• Nenhum resultado encontrado

2.1 A Gastronomia como Património Imaterial

A alimentação, por ser um elemento indispensável à sobrevivência humana, tem uma relação intrínseca com o homem, que ultrapassa o sentido nutricional, e revela um forte caráter cultural, através de todo o processo de produção e confeção dos alimentos, bem como pelos diversos contextos (ambiental, económico, histórico etc.) em que cada cultura se fundamenta.

Para Álvarez, (2002, p. 13) “a performance alimentar não implica um ato isolado, sem conexões, mas torna-se um terreno onde o homem biológico e o homem social estão intimamente ligados e mutuamente envolvidos. Este ato envolve um conjunto múltiplo de condicionamentos, os quais são unidos por interações complexas. São exemplos: condicionamentos e regulamentações de caráter termodinâmico, metabólico, psicológico, condições ecológicas, recursos disponíveis, organização produtiva, divisão do trabalho, tecnologia, capacidade de processar, armazenar e conservar os produtos, técnicas de cozinha, elementos ideológicos, preferências e aversões individuais e coletivas, sistemas ou códigos de representações (prescrições e proibições, associações e exclusões, categorias de saúde e doença) etc.”.

A integração desses fatores permite compreender o conceito mais amplo de gastronomia, que Brillat Savarin (1995, p. 57) define como “um conhecimento fundamentado de tudo o que se refere ao homem, na medida em que ele se alimenta”. Nessa perspetiva, o autor permite compreender o universo gastronómico não só através dos alimentos e bebidas, mas também pelas práticas, conhecimentos, saberes, rituais, utensílios, dentre muitos outros que o constituem.

Dessa relação homem e natureza emergem sistemas simbólicos cheios de significados culturais, sociais, étnicos, dentre outros, que tornam a gastronomia um instrumento valioso para refletir sobre os povos(Costa, 2011). Para Montanari(2008, p. 97) “assim como a língua falada, o sistema alimentar contém e transporta a cultura de quem a pratica, é depositário das tradições e da identidade de um grupo. Constitui, portanto, um extraordinário veículo de autorrepresentação e de troca cultural”. Nessa perspetiva, o autor considera a comida como cultura.

Lévi-Strauss(2004), através da teoria estruturalista, propõe uma reflexão mais aprofundada dessa interação, que revela a dimensão cultural da alimentação. Em “Le

15

Triangle Culinaire”, o autor destaca que a interferência humana a partir da confeção dos

alimentos pode traduzir os aspetos culturais de um povo. Para além de observar o que se come, ele procurou perceber como se come.

Assim, Strauss propõe, a partir de uma analogia entre o sistema culinário e a língua, um triângulo culinário, no qual o vértice do lado direito representa o “apodrecido”, o do lado esquerdo “o cozido” e o topo, o cru. Para o autor, em relação à cozinha, “o cru constitui o polo não marcado e os dois outros o são acentuadamente, mas em direções opostas: com efeito, o cozido é a transformação cultural do cru, enquanto o apodrecido é uma transformação natural dele”.

Desse modo, encontra-se, no triângulo culinário, uma dupla oposição, que se refere ao elaborado/não elaborado, à cultura/natureza (Lévi-Strauss, 2004).

Figura 1 - O Triângulo Culinário

Fonte: Adaptado de Strauss, 2004

A teoria do triângulo culinário organiza o modo de refletir sobre a transformação dos alimentos, entretanto se apresenta limitada ao considerar que apenas os alimentos cozidos são fonte de cultura, uma vez que sua transformação foi mediada pelo homem. O próprio autor considera que a sua descrição pode ser ainda mais aprofundada, ressalvando que apenas uma observação direta é que pode dizer o que cada um pensa e considera cru, cozido ou apodrecido (Lévi-Strauss, 2004, p. 25).

Deve-se destacar que, embora os estados cru ou selvagem sejam assumidos como símbolos de escolha não culturais, eles revelam-se fortemente impregnados de cultura(Montanari, 2008). O sashimi, uma especialidade crua da cozinha japonesa, é um exemplo concreto de que a sua preparação é constituída por diversos aspetos culturais, como a escolha do peixe, o corte, o modo de servir, próprios desse povo.

16

Por outro lado, o apodrecido, é um estado qu\e pode ou não decorrer do processo natural. A decomposição de determinados alimentos, de acordo com cada cultura, pode também ser provocada pelo homem. Destaque-se a produção dos queijos Roquefort na França ou do Provolone na Itália, em que são injetados fungos (bolores) na massa, para que esse queijo alcance uma textura e sabor desejável.

Nessa perspetiva, pode-se considerar que ambos os estados (cru, cozido e apodrecido) estão relacionados com escolhas culturais e podem ser condicionados por diversos fatores, como clima, solo, produtos agrícolas, crenças, dentre muitos outros(Pinto, 2012a; Reinhardt, 2002). Assim, “cada cultura elege o que é permitido e o que é proibido. Para Corner(2009, p. 19) “a grande variedade de escolhas alimentares humanas procede, sem dúvida, em grande parte, da variedade de sistemas culturais”.

Na ótica de Schlüter (2003, p. 31), a alimentação pode atuar ainda como um fator de diferenciação cultural, pois, ao comer, incorporam-se não apenas as características físicas dos alimentos, mas também seus valores simbólicos e imaginários, que, à semelhança das qualidades nutritivas, passam a fazer parte do próprio ser. Assim, a comida não só é boa para comer e para pensar (na adjetivação de materialistas e estruturalistas), mas inclusive muito boa para ser e se diferenciar.

A alimentação ao longo da história da humanidade tem-se destacado como esse elemento revelador dos povos e de classes sociais. Recorde-se que na Idade Média, as camadas dominantes da sociedade demonstravam sua superioridade face aos camponeses, através da abundância de pratos nos banquetes. Nesse mesmo período, a qualidade dos alimentos também apresentava-se como um fator de diferenciação. O nobre se qualificava sobretudo como um comedor de carne (especialmente de caça, alimento mais diretamente ligado à ideia de força), enquanto a imagem do camponês estava associada aos frutos da terra (cereais e hortaliças)(Montanari, 2008).

Nesse âmbito, Poulain(2008, p. 46) ressalva que “o sentimento de pertença ou diferença social se constrói baseando-se nas práticas alimentares, vitalmente essenciais e cotidianas. Graças à cozinha, se aprendem os costumes sociais mais fundamentais e os modos à mesa, e cada sociedade transmite e permite a interiorização de seus valores”. Para Schlüter (2006), o prato está à vista, mas sua forma de preparação e o significado para cada comunidade são aqueles aspetos que, embora não aparentes, lhe dão um caráter distintivo.

É com base nesses diversos aspetos culturais que a gastronomia se constitui como um património imaterial. Para a Unesco(2003, p. 5), o património imaterial são “todas as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os

17

instrumentos, objetos, artefactos e lugares culturais que lhes são associados – que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu património cultural”.

A gastronomia, assim como qualquer legado cultural, só passa a ser considerada património cultural quando é ativada socialmente, quando é reclamada como uma herança que se quer preservar(Norrild, 2006). Essa ativação é feita por órgãos oficiais de preservação e salvaguarda do património.

A nível internacional, é a Unesco o órgão responsável pela salvaguarda do património imaterial. Na lista de inscrição deste património, já foram inscritas algumas cozinhas e expressões culturais relacionadas com a gastronomia. Cite-se, como exemplo, a cozinha francesa (2010), a cozinha mexicana (2010) e a cozinha japonesa – Washoku (2014),

Paach Ceremony – celebração de colheita do milho na Guatemala (2013), a Cultura e

Tradição do Café Turco (2012), Círio de Nazaré (almoço do Círio – 2013), o Mibu no Hana Taue, ritual of transplanting rice in Mibu, ritual de plantação de arroz em Hiroshima (2011), a Shrimp fishing on horseback in Oostduinkerke – pesca artesanal com cavalo na Bélgica (2013), a Dieta Mediterrânia (Croácia, Itália, Portugal, Marrocos, Espanha, Grécia, Chipre) (2013)1, dentre muitos outros.

No Brasil, é o Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) o responsável pelo registo dos bens imateriais. Desde 2002, este órgão tem feito registos do património gastronómico brasileiro. Na lista dos bens registados, constam o Ofício das paneleiras de

Goiabeiras (2002), Ofício das Baianas de Acarajé (2005), a Feira de Caruaru (2006), modo artesanal de fazer queijo de Minas (2008), Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis – Goiás (os jantares da festa – 2010), Ritual Yaokwa do Povo Indígena Enawene Nawe –(ritual de pesca, 2010), Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro

(2010), Festa do Divino Espírito Santo de Paraty (o almoço do Divino, distribuição de carne abençoada e de doces – 2013) e a Produção Tradicional e Práticas Socioculturais

Associadas à Cajuína no Piauí (s/d)2.

Embora sejam os órgãos ligados ao património que formalizam o processo de salvaguarda do património gastronómico, é a comunidade, ou parte dela, que elege o que deve ser preservado. Com efeito, a escolha do que deve ser ou não bem patrimonial é

1 http://www.unesco.org/culture/ich/index.php?lg=en&pg=00559

18

conflituosa, primeiramente por que nem tudo é património, mas qualquer coisa pode se tornar património(Howard, 2003), e porque todo processo de escolha é excludente, assim, os bens definidos podem não representar todo o grupo social, mas apenas parte dele (Canclini, 1999; Ashworth and Larkham, 1994; Graham & Howard, 2008).

Esse processo de patrimonialização pode envolver ainda diversos interesses e apropriações divergentes, que criam conflitos entre a comunidade, o Estado e o setor privado. O património é um elemento com elevado valor cultural e de “propriedade” das comunidades locais, é uma construção socia(Prats, 1998), formada por atribuição de valores, funções e significados complexos e repletos de dilemas(Pedro & Una, 2007, p. 37).

Para (Silva, 2000) é uma construção social, ou se quiser cultural, porque é uma idealização construída. Aquilo que é ou não é património depende do que, para um determinado coletivo humano e num determinado lapso de tempo, se considera socialmente digno de ser legado a gerações futuras. Trata-se de um processo simbólico de legitimação social e cultural de determinados objetos, que conferem a um grupo um sentimento coletivo de identidade. Neste sentido, (Dias (2006) considera o património cultural como uma expressão mais explícita da identidade cultural de uma comunidade. No caso da gastronomia, de acordo com Alvarez (2002), o processo de apropriação e identificação dos alimentos se inicia a partir das escolhas que o consumidor faz (nos supermercados, nas feiras, nos mercados tradicionais etc.), dos alimentos que deseja usar, quer por razões de custos/benefícios quer por constituírem a base de uma cozinha. O segundo momento de seleção desenvolve-se na preparação da comida, em que são eleitos ingredientes a partir de um propósito de confecionar pratos que estejam relacionados com um sistema culinário, que está envolvido por diversas variáveis, tais como classe ou sector social, etnia, sexo, religião ou profissão e até mesmo político e / ou unidade territorial e do Estado, região e localidade.

Para Álvarez, (2002, p. 18) “é neste percurso que vai desde o mercado ou pomar, até a boca, que se produz um processo de patrimonialização onde intervém um imaginário construído por sobreposição de diferentes referências identitárias. Indivíduos e grupos constroem o património através da coleção de objetos e mensagens (incluindo as culinárias) com as quais se identificam a si mesmos e aos outros. Com eles, se afirma a tradição e os gostos são definidos”. E nesse contexto se desenvolvem as identidades gastronómicas.

19