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2 O SENTIDO DE EXPERIÊNCIA NA PRÁTICA DO DRAMA: IMERSÃO E

2.2 PARTE 2 – EXPERIÊNCIA E MEMÓRIA

2.2.2 A ativação da memória na criação dramática pelas tensões entre

2.2.2.1 A memória na criação de narrativas

Um dos princípios que regem a prática do drama é a construção de ficções. As histórias exploradas pela atividade dramática são enquadradas no aqui-agora do momento da experiência estética e direcionadas à resolução de problemas e situações em um ambiente de ficção, permitindo a construção de narrativas.

O envolvimento com narrativas cênicas é intermediado pelo capital cultural dos participantes, pelas histórias de vida e por memórias. O capital cultural constitui o componente do contexto familiar, escolar e religioso que representa a parte imaterial e a essência das disposições intelectuais de um indivíduo (Bourdieu apud Souza, 2011, p. 113). Histórias de vida e memórias inserem-se na narrativa de forma indireta, seja através das decisões e opções do participante frente às situações ou da sua exposição de opiniões diante daquilo que está em jogo.

A intertextualidade entre história pessoal e ficcional ocorre a partir de posicionamentos ou ações realizadas pelo papel no contexto de ficção. As experiências passadas inserem-se na forma narrada e para que o contexto estabelecido permita o cruzamento do real com o imaginário, é necessário, segundo Cabral (2006, p. 13) “que a situação ou as circunstâncias exploradas sejam convincentes; tanto em relação aos temas/assuntos, quanto à ambientação e quanto aos papéis selecionados”.

A participação efetiva do integrante, o seu engajamento e a imersão estão ligados a estes pontos de tensão entre realidade e ficção, uma vez que as experiências passadas alimentam o processo de construção ficcional. Essa reflexão permite-nos considerar o drama como uma atividade de inventar e contar histórias através de relações estreitas com as subjetividades que integram o grupo de trabalho. Ao tecer suas considerações sobre narrativa, John Somers pontua:

Contar e ouvir histórias nos permite três processos fundamentais: organizar momentaneamente a experiência em uma série de memórias; prever um futuro; vivenciar através da história dos outros o que nunca experimentamos. O primeiro indica noções de quem somos: identidade enraizada na memória. O segundo nos permite ter esperança, expectativas e organizar nossas ações. O terceiro forma a base de grande parte de nossa aprendizagem e educação formal (Somers, 2010, p. 176).

Dentro deste contexto, a concepção de um discurso narrativo envolve questões de identificação em fricção com o imaginário. Para David Novitz (2001, p. 143), as artes estão mais intimamente ligadas ao senso de identidade individual que poderíamos supor; pois quando falamos sobre nós mesmos, utilizamos a mesma linguagem das artes visuais e literárias, valendo-nos tanto de imagens, figuras e visões que temos de nós, como também de histórias e narrativas que não apenas formam, mas também transmitem nosso senso de ser. Assim, ao afirmar que construímos nossa história pessoal da mesma maneira que um artista cria um trabalho de arte, Novitz considera a criatividade como um atributo da memória nesse processo de seleção e ordenação de experiências em um arquivo que se torna o significante de nossa identidade. Sob tal perspectiva, as experiências que acumulamos ao longo de nossa vida são arquivadas e, neste percurso, somos afetados por outras histórias que encontramos. Estas são absorvidas e podem reforçar ou confrontar-se com a história pessoal e desta condição surge a possibilidade de modificação da nossa própria história, uma vez que as transformações iniciam-se a partir de novos olhares lançados sobre as situações vividas.

Todas estas considerações autorizam-nos o entendimento de que a criação de ficções pode ser observada como um processo de reconstrução pelo devir das experiências do passado e, neste sentido, ele é um fenômeno de representação.

Ao abordar a questão das representações construídas sobre o mundo, Sandra Jatahy Pesavento, historiadora cultural, considera que indivíduos e grupos dão sentido ao mundo por meio das representações que constroem sobre a realidade. As representações são dotadas de força integradora e coesiva, constituindo matrizes geradoras de condutas e práticas sociais que fazem com que os homens percebam a realidade e pautem a sua existência (Pesavento, 2005, p. 39).

Para esta autora, a ideia central da representação é a da substituição, de

estar no lugar de algo: “é presentificação de um ausente”. Ela considera que o conceito de representação é ambíguo, uma vez que na relação, que se estabelece entre ausência e presença, a correspondência não é da ordem da transparência, pontuando que “a representação não é uma cópia do real, sua imagem perfeita, espécie de reflexo, mas uma construção feita a partir dele” (p. 40).

Desta forma, a realidade é construída ou substituída pelo patrimônio vivencial; e o resgate de memórias, emoções e saberes que concorre para tal processo é uma abstração que acontece de maneira imaginativa e criativa, pois “a representação envolve processos de percepção, identificação, reconhecimento, classificação, legitimação e exclusão” (p. 40). Há uma exposição, uma reapresentação de algo que se coloca no lugar de outro; este que se expõe, o representante, guarda relações de semelhança, significado e atributos que remetem ao oculto, o representado.

Este princípio pode ser desdobrado em relação à construção de ficções próprio do fazer teatral. Se a própria realidade é uma representação, a ficção também o seria, mas e o instante da criação? Este momento da experiência onde a criação torna-se concreta não seria também uma realidade? Pensando através de um escopo mais restrito, o processo de criação da atividade do drama, mesmo amparado por uma atmosfera de ficção, pode caracterizar-se como a construção de uma realidade pelo fato de que a ficção constrói-se no aqui-agora da atividade. Neste instante que a experiência ficcional adquire concretude, a ficção torna-se realidade para todos aqueles que estão envolvidos, seja no fazer, seja na apreciação.

Assim sendo, estas constatações proporcionam-nos o entendimento de que, nas construções dramáticas, realidade e ficção não se estabelecem como polos distintos, por este sentido de representação que possuem; e assim, a questão da representação insere-se na construção de narrativas em regimes de verossimilhança e de credibilidade, e não de veracidade.

Donald Blumenfeld-Jones (1995, p. 31) traz alguns apontamentos interessantes para esta discussão. Para o autor, fidelidade e credibilidade são critérios mais adequados para julgar tanto a arte como a investigação de narrativas. A associação entre estes termos, na perspectiva da pedagogia do teatro, envolve a narrativa como uma forma de investigação, onde histórias significativas acerca das relações humanas são focalizadas dentro de distintos contextos (Cabral, 2004a, p. 44).

Se Blumenfeld-Jones define a fidelidade como intersubjetiva (que implica um comum acordo entre narrador e receptor) e como ressonância entre história narrada e seu contexto sociocultural, o ato de contar histórias caracteriza-se como uma reconstrução proposital de eventos não apenas na perspectiva do narrador, mas também do receptor. Por sua vez, a credibilidade da narrativa está associada à sua

capacidade de ser convincente. Para Blumenfeld-Jones (p. 31), o artista precisa ser seletivo em apresentar as características que ele acredita que encarnam a situação, com o objetivo de transmitir uma perspectiva específica. Para atribuir credibilidade, o público deve experimentar uma congruência com suas próprias experiências de situações semelhantes, paralelas ou análogas. No entanto, o receptor não tem como derivar o mesmo significado que o significado original do artista; mas é exatamente neste ponto que a credibilidade da narrativa faz-se presente, quando o receptor constrói os seus próprios significados.

A partir desta perspectiva, fidelidade e a credibilidade podem ser constatadas como fundamentais neste processo de tomar uma situação e reconstruí-la a fim de conferir significados. Esta condição faz ressonância ao ideal de apropriação de uma história e a sua transmissão a partir de uma sabedoria própria ao sujeito, defendida por Benjamin (1994b) no texto O Narrador. A narração, nesta perspectiva, está ligada a contar uma história pelo viés da experiência do narrador, transmiti-la através de considerações pessoais, contaminada por emoções, desvelando o conhecimento do sujeito sobre as coisas, atribuindo-lhe propriedade e autoridade.

Estreitando o foco sobre o processo de drama, o intercurso de memórias nas construções de narrativas pode ser visto como um depoimento pessoal (indireto) do participante durante o processo. Neste sentido, as memórias estão relacionadas com a identificação de sentidos e significados no aqui-agora da experiência. Os conteúdos da memória e a maneira como estes conteúdos são articulados pelo narrador contribuem diretamente para a fidelidade e a credibilidade dos fatos/eventos narrados, uma vez que fidelidade e credibilidade podem ser vistos como atributos fundamentais neste processo de tomar uma situação e reconstruí-la conferindo significados.

Ainda, em relação às questões de fidelidade e credibilidade das narrativas, Cabral (2004a, p. 45), a partir de Madeleine Grumet, afirma que a fidelidade e não a verdade é a medida das histórias e memórias. A verdade refere-se ao assunto narrado – ao fato que ocorreu na situação em foco; enquanto que a fidelidade corresponde ao significado deste fato para o seu narrador, o que se refere à dimensão do pessoal. Neste aspecto, a autora também considera o espaço da subjetividade na fidelidade das narrativas. Porém, adverte que se pode falar também na fidelidade do narrador em relação ao contexto em que ocorreu a situação narrada, onde a fidelidade caracteriza-se como uma obrigação entre estas partes.

Aqui, tratamos novamente do vínculo intersubjetivo: entre o narrador original e o contexto da narrativa.

A dificuldade está em manter fidelidade à história pessoal de um narrador e àquilo que este narrador foi incapaz de articular sobre a história e seus significados (o contexto no qual ela ocorre). Além disso, o que o narrador original contou de sua história está associado aos seus objetivos ao contar aquela história, revelando que o que ele narrou foi também uma reconstrução. Aqui, outra consideração faz-se necessária em relação à construção da narrativa através do drama dentro desta perspectiva de reconstrução: o condutor do processo deve lembrar que ele também tem intenções e está reconstruindo a história, assim como os demais participantes, uma vez que o trabalho desenvolve-se em âmbito coletivo. Neste sentido, Cabral (2004a, p. 46) sublinha que a investigação de memórias dentro de contextos dramáticos fica situada entre intenções e reconstruções; e é isto que a situa como processo artístico.

Por esta linha de reflexão, a reelaboração de conteúdos mnêmicos traduz a experiência do vivido, mas também do não vivido. A memória ao trazer à tona informações de situações já experimentadas no passado, assim o faz por situações análogas ao presente. Desta forma, se as imagens do passado arquivadas na memória afluem durante o processo criativo, está em jogo aquilo que vivemos e também as suposições, os desejos e as intuições sobre aquilo que vivemos. Neste sentido, a combinação entre memória, percepção e imaginação precisa ser investigada.