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2.2 O Património Gastronómico e as Identidades Culturais

A gastronomia, por ser um elemento de expressão cultural que está intrinsecamente ligado ao quotidiano do homem, tem naturalmente uma forte relação na formação das identidades culturais. Na ótica de Houaiss (2003), citado por Araújo (2014, p. 23), as diversas conceptualizações de identidade cultural, de um modo geral, comungam do fato de que a identidade é o que nos diferencia, o que nos torna unos, a identidade é saber quem somos. Trata-se de um conjunto de características e circunstâncias que distinguem um ser, uma região ou um país, e graças às quais é possível individualizá-lo.

De acordo com Maciel (2005, p. 54),“a alimentação, quando constituída como uma cozinha organizada, toma-se um símbolo de uma identidade, atribuída e reivindicada, por meio da qual os homens podem se orientar e se distinguir. Mais do que hábitos e comportamentos alimentares, as cozinhas implicam formas de perceber e expressar um determinado modo ou estilo de vida que se quer particular a um determinado grupo”. É nesse sentido que, para Müller(2012, p. 48), “comer é reconhecer-se, sendo um ato simbólico, a partir de sinais, de cores, de texturas, de temperaturas e, portanto, de estética. Consiste em um ato que une memória, desejo, fome, significado, sociabilidade e ritualidades próprias das experiências vividas”. Neste contexto, Santos (2007) complementa que uma comida diferencia-se de outra também pelo significado dos lugares, dos momentos e pela forma de preparar e servir os alimentos, sendo a gastronomia local um elemento identificador de cultura, que delimita tempo, espaço, forma e hábitos alimentares.

Schlüter(2003a, p. 32)também destaca que a alimentação “é um fator de diferenciação cultural, que permite a todos os integrantes de uma cultura (sem importar o seu nível de renda) manifestar sua identidade”. Para esta autora, “a identidade é uma construção simbólica, uma forma de classificação que cria uma posse”. “A identidade também é expressa pelas pessoas através da gastronomia, que reflete suas preferências e aversões, identificações e discriminações, e, quando imigram, a levam consigo, reforçando seu sentido de pertencimento ao lugar de origem”.

Nesse contexto, Savarin (1995) reconhece a gastronomia como um elemento identitário, porque está condicionada por valores culturais e códigos sociais, sob os quais as pessoas se desenvolvem. Com essa representatividade, a gastronomia não será apenas proporcionadora de prazeres palatais, mas também geradora de conhecimentos culturais, proporcionando ao homem status social e capacidade de convivência e relacionamento com diferentes sociedades(Müller, 2012, p. 49).

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A valorização da gastronomia no âmbito global, como um elemento de identificação/representação cultural, emergiu especialmente com a consciência dos efeitos deixados pela globalização e pelo avanço das novas tecnologias ligadas à industrialização dos alimentos. Esses acontecimentos marcaram e alteraram profundamente os padrões gastronómicos das sociedades e, consequentemente, afetaram e continuam a afetar as identidades (Costa, 2011; Hall, & Mitchell, 2001; Hernandez, 2005)

No que se refere ao advento da globalização, Hall & Mitchell, (1998) destacam três momentos determinantes de mudanças nas cozinhas regionais. O período inicial refere- se ao mercantilismo, onde se desenvolveu uma grande comercialização de alimentos provenientes de outras culturas (período das grandes navegações). Produtos da Ásia e América foram trazidos para a Europa e vice-versa. Alimentos que atualmente são reconhecidos na Europa como representantes identitários de determinadas cozinhas, foram trazidos principalmente da América: batatas, tomate, pimentos etc.( Hall & Mitchell, 2002, p. 75).

O segundo momento que deixou profundas marcas na alimentação em âmbito mundial, refere-se às migrações em grande escala, as quais decorreram com maior intensidade, do século XVII ao século XX. Ao se deslocarem para novos territórios, as pessoas levavam consigo conhecimentos, saberes, animais, dentre muitos outros produtos. Desse modo, ao interagirem com a cultura local, integraram pratos típicos de sua origem, novos alimentos às receitas locais, novos modos de confecionar os alimentos, novas formas de sociabilidade à mesa etc. A mudança decorrente desse período afeta quer as identidades dos imigrantes quer a população local, através da fusão dos hábitos culturais da alimentação de cada um (M. Hall & Mitchell, 2002, p. 75).

