• Nenhum resultado encontrado

A história e a realidade que justificou a pesquisa-intervenção

O estudo nos ensinou muitas coisas sobre outras reali- dades e sobre as bases da então recente Política Nacional da População em Situação de Rua (BRASIL, 2009a) e sua história na realidade brasileira.

Ao longo da história do país, à população em situação de rua tem sido reservado um lugar social de inclusão perversa (SAWAIA, 2001). Cercados de estereótipos – “vagabundos”, “mendigos”, “criminosos” –, confundem-se com o cenário urbano e, como é apontado por Silva (2006), configuram-se como um produto do sistema e das desigualdades provenientes do capitalismo. Adiciona-se ainda o papel das instituições caritativas, principalmente de caráter religioso, como pres- tadoras de algum nível de assistência a essa população, que não cessa, entretanto, de ser vítima de inúmeras violações de direitos humanos e de estar vulnerável a muitas violências cotidianamente.

13 Manguear é um verbo da rua que aprendemos nesse processo e que diz respeito ao ato de conseguir algo por meio da palavra ou, mais especifica- mente, da retórica, por pessoas em situação de rua. É algo que tem relação com a arte de contar uma história (real, fictícia ou com um pouco de reali- dade misturado com outro pouco de ficção) a fim de conseguir algo, como dinheiro, comida, passagem de ônibus, drogas...

O primeiro modelo de política voltado para esse segmento remonta ao papel de um Estado violador, que validava ações de cunho criminalizatório e repressivo pelos seus agentes. A política existente nesse cenário referia-se exclusivamente à higienização social, em que as pessoas que viviam em situação de rua eram violentamente retiradas dos centros urbanos. Nesse sentido, o Estado legitimava o ideário da classe dominante, que discriminava e culpabilizava o sujeito pela situação em que se encontrava, como se o Estado de Direitos fosse realmente de direitos para todos (BRASIL, 2008).

A inexistência de políticas sociais voltadas para esse seguimento perdurou, em todos os níveis de governo – Federal, Estaduais e Municipais, até a década de 1990. Embora o Estado brasileiro, nessa década, tenha adotado a política neoliberal, reforçando a sua omissão na garantia de políticas públicas que confirmassem direitos sociais, é possível constatar nesse período algumas iniciativas na agenda de governos municipais, voltadas para a proteção e inclusão social de pessoas em situ- ação de rua (BRASIL, 2008).

Nesse sentido, um marco para a transformação dessa história foi a criação do Movimento Nacional da População de Rua, o MNPR. Esse fato, porém, não se dissocia da história de violências a que esse segmento é submetido: o movimento teve origem após o que ficou conhecido como o Massacre da Praça da Sé, em São Paulo, entre os dias 19 e 22 de agosto de 2004, quando sete pessoas que dormiam no local foram brutalmente assassi- nadas e outras oito ficaram feridas. Tal acontecimento suscitou uma movimentação por parte dos próprios moradores que ali viviam, dando início a um processo de articulação e organização nacional das pessoas em situação de rua, fortalecido por outros movimentos sociais, cuja pauta era a luta contra a violência

e a impunidade (FERRO, 2012). Desde então, a organização do MNPR tem produzido ações relevantes na luta pela garantia e ampliação dos direitos das pessoas em situação de rua, tendo em vista sua condição de sujeitos históricos, afastando-se das relações comuns de caridade para uma perspectiva de cida- dania. Como consequência da reivindicação desses sujeitos, essa problemática passa a fazer parte da agenda do Governo Federal e, em 2005, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) assume essa discussão, possibilitando a parti- cipação da sociedade civil no debate público e naformulação de políticas públicas destinadas a esse segmento populacional.

Desse modo, com o objetivo de ampliar a discussão das políticas sociais destinadas a essa população, em 2006, a Presidência da República criou um Grupo de Trabalho Interministerial, expandindo o debate desse contexto tão complexo para as áreas da saúde, educação, direitos humanos, habitação e cultura (FERRO, 2012). E, três anos depois, foi instituída a Política Nacional para População em Situação de Rua, por meio do Decreto-Lei 7.053/2009 (BRASIL, 2009). Essa política reconhece a população em situação de rua como um grupo populacional marcado pela heterogeneidade, mas que possui, como aspectos em comum: a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexis- tência de moradia regular; habitam os espaços públicos e dele retiram renda de forma provisória ou permanente. Um grande segmento dessa população faz uso do acolhimento temporário das instituições, como os albergues noturnos e as pousadas sociais. O entendimento da população em situação de rua muda a perspectiva naturalizante da condição de morador de rua e todos os encargos associados a essa figura social, para outra que considera a diversidade de modos de vida na rua.

Um marco importante no processo da construção dessa política foi a pesquisa realizada pelo MDS em 2008, que abrangeu 71 cidades brasileiras, das quais 23 eram capitais. Esse levantamento constatou que nas capitais e nas cidades com mais de 300 mil habitantes, vivem aproximadamente 50 mil adultos em situação de rua, não sendo contabilizados crianças e adolescentes (FERRO, 2012). Essa é a estimativa do grande número de pessoas que são violadas diariamente em seus direitos básicos e o que se percebe é que os serviços públicos disponíveis não se prepararam para trabalhar com as demandas complexas dessa população que sofre cotidianamente processos de exclusão, invisibilidade, mendicância, drogadição e violência (SOARES, 2004).

No Estado do Rio Grande do Norte, a realidade não difere. De acordo com a pesquisa realizada pelo Brasil (2008), em Natal, foram contabilizados 223 adultos. Essa foi a única pesquisa existente até 2013, por isso é possível afirmar que o número atual pode ser bem mais elevado, o que exige políticas e serviços socioassistenciais e de saúde, habitacionais e de geração de emprego e renda que possam atender às necessi- dades e demandas dessa população.

No quadro das políticas voltadas a essa população em Natal, observa-se que essa efetivação ainda não está de acordo com o preconizado pelo Decreto-Lei 7.053/2009. Há na cidade três serviços de atendimento a pessoas em situação de rua, contudo apenas em 2017 foram dados os primeiros passos para a criação de uma política estadual para a população em situação de rua, sendo que o próprio Comitê Intersetorial ainda não foi concretizado, como é previsto no referido documento:

Art. 3º. Os entes da Federação que aderirem à Política Nacional para a População em Situação de Rua deverão instituir comitês gestores intersetoriais, integrados por representantes das áreas relacionadas ao atendimento da população em situação de rua, com a participação de fóruns, movimentos e entidades representativas desse segmento da população” (BRASIL, 2009).

Os serviços disponíveis a esse segmento populacional em Natal, todos instituídos em 2011, são: o Albergue Municipal (unidade de acolhimento institucional temporária, oferece abrigo noturno), o Centro de Referência Especial de Assistência Social para População em Situação de Rua – Centro Pop, que é responsável pela identificação e inclusão das pessoas em situação de rua na rede socioassistencial –e o Projeto Consultórios na Rua (CnaR), ligado à Política de Atenção Básica da Secretaria Municipal de Saúde, com apenas três equipes que funcionam articuladas à rede de saúde pública local para atenção a essa população. O projeto é composto por uma equipe multidisciplinar, formada por psicólogos/as, assistentes sociais, enfermeiras e técnicas de enfermagem. Falta às equipes a figura dos redutores de danos, pois a proposta dos CnaR é trabalhar os casos de drogadição por meio dessa abordagem, cujas estraté- gias de ação não preveem abstinência como critério norteador da interação com o usuário do serviço de saúde.

Inclusive, a redução de danos é um modelo de inter- venção adotado pelo SUS (Sistema Único de Saúde) e deve orientar as práticas pertinentes à Política Nacional de Saúde Mental (PNSM). Esta deve prestar assistência a pessoas com transtornos psíquicos e uso problemático de álcool e outras drogas e é operada pelos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Serviços Residenciais Terapêuticos, Ambulatórios, Núcleos de

Apoio à Saúde da Família (NASF) ligados à atenção básica. Esses dispositivos compõem a rede de atenção psicossocial (RAPS) que, devido ao alto grau de vulnerabilidade das pessoas que se encontram em situação de rua, acabam sendo bastante demandados pelos serviços da Política de Assistência Social que na maioria das vezes atuam como a porta de entrada para essa população.

Diante desse quadro e do nosso “não saber” sobre as pessoas em situação de rua da cidade, a pesquisa que propu- semos teve como objetivo conhecer a população em situação de rua, no que se refere à construção do seu perfil psicossocial, às suas condições de vida e às possíveis violações de direitos humanos de que são vítimas. Por defendermos a impossibilidade da neutralidade na prática da pesquisa e a indissociabilidade entre duas dimensões que a constituem – conhecer e intervir – optamos pelo método da pesquisa-intervenção, sobre o qual discorreremos adiante. Acreditamos que essa dupla inserção no campo da pesquisa nos permitiria conhecer essa realidade de modo que o conhecimento coletivamente produzido pudesse subsidiar as políticas públicas de inclusão social, atenção psicossocial, saúde e habitação, além de contribuir para a qualificação da atenção prestada nas instituições e nos serviços destinados a esse segmento. Interessava-nos, ainda, promover a aproximação de estudantes (de Psicologia, Serviço Social, História, Pedagogia, Gestão de Políticas Públicas e Direito) dos contextos e das histórias de vida dessas pessoas buscando assim contribuir para a formação de futuros profissionais, afirmando o compromisso social da academia frente à garantia de direitos humanos fundamentais, especialmente junto a pessoas em situação de risco e vulnerabilidade social.

Para tanto, traçamos como objetivos específicos: 1) identificar os serviços públicos que têm como foco a população adulta em situação de rua; 2) traçar um perfil psicossocial dessa população; 3) conhecer suas condições de vida a partir do que essas instituições já conhecem e de outras informações das próprias pessoas em situação de rua; 4) identificar as violações de direitos das quais essa população é vítima, por meio dos próprios sujeitos e dos profissionais das instituições mapeadas; 5) fomentar a participação política e social dessa população na construção de políticas públicas e em outras instâncias, por intermédio de ações dos movimentos sociais e de outras ações coletivas.