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2 O SENTIDO DE EXPERIÊNCIA NA PRÁTICA DO DRAMA: IMERSÃO E

2.1 PARTE 1 – EXPERIÊNCIA E IMERSÃO

2.1.2 Imersão

2.1.2.1 Cruzando fronteiras: Imersão VS Distanciamento crítico

As narrativas são objetos liminares, situados em uma zona fronteiriça entre uma realidade externa, que é construída ficcionalmente, e nossas próprias mentes. De acordo com Murray (2003, p. 103), as narrativas oferecem-nos a segurança de alguma coisa exterior a nós mesmos (pois, foi criada por uma outra pessoa), mas sobre a qual podemos projetar nossos sentimentos.

O contexto de ficção do drama opera neste limite, a narrativa teatral possui esta característica liminar, de ser um mundo externo que é fabricado, mas que se torna real pelas sensações, emoções e pensamentos que advém de estarmos envolvidos por ele. O que é real no universo ficcional não está lá, mas é dado, paradoxalmente pela imersão nele. O medo, a raiva, um sentimento de compaixão ou de ternura evocados por uma história não estão necessariamente presentes nessa história, mas surgem através de nosso envolvimento com ela. As sensações e as emoções conferem realidade, fazem com que o mundo virtual torne-se, por alguns instantes, real, caracterizando a experiência imersiva.

A partir destas considerações, constatamos que a elaboração de um contexto ou de um ambiente de trabalho potencialmente imersivo está ligado a estimular o participante no sentido de provocar sensações, emoções e pensamentos que são reais, mas que surgem de circunstâncias ficcionais. É neste sentido que a ênfase no sensorial pode ser entendida como uma qualidade que favorece a imersão.

A premissa é procurar envolver os integrantes do grupo com propostas, situações e formas artísticas que estimulem o imaginário16. O jogo interativo com formas e conteúdos leva o participante a reagir pela ocorrência de estados sensíveis e ideias que possibilitam que o virtual se adense, torne-se palpável. As emoções

16 O imaginário pode ser conceituado como a fonte de todo o simbólico, como um sistema de

representações formado por ideias e imagens que os homens construíram para si, dando sentido ao mundo. Sendo a capacidade humana para a representação do mundo, o imaginário comporta crenças, mitos, ideologias, conceitos, valores, é construtor de identidades e exclusões, hierarquiza, divide, aponta semelhanças e diferenças no social (Pesavento, 2003, pp. 43-4). De acordo com Gilbert Durand, este conjunto dinâmico de símbolos é responsável pelas impressões que norteiam e determinam nossas ações cotidianas individuais e grupais. As leis que governam este sistema simbólico e dinâmico composto por imagens-guias dotadas de coerência e sentido são de ordem consciente e inconsciente (Oliveira, 2011, p. 15).

despertadas tornam o mundo virtual, real, no instante da criação, e esta possibilidade indica uma experiência, indica algo que acontece a cada sujeito, que o toca.

No processo de construção de uma narrativa, o diálogo com as circunstâncias, a qualidade do envolvimento com objetos cênicos, fragmentos textuais e com informações fornecidas é particular a cada sujeito participante. Nesta perspectiva, ocorre ressonância entre o contexto ficcional e o contexto real, este enquanto história, identidade do sujeito e memórias.

Ryngaert (p. 89), ao avaliar a improvisação como uma instância de relacionamento entre sujeito e objeto, chama a atenção para a questão da instrução ou contribuição exterior no sentido de não restringir o processo da improvisação à livre expressão e espontaneidade do indivíduo. Para ele, faz-se necessário pensar a improvisação como uma prática que admite que seus conteúdos passam por subjetividades que os iluminam diferentemente. A questão colocada diz respeito à improvisação como um momento de confronto entre uma subjetividade assumida como tal e elementos objetivos. Estas considerações parecem-nos bastante apropriadas de serem associadas à maneira como a improvisação procede no drama. Dentro de um processo dramático, a improvisação só adquire todo o seu sentido num determinado contexto e dentro da proposta do professor; ela é sempre sustentada por condições e materiais diretamente ligados ou originados do contexto. Neste sentido, o jogo de interação entre a subjetividade do aluno e as opções e as propostas do professor é fundamental para que as situações dramáticas sejam investigadas e a narrativa construída.

De acordo com Ryngaert:

A improvisação me interessa como o lugar do encontro de um objeto estrangeiro, exterior ao jogador com o imaginário deste. Ela provoca o sujeito a reagir, seja no interior da proposta que lhe é feita, seja em torno da proposta, explorando amplamente a zona que se desenha para ele, segundo o modo como sua imaginação é convocada. Não se trata de criar uma hierarquia, salientando que o objeto exterior (trate-se de uma situação, de um espaço, de um texto, de uma música) tem mais ou menos importância do que a imaginação do improvisador, ou que o sujeito fará aparecer sentidos totalmente inovadores durante a experiência. Aposta-se, antes de mais nada na confrontação entre uma proposta e o sujeito num determinado momento de sua experiência (Ryngaert, 2009, p. 90-1).

Essas palavras corroboram a reflexão sobre a natureza e o significado da improvisação no drama e as suas relações com a questão da experiência. Essa

reflexão leva-nos a pensar novamente sobre a importância do papel do professor em criar um espaço que seja fértil em provocar o sujeito, em criar momentos, situações e condições que façam vir à tona as particularidades do sujeito, favorecendo a ocorrência de experiências. A provocação leva ao confronto e a experiência surge desse momento de confronto entre o sujeito, as condições ficcionais e os materiais introduzidos para a construção da narrativa. Provocação e confronto, assim sendo, podem ser traduzidos como um deslocamento constante entre as fronteiras da ficção e da realidade, onde o devir de memórias da dimensão pessoal contribui para os processos de construção de narrativas.

O devir de memórias promove o distanciamento necessário às ações da experiência. Esse desvio do campo virtual traz a possibilidade de contextualização e investigação de uma realidade imanente, a nossa própria realidade; de uma realidade desconhecida, por ironia, nossa própria realidade.

Ao tratar da questão da experiência, Walter Benjamin (1994a, 1994b) e, posteriormente, outros filósofos, como Jorge Larrosa (2002) e Giorgio Agamben (2008), são unânimes em afirmá-la como aquilo que não se sabe, mas que, por contradição, integra o sujeito. Benjamin (1994c) talvez tenha sido o primeiro a falar da metamorfose da percepção devido ao impacto da tecnologia e, por conseguinte, propor a ideia de refuncionalização da arte17 e a sua transformação em um

instrumento de acesso a esse mundo. Na proposta benjaminiana, a arte pode ser não propriamente um caminho, mas uma trilha para experiências de acesso a nós mesmos e ao mundo em que vivemos. Através da arte, podemos empreender uma análise crítico-reflexiva e sensibilizar-nos a lançar um olhar renovado para a vida lá

fora. A experiência, como algo que é desconhecido, acontece e revela-se pelo

percurso de rastros ou vestígios do passado que orientam sensivelmente a direção rumo ao presente e ao futuro.

17 Laymert Garcia dos Santos, em Modernidade, pós-modernidade e metamorfose da percepção

(2005, pp.71-84), argumenta que Benjamin destacou a diferença moderna no plano da percepção por meio da oposição entre dois valores conferidos à obra de arte: o de culto e o de exposição. O primeiro refere-se ao modo como o homem percebe (desde o paleolítico até o final do Ancien Regime), a imagem artística: como uma presença mágica dotada de uma aura; a imagem é cultuada porque permite o acesso a uma realidade transcendente, a uma supra-realidade. Por outro lado, o valor de exposição, predominante na modernidade, caracteriza-se por uma “refuncionalização” da arte, onde o homem percebe outro tipo de imagem; uma imagem cuja presença é dessacralizada, que se expõe uma vez que se constitui como instrumento de acesso a este mundo, a uma realidade imanente, continuamente transformada pela técnica. (Santos, 2005, p. 72).

A memória, aqui, tem um papel de destaque. Vista como o elemento de interlocução neste processo de leitura do mundo, ela pode ser pensada como um elemento deflagrador de experiências no âmbito do ensino do teatro, na medida em que se torna o substrato para a leitura do contexto e das situações, para as ressignificações das materialidades e para as ações e atitudes dos alunos em resposta às circunstâncias dadas. O mergulho no jogo da linguagem teatral implica manipulação dos variados signos que compõem o discurso cênico em ressonância com os registros mnêmicos.

O mergulho na corrente viva da linguagem acende também a vontade de lançar um olhar interpretativo para a vida, exercitando a capacidade de compreendê-la de maneira própria. Podemos conceber, assim, que a tomada de consciência se efetiva como leitura de mundo. Apropriar-se da linguagem é ganhar condições para esta leitura (Desgranges (2006, p. 23).

Diante do exposto, a imersão pode ser pensada na perspectiva de processos de tensão entre envolvimento e distanciamento. Estar envolvido pelo ambiente ficcional requer suspender a descrença e deixar-se levar pelas condições ficcionais propostas. Requer também atenção a tudo que ali acontece, requer saber o porquê dos acontecimentos, requer questionamento. Quando Madame Irma e seu assistente Gérard, por exemplo, interrompem uma noitada no Balcão para dar a notícia de que a casa foi sitiada pelos revolucionários, os clientes são desafiados a enfrentar um problema que é a impossibilidade de sair dali. O que fazer diante de tal fato?18 Uma situação como esta gera discussão, confronto de ideias e dá margem a distintas interpretações. Neste sentido, estar envolvido e imerso implica também encontrar saídas e soluções, exige juízo de valor e posicionamento, o que revela o distanciamento crítico-reflexivo.

A questão do distanciamento pode ser analisada no drama pela própria especificidade do processo ou pela maneira como ele é desenvolvido, o que aponta para a presença de um conflito como estopim para o desenrolar das situações, para o papel do professor como mediador e para a dupla função exercida pelo participante, de atuante e de espectador.

O conflito, ao gerar no participante a necessidade de posicionar-se ou resolver uma situação, leva a um desvio do virtual para o real, permitindo a incorporação da dimensão pessoal na construção da narrativa. O trânsito entre os

18“O Balcão” foi um dos processos de drama realizados nesta pesquisa; será descrito em maiores

contextos virtual e real permite ao participante atualizar as condições e circunstâncias propostas pela ficção para questões que lhes sejam significativas. Para Cabral (2007, p. 49), a apropriação dos conteúdos do drama traz a possibilidade de refletir sobre seus significados ocultos, padrões de comportamento e aspectos da identidade.

O papel do professor face à questão do distanciamento está relacionado com a sua intervenção ao longo do processo: ao propor novas ações dentro de uma mesma situação; ao direcionar o foco para determinadas opções dos atuantes e questioná-las; e ao identificar e selecionar aspectos do texto em construção que tenham ressonância com o contexto real dos participantes. Sobre esta consideração ressoam as características da abordagem de drama praticada por Dorothy Heathcote. A interferência e a mediação, características fundamentais de seu trabalho, tinham por objetivo a compreensão do aluno sobre questões em foco e a comunicação do entendimento.

Na prática desta professora e pesquisadora, existia um espaço para que as experiências dos alunos pudessem ser não apenas inseridas, mas também questionadas, intensificando a dimensão crítica. O seu método dialético de trabalho era caracterizado pelo processo contínuo de introdução e atualização de conteúdos através das convenções teatrais e da intervenção do professor dentro de enquadramentos dramáticos (Cabral, 1996, p. 215). Aquilo que os alunos diziam ou mostravam era questionado através da introdução de novas convenções: confrontos espaciais, signos visuais de linguagem (cartões, posters, banners, rótulos, manchetes), troca de enquadramentos e papéis, foco no gesto. Estes elementos introduzidos traziam aspectos do conteúdo que ainda não haviam sido considerados.

O seu estilo de intervenção oscilava constantemente entre o nível metodológico e ideológico. A intervenção, na esfera metodológica, estava centrada em estruturar e sequenciar o trabalho: cada tarefa proposta colocava em cheque a criação anterior trazendo à tona as implicações das atitudes tomadas pelos alunos na tarefa precedente. Quando no plano ideológico, a intervenção enfocava o leitor (aluno): ela aceitava todas as contribuições dos alunos e interagia com elas através de desafios propostos pelas tarefas introduzidas a seguir. O trabalho era impulsionado pela percepção e contribuição do aluno sobre a situação em questão (Cabral, 1996, p. 219).

O estilo de mediação de Heathcote fornece pistas para o entendimento do modo como o distanciamento processa-se no drama. A intervenção, caracterizada em desafiar o participante através do estabelecimento de novas perspectivas e enquadramentos, impulsiona a busca por significados através da reflexão crítica. A sua abordagem dialética promovia um processo contínuo de ampliação e aperfeiçoamento da percepção dos alunos sobre as questões investigadas.

Finalmente, o distanciamento pode ser observado na condição dada ao participante de assumir a dupla realidade de atuante e espectador. Essa condição, que perpassa todo o processo, pode ocorrer de duas maneiras: simultaneamente – na perspectiva do self spectator ou espectador de si mesmo, que, segundo Cabral (2009a, p. 39), foi proposta por Gavin Bolton; ou alternadamente – quando os participantes revezam-se entre observadores e atuantes.

A ideia de self spectator, que aponta para um espectador implícito, é vista como uma contribuição para manter o envolvimento com o processo dramático evitando a separação entre ação e reflexão. Esta ideia – baseada na noção de percipiente, forjada por Bolton através da combinação de participante e espectador – serve para designar o participante ativamente engajado naquilo que ele observa enquanto responsável por criar a cena e apresentá-la. Desta forma, o papel de espectador é desempenhado em ação, sem interromper o processo, em que o atuante é espectador de si mesmo e de suas ações. Para O’Neill, se sairmos completamente da ação para iniciar a reflexão, podemos descobrir que não há nada lá para ser refletido. Neste sentido, o estado mental de ser espectador deve estar presente no fazer (Cabral, 2009, pp. 38-9).

A condição de observador também é desempenhada na dinâmica do trabalho quando o coordenador determina o grupo que está com o foco da cena e o grupo dos observadores. Este foco pode variar bastante, sendo que, normalmente, não existe uma delimitação definitiva de quando se atua e quando se observa. Conforme Vidor (2010, p. 33), a questão do envolvimento do aluno no processo aproxima-se a este encontro com algo que lhe chama a atenção e lhe estimula como apreciador, ao mesmo tempo em que o encoraja a atuar. O fato de o professor assumir personagens amplia a oportunidade de o aluno ocupar o seu lugar de espectador, além de funcionar como um estímulo à ação.

Todas estas ideias acerca da experiência estética e da imersão levaram-me a investigar quais procedimentos e estratégias poderiam ser utilizados a fim de

promover experiências com o drama no âmbito do ensino do teatro e também da ação cultural. Em outras palavras, de que maneira o artista-pedagogo pode proporcionar a imersão e o envolvimento sensível em processos de aprendizagem teatral e ao mesmo tempo o distanciamento crítico-reflexivo? Essas investigações serão descritas mais adiante. Ainda neste capítulo, pretendo aproximar os conceitos de experiência e memória na tentativa de formular uma base teórica para estas investigações e também para o que já foi colocado nos termos da experiência estética e da imersão.

2.2 PARTE 2 – EXPERIÊNCIA E MEMÓRIA