A colonização brasileira é um exemplo concreto desse segundo acontecimento. Quando decidiram ocupar definitivamente as terras brasileiras, os portugueses trouxeram bois, vacas, diversas sementes, modos de confecionar os alimentos dentre muitos outros produtos. Entretanto, pelas diferenças de clima e solo, dentre outros fatores, nem sempre foi possível fazer pratos exatamente como se estivessem em terras lusas. A fusão com a cultura alimentar indígena, e logo depois com a africana, deu origem à formação-base da cozinha brasileira(Martins, 2009). Deve-se sublinhar ainda que não só o período colonial fez parte dessas transformações, mas todo o contexto (histórico, económico, social) que até o século XX, impulsionou o deslocamento de pessoas para fora de seu local de origem ((Hall & Mitchell, 2002, p.75),

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O terceiro momento refere-se ao contexto atual e engloba os avanços nas tecnologias,

quer na comunicação, nos transportes, na industrialização dos alimentos etc. Estes

e diversos outros fatores, frutos do mundo contemporâneo, estão cada vez mais a permitir uma proximidade com a comida do “outro”. Em consequência, esta quebra de fronteiras impulsionou uma homogeneização que, de certo modo, pôs em risco a identidade gastronómica das culturas (Hall & Mitchell, 2002,p.75). Os hambúrgueres, as pizzas, os refrigerantes tornaram-se, de acordo com Symons(2002), a “cozinha do mundo”.

Na ótica de Montanari(2008, p. 147), no decorrer do último século, “a tendência de uniformidade dos consumos se tornou pouco a pouco mais forte e visível, seja pela multiplicação das trocas, seja pela afirmação da indústria alimentar e das multinacionais que controlam os mercados mundiais. Todos os europeus hoje consomem coca-cola, suco de laranja, bife com batata frita, o vinho é cada vez mais consumido nos países tradicionais da cerveja”. Neste contexto,(Vinerean, 2013, p. 28) ressalva que a associação da gastronomia às identidades locais, regionais e nacionais é, aparentemente, ameaçada pelo processo de globalização.

Em comunhão com a globalização, o segundo aspeto que contribuiu para alterar a identidade gastronómica dos locais foi a revolução industrial dos alimentos, porque proporcionou o fácil acesso a produtos de outras culturas, sem precisar deslocar-se até elas, assim como permitiu aumentar consideravelmente a disponibilidade de todos os tipos de alimentos. Estes fatores impulsionaram o enfraquecimento e a descaracterização de muitas cozinhas regionais, não só pela entrada de novos alimentos, mas também pela perda do ciclo de produção, alimentos que naturalmente variavam de acordo com a sazonalidade passaram a ser produzidos pela indústria e possíveis para o consumo durante todo o ano (Hernandez, 2005).

Neste sentido,Poulain (2008, p. 57) afirma que a industrialização cortou o vínculo entre o alimento e a natureza, uma vez que, ao suprimir as funções sociais da cozinha, desconecta parcialmente o comensal de seu universo biocultural. A industrialização não só teve uma grande influência sobre a organização da sociedade e as práticas de trabalho, mas também sobre o que as pessoas comiam, quando e onde elas comiam (Bryant et al., 2003 citado por Steinmetz, 2010).

De acordocom Schlüter (2003, p. 55)“os tempos modernos também alteraram os tradicionais ritos da mesa. A jornada de trabalho já não está subordinada às refeições, mas a refeição está subordinada à jornada de trabalho. Mudou, também, o papel da mulher ao trabalhar fora do lar, assim como as refeições rápidas ou congeladas que

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substituíram [em parte] a cozinha tradicional. Dessa maneira, os desenvolvimentos recentes das novas tecnologias ou da indústria alimentar perturbaram a dupla função identificadora da gastronomia, ou seja, a identificação do alimento e a construção ou a sanção da identidade do sujeito”.

Contudo, os efeitos causados pela globalização e pela industrialização alimentar não extinguiram as cozinhas nacionais, regionais ou locais, porque “nem a composição, nem a forma dos [novos] alimentos evocam um significado preciso e familiar”(Hernandez, 2005, p. 135).De acordo com Poulain (2008, p. 55), cada vez que há identidades locais em perigo, a cozinha e as maneiras de comer são um dos principais métodos de resistência.

O que encontramos é uma adaptação, um aprimoramento ou uma fusão de novos ingredientes ou produtos internacionais, com a culinária tradicional dos locais. Como exemplo podemos destacar as tapiocas recheadas que podem ser servidas com queijo

catupiry, uma importação dos Estados Unidos que virou preferência nacional para

acompanhar pratos regionais e adaptar alguns pratos internacionais, como a famosa

pizza com catupiry, que só se consome no Brasil.

Mesmo diante de toda resistência que tenha as cozinhas tradicionais, a identidade gastronómica vai sempre sofrer alterações que são próprias da evolução humana, como as que decorreram da globalização e da industrialização. Não podemos esquecer de que a alimentação está diretamente ligada ao homem e ao meio em que ele vive. Qualquer mudança que ocorra neste meio irá alterar de forma mais ou menos intensa a sua identidade. Isso não significa que ele perdeu-a. Ná ótica de Hall (1997) , as identidades estão sempre em processo de transformação, de movimento, pela multiplicidade dos sistemas de significação e representação cultural, que cria identidades cambiantes e temporárias, elas não são sólidas e podem transformar-se(Brochado, 2004; Hall, 2006; Maciel, 2005).

Nesse sentido,Montanari (2008, p. 184) afirma que as identidades culturais não são realidades metafísicas (o espírito dos povos) e nem estão inscritas no património genético de uma sociedade, mas se modificam e se redefinem incessantemente, adaptando-se a situações sempre novas, determinadas pelo contato com culturas diversas.

A formação da cozinha brasileira é um exemplo claro disso. A fusão da gastronomia indígena, portuguesa e africana aprimorou muitos dos pratos dos nativos, como é o caso da tapioca. Esta iguaria de origem indígena recebeu o acréscimo de sal e açúcar, bem

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como do coco, pelas mãos destas outras duas culturas. As mudanças não apagam a história, as memórias, mas afirmam este produto como parte da evolução desta cozinha. Nesse âmbito, (Poulain, 2008, p. 65) ressalva que, “nos inventários patrimoniais, deve-se evitar cair na armadilha de buscar a ‘verdadeira receita’, que estabeleceria uma ortodoxia culinária. Este vão projeto dos sectarismos regionais esterilizam o espírito das gastronomias locais, mumificando os pratos em receitas imutáveis, quando na realidade, o que não é dito, na tradição oral tem por função acolher variações individuais e permitir que a cozinheira ou o cozinheiro afirme sua obra e marque a época ou o lugar”. Em comunhão com a reflexão de Lévi-Strauss (2004), se pode dizer que, como nos mitos, “uma receita é a soma de suas variantes”. Então, ditas variantes deixam de ser consideradas como desvios e se convertem em “versões”, cuja função poderia ser assinalar nuances geográficas, sociais ou familiares, em uma dialética de integração- diferenciação(Poulain, 2008, p. 65).

Na ótica de Montanari,(2008, p. 190) a “identidade [gastronómica] não existe no início, mas no fim do percurso. Se justamente de raízes quisermos falar, usemos até ao fundo a metáfora e imaginemos a história da nossa cultura alimentar como uma planta que se abre (não se contrai) à medida que afunda no terreno, buscando a linfa vital até onde consegue alcançar, introduzindo suas raízes (precisamente) em lugares os mais distantes possíveis, por vezes impensáveis. O produto está na superfície, visível, claro, definido: somos nós. As raízes estão abaixo, amplas, numerosas, difusas: é a história que nos construiu”.

As identidades gastronómicas são portanto reflexo de um processo de conhecimento e acontecimentos de âmbito histórico, natural, económico, dentre outros, que permitiram a construção de uma gastronomia tradicional, durante muitas gerações(Perassi, 2002). Com base na produção de vinhos, Harrington (2005) propôs um modelo de identidade gastronómica que destaca dois fatores determinantes para sua formação. Para o autor, as identidades gastronómicas são estabelecidas por um fator cultural e outro ambiental.

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Figura 2 - Modelo de Identidade Gastronómica

Fonte: (Harrington, 2005 -2008, p.133)

A componente cultural proposta no modelo é formada pela história dos locais, pela diversidade étnica, pelas tentativas e erros, pelas inovações, recursos, tradições, crenças e valores. Por outro lado, a dimensão ambiental envolve a geografia, o clima, os microclimas, os produtos autóctones e a capacidade de adaptação dos novos produtos trazidos devido a tendências, moda ou demanda pelo aumento das viagens. De acordo com Harrington, estes fatores (culturais e ambientais) têm um impacto nas características que identificam os locais que produzem vinho, a partir do sabor desta bebida, das regras de etiqueta, de receitas tradicionais, de técnicas de cozinha e fusão de ingredientes, do “casamento” certo de vinhos com determinados pratos, zonas climáticas e métodos de viticultura e enologia novos, face à produção tradicional do velho mundo.

A proposta do modelo de identidade gastronómica apresentada por Harrigton (2005), embora enfatize a produção dos vinhos, pode ser aplicada a outras realidades. No caso específico desta investigação, podemos considerar a componente cultural e ambiental também importante para a formação da identidade gastronómica da população de Fortaleza, mas a ênfase dada à tapioca requer incluir mais um fator que é indispensável na formação desta identidade, relacionado a uma dimensão económica.

A tapioca tornou-se um elemento representante da cultura local, também por ser um alimento de baixo custo e de grande rendimento. A sua matéria-prima e os gastos com a preparação têm um valor inferior ao dos pães. Por isso, para uma família com muitos membros e de condições financeiras escassas, tornou-se um alimento ideal. Ressalve-se que, antes de se tornar um alimento “famoso no país”, a tapioca era considerada comida de índio e, sobretudo, de pobre.

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Nesse contexto, pode-se identificar que o património gastronómico possui uma relação interdependente com as identidades gastronómicas, porque são fruto de tudo aquilo que as forma e que está relacionado com o ambiente cultural (e social), ambiental e económico.

É através desse carácter identificador, pelo qual o património gastronómico é formado, que emergem os interesses turísticos em promover a gastronomia como um atrativo cultural. As identidades gastronómicas, de acordo com Fox (2007), constituem uma parte única e memorável do destino. Isso possibilita usá-la como um elemento diferencial para o local, que permite, a partir de patrimónios singulares, criar competitividade e sustentabilidade, especialmente no desenvolvimento do turismo cultural.