auxiliando-os quanto aos seus figurinos

58 No drama as funções de atuante e espectador são exercidas simultaneamente ao longo do

processo, conforme já colocado no subitem Imersão VS Distanciamento Crítico no final da primeira parte do primeiro capítulo.

(escolhidos para as encenações das fantasias no episódio anterior), instalando-os nas cadeiras e mesas do grande salão do Balcão.

Madame Irma entrou em cena, pedindo desculpas por não ter estado presente na noite anterior (não houve intervenção desta personagem no terceiro episódio) e diz estar confiante de que todos foram bem atendidos e que estão satisfeitos com os serviços de sua Casa. Infelizmente ela traz uma notícia ruim, a de que os revoltosos sitiaram o bordel: “os revoltosos já tomaram toda a cidade, a casa

está cercada, é possível que meus salões sejam invadidos, os cristais quebrados, os brocados rasgados, e que nos degolem...” 59.

Diante desta situação Irma confessa sua impotência e se diz pressionada pelas circunstâncias a pedir ajuda a três importantes senhores, que estavam ali entre os clientes: “Temos aqui entre nós, três homens que exercem altos cargos em

nossa sociedade, eles são os representantes da Igreja, do Exército e da Justiça. Creio que essas pessoas podem nos ajudar a enfrentar uma situação como essa. Vejo-me obrigada a revelar quem é o Bispo, o General e o Juiz, vamos nos juntar a eles e tentar encontrar uma saída para este problema.”

Madame Irma puxou para o centro da roda o Bispo, aquele que tinha a fantasia de seduzir e pecar, estava vestido com uma sunga e uma gravata borboleta. O General trazido em seguida, era aquele que tinha a fantasia de promover a desordem, estava vestido com uma túnica de algodão e portava uma corda, que funcionava como um chicote, instrumento de punição física. Por fim, o Juiz foi levado ao meio da roda e juntou-se aos demais, era aquele que desejava se transformar em uma diva para ser venerada por todos, tinha uma echarpe lilás e se abanava com uma pluma vermelha (figura 16).

Gérard disse: “São estes os que lá fora exercem o poder. Em quem podemos confiar? Em quem você confia?”

A decisão de quem seriam estas figuras, no processo, foi baseada nas fantasias dos clientes. Escolhemos as fantasias que pudessem representar o oposto da função social desempenhada por estas figuras, buscando estranhamento. Na cena, o contraponto entre papel social e fantasia, bem como a condição de que as três figuras estavam livres de suas máscaras sociais, levou a um questionamento

que diz respeito à relevância dessas máscaras e dos ornamentos de culto que as acompanham no estabelecimento da ordem e das relações de poder.

Gérard abriu uma caixa contendo fotografias antigas60 e colocou-as sobre as mesas: “Enquanto vocês estavam num quarto de bordel, vocês pertenciam à sua própria fantasia, mas agora, diante do que estamos vivendo, vocês querem voltar aos seus sonhos, desejos e devaneios mais secretos? Protegidos por homens e mulheres atenciosos e por uma polícia que defendia os bordéis, vocês podiam ser o que quisessem: um sedutor, uma diva, um carrasco, um anjo em busca de perversões, uma agonizante... Toda essa doçura agora é amarga, nossos quartos não são mais secretos, infelizmente. Precisamos nos unir com pessoas a quem nós podemos confiar. Mas quem somos nós? O que fazemos lá fora, que papel exercemos na sociedade?” Gérard revelou que era um poeta, e que sem dinheiro

por jamais ter publicado uma obra, trabalhava como assistente de Irma no Balcão. Quadro 2: Quem são os clientes?

Ao revelar quem ele era, Gérard convocou os clientes a fazerem o mesmo. A intenção de Gérard e Irma foi de formar grupos que iriam se reunir em torno das três figuras que representavam o poder estabelecido, para discutir e tentar resolver a situação usando a influência ou da Igreja, ou do Exército ou da Justiça. Em uma grande roda, os clientes começaram a revelar quem eles eram.

Houve interferência e participação do outro em alguns desses momentos de revelação. As grandes figuras manifestaram-se diante de algumas revelações e também quando ganhavam adeptos para seu grupo. Uma das clientes contou uma história triste de opressão, relacionando sua história a algumas outras contadas e provocou todos os clientes a lutarem por suas causas pessoais, por aquilo que acreditam e desejam para si mesmos61.

No papel de Gérard finalizei o quadro constatando que todos os clientes recorreram às três figuras, “o que significa que vocês acreditam que essas figuras

60

Essas fotografias foram utilizadas para que os atuantes pudessem criar as “histórias de vida” de seu papel. Todas as fotografias eram em preto-e-branco com aquele formato quadrado de fotos característico da época anterior à revelação em cores. As fotos retratavam momentos entre familiares, passeios, e recordações diversas.

61 Em contrapartida, algumas atuações se mostraram bastante frágeis, tanto no que diz respeito à

história contada, à presença do atuante, à relação com a situação/contexto. Por exemplo, essa atuação que relatei e que desafiou todos a lutarem por seus ideais se mostrou sensível ao contexto em pauta. Alguns discursos foram muito extensos, outros me pareceram pouco críveis e significativos.

ainda sejam capazes de desempenhar o seu papel de responsáveis pela ordem estabelecida, mesmo que elas não estejam vestidas à rigor para isso”.

A metateatralidade sugerida pelo texto de Genet foi explorada ao longo de todo o processo. No primeiro episódio, todos os alunos foram tratados como clientes do Balcão e como cidadãos que estavam vivendo uma revolução, já que esse contexto ficcional havia sido introduzido – foi criada uma cena que representava a revolução através de fragmentos textuais que expressavam as mortes, o medo e o terror que se espalhava. No segundo e no terceiro episódios cada cliente atuou em função de sua fantasia. O foco do segundo quadro deste último episódio, que acabei de relatar, foi a criação de um papel social para cada cliente. Os clientes foram persuadidos a revelar quem eles eram, ou seja, seu papel social, em função da situação dramática para formar grupos e tentar resolver a situação.

Essa questão do papel social do cliente não é abordada no texto original. Genet não nos apresenta quem são aqueles que realizam suas fantasias nos teatros

clandestinos do Balcão, nos apresenta o personagem mesmo da fantasia. Desta

maneira o dramaturgo procura criticar e chamar a atenção para a excessiva valorização da representação de papéis sociais na vida cotidiana.

Neste sentido, a nossa proposta com esse processo de drama, foi trabalhar primeiro com a fantasia para depois confrontá-la com um papel social, o que abriu espaço para um questionamento quanto à necessidade imposta pela realidade cotidiana de utilização das máscaras que definem os papéis sociais. Por outro lado, o pré-texto que elaborei, gera outra discussão: Numa situação de emergência, de dificuldade em nossa realidade cotidiana, a quem recorremos? A quem pedimos ajuda? Qual a relevância dos papéis sociais nesses momentos?

Para esta atividade de criação do papel social sugerimos aos alunos-atores que trabalhassem com as fotografias antigas que Gérard espalhou sobre as mesas. Com as fotografias eles identificaram e criaram um contexto social para o seu papel, ou as “histórias de vida” desse papel. O espaço para a experiência está no cruzamento dessas histórias de vida ficcionais com o contexto real. O envolvimento com a ficção abre espaço para que histórias significativas do sujeito venham à tona e que sejam confrontadas com outras histórias. O potencial de experiência reflete-se na possibilidade de o sujeito debruçar-se sobre as situações vividas ficcionalmente que estão em ressonância com seu contexto real, de forma consciente ou não. Neste sentido, as fotografias podem favorecer a ocorrência de outras memórias

utilizadas como referenciais para as narrativas construídas. Nessas narrativas a memória surge como coisa narrada, estruturada a partir da ficcionalização das experiências individuais. O intercâmbio de memórias, na criação do papel, também pode ser influenciado pelo percurso de exploração sensorial das imagens que foi associado ao contexto dramático e esteve presente em todo o processo.

Quadro 3: Como enfrentar a revolução?

Após os papéis sociais revelados, Gérard solicitou que os grupos se reunissem em torno das três figuras, para organizar uma proposta de luta, ou um protesto, ou uma estratégia de fuga. A proposta feita foi de discussão da situação a partir dos diferentes olhares dos clientes, tendo em vista a escolha de estar naquele grupo encabeçado por uma das três figuras e a gravidade da situação que os cercava. A situação convidava à reflexão sobre questões como: a tomada de consciência e o engajamento em causas revolucionárias; a relevância e influência dessas figuras sobre o imaginário de cada um.

Diferentes visões foram expressas e organizadas cenicamente. Houve confronto entre distintas percepções, inclusive dentro dos grupos.

A intenção do grupo que representava a Igreja era propor aos revolucionários que o espaço do Balcão fosse utilizado como um local onde doentes e feridos da revolução ficassem instalados e pudessem receber cuidados que seriam prestados por todos que estavam na Casa. Um dos integrantes do grupo sugeriu que, com o tempo e a confiança dos revolucionários, ele poderia se infiltrar entre eles e descobrir suas intenções, mantendo os clientes do Balcão informados de suas estratégias; paralelamente seria organizado um plano de fuga e na situação mais propícia ele seria colocado em prática. Houve divergências, alguns dos integrantes do grupo não concordaram com essa estratégia arriscada. Outros pretendiam levar a palavra de Deus aos revolucionários. Outros se dispuseram a confiar no poder do clero.

Ao final das proposições dos integrantes do grupo, o Bispo se manifestou: “Difícil ou não, é preciso continuar. Não se pode mais recuar. Quanto a mim, chefe

simbólico da Igreja nesta terra, quero tornar-me um chefe efetivo. Ao invés de abençoar, abençoar e abençoar vou assinar decretos e nomear padres. Agora será preciso cobrir o mundo com minha imagem recebendo a Eucaristia. Recuperaremos

o maior numero possível de mortos, pretendemos embalsamá-los e guardá-los em nosso céu”62.

O grupo em torno do Exército queria resistir. Sua proposta era de oferecer os prazeres da Casa de Ilusões para os revoltosos, convidá-los a beber e a dançar e tentar encontrar um meio de fugir e voltar para suas casas. Também houve conflitos no grupo. Alguns dos integrantes propuseram uma estratégia de envenenar as bebidas oferecidas aos revolucionários. Outros protestaram.

O General se pronunciou: “E ainda não acabou, é preciso inventar toda uma

vida. A glória se conquista nos combates. A arte da guerra não se faz brincando. Não posso mais me preparar! Me preparar para enfiar minhas calças e minhas botas de general. Estou metido nelas por toda a eternidade. Palavra de honra, eu não sonho mais. Vamos reduzir cada vez mais nossos ornamentos, vamos fazê-los funcionar, vamos fazer que sirvam, vamos defender a ordem. A glória militar, a coragem e o ato heróico agora me obcecam.

Finalmente com a palavra o grupo que representou a Justiça. Divergência de opiniões. Uns propuseram um assassinato em massa, proposta que fez com que alguns dos participantes do grupo do Exército manifestasse apoio. Alguns quiseram adotar uma postura de neutralidade em relação à revolução, até obterem maiores informações e detalhes da guerra. Outros quiseram negociar com os revolucionários, tentar um diálogo.

As palavras do Juiz: “Tenho encontro com vários magistrados. Estamos

preparando novas leis e uma revisão do Código. Eu sou apenas uma dignidade representada. É preciso que exerçamos nossas funções. Adquiríamos uma dignidade mais grave. Se eu fosse impiedoso ia encher os infernos de condenados, encher as prisões. É de mim que dependem a balança, o equilíbrio. Talvez existam altos dignitários encarregados da dignidade absoluta, revestidos com ornamentos verdadeiros. Nós esperamos dois mil anos para aperfeiçoarmos nossas personagens...

62 No momento em que os grupos se reuniram, o Bispo, o General e o Juíz receberam fragmentos do

texto original com a tarefa de elaborar o discurso final destas figuras, trabalhando com o repertório de ações. Aqui, neste texto, as frases foram organizadas por mim. Assim, o discurso que apresento como sendo o discurso de cada figura, não corresponde exatamente à maneira como o discurso foi apresentado no processo. Os atores tiveram liberdade para trabalhar com as frases como quisessem e inclusive incorporar outras falas.

Ao final da fala do Juiz, Gérard se despe de seu chapéu e de seu casaco: “O

jogo acabou. Por hoje! Amanhã será preciso recomeçar...” Enquanto falava, Gérard

abriu as cortinas, desligou o som, arrumou o espaço: “Arrumar tudo de novo, redistribuir os papéis, assumir o meu, preparar o de vocês: juízes, generais, bispos, camareiros, revoltosos...” Gérard foi trazendo para o centro do espaço as bolsas e

mochilas dos alunos: “Agora voltem para suas casas onde tudo será tão falso como aqui”. Blackout. O processo foi encerrado.

Para os alunos:

Fiquei confusa sobre quem eu era, não tinha pensado muito sobre quem meu personagem seria acabei achando que a identidade do meu personagem não surgiu durante o processo, e sim quando foi pedido para apresentar quem éramos (Schimid, 2011).

Ao descobrir que o que eu havia desenvolvido caiu por terra quando a identificação com o General foi anunciada. Faca de dois gumes. O que propõe a desordem ou o que propõe a ordem? (Martins, 2011). Cada grupo defendeu uma solução para o bordel em relação à revolução que ocorria do lado de fora, o que criou uma situação de conflito saudável e muito rica em termos de material para desenvolvimento da personagem e improvisação (Wiener, 2011). Neste dia houve novos desafios como assumir a identidade de um bispo, e isso realmente me instigou. Houve também mais proposição de jogo, com a eminente invasão das tropas à Casa de Ilusões. Isso gerou bastante ação interior e também ações físicas. Trouxe motivação e exigiu um raciocínio improvisacional (Spilhere, 2011). Para mim, foi muito claro decidir o que eu seria fora do balcão, e creio que inconscientemente, após repensar tudo o que fizemos no processo, as ações começam a se interligar de uma forma até estranha (subconscientemente, talvez) (Soares, 2011